28.4.08

O indispensável


Patologias sem remissão. Uma estranha forma de olhar para o mundo, uma estranha maneira de se olhar para si mesmo que não é ajudada pelo espelho traiçoeiro que teima em enviar sinais da predestinada condição. Um caso de doentio protagonismo. Uma doentia sede de protagonismo, mesmo depois de revés atrás de revés, mesmo depois de só ele não perceber que não está fadado para o papel em que se julga investido por um improvável segredo divino.

E, contudo, Santana Lopes é de uma persistência admirável. Não se cansa de sentir o lombo vergastado pela crítica impiedosa. Eu olho em redor e só vejo um deserto de admiradores. Diria que ele é o seu único, e portanto maior, admirador. O que não percebe, ou ninguém alguma vez terá tido a franqueza de lho notar, é a tremenda falta de jeito para a arte em que, uma vez e outra mais, insiste em aparecer como personagem principal. E aparece. Sem perceber que por vezes as personagens distinguem-se pelo que de mau emprestam à arte.

A patogenia de Santana deve trazer psicólogos e psiquiatras embrulhados em dilemas que nesta altura paralisam a ciência. Haverá dia em que a ciência desatará os seus nós, quando os cientistas por fim tiverem solução para o enigmático caso Santana. Num sítio normal, com personagens cientes do que é o decoro, Santana já tinha encerrado a carreira política. Talvez seja o único a não perceber que o seu enorme feito foi ter entregue em bandeja de ouro uma maioria absoluta nas mãos do PS. Talvez ainda não tenha percebido, passados estes anos após a retumbante derrota, que foi o involuntário abono de família da subida ao poder do medíocre que lá se encontra. Não é brilhante desempenho ser o fautor da vitória de um medíocre seu adversário.

Santana avisara, quando se despediu da liderança do seu partido: ele ia andar por aí. A assombrar, digo eu, as hostes do PSD com a possibilidade de algum dia ressuscitar da tumba onde, fosse este um país decente, já estaria definitivamente enterrado. Pelo contrário. Com uma incrível visão - aliás uma visão que só ele consegue alcançar, na infinita presciência de diagnosticar o improvável - Santana leu uma vez mais nas estrelas: a vitória de Berlusconi em Itália, o sinal inequívoco de que a sua carreira tinha que ser resgatada. Só não explicou por onde se tecem as pontes que autorizam a comparação entre a sua pessoa e a do populista que foi eleito primeiro-ministro italiano. Uma daquelas conclusões que só o fantástico Santana consegue alcançar.

Agora (re)candidata-se à liderança do PSD, numa reincarnação de si mesmo. Já não bastava o PSD ser o sucedâneo de um programa televisivo de humor; Santana dá o golpe de misericórdia, reduzindo os Monty Python ao amadorismo do humor. Nem sequer carece de elaborada explicação para se perceber o inusitado da candidatura. Os socialistas, e Sócrates em particular, estarão em campo a manobrar muito na sombra para que Santana recupere a liderança do PSD. Na repetição das últimas eleições legislativas, com os mesmos actores, quem arriscaria apostar um resultado diferente?

O caso patogénico mergulha nas águas da patetice ao observar a relação tumultuosa entre Santana e a comunicação social. Santana queixa-se da má imprensa que tem. Mas a imprensa, a impiedosa imprensa, não se cansa de lhe fazer a corte. Acerca-se dele a toda a hora, de microfone estendido, ansiosa pelas palavras que Santana tem a dizer sobre tudo e mais alguma coisa. É uma relação de amor-ódio. Santana e a imprensa não passam um sem o outro. Apesar de Santana tanto se queixar de ser maltratado; e apesar da imprensa não se cansar de satirizar a personagem. Só que sem a imprensa, mesmo a má imprensa (ou apesar da má imprensa), Santana cai no esquecimento, deixa de existir como actor político. Aposta na comiseração típica do portuguesinho, que se alia aos coitadinhos - e por isso Santana gosta de fazer o beicinho do injustiçado pela imprensa. E a imprensa deleita-se com os disparates usuais de Santana, ciente que o dislate vende.

Esta relação de amor-ódio reproduz a faceta que mais distingue Santana. A imprensa sempre em redor de Santana, como na adolescência procurávamos o palhaço da companhia para efeitos lúdicos. É o efeito circense. Para chegar ao Santana palhaço. O indispensável palhaço.

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