8.4.08

Os peões bem comportados


Há terras onde a ética da lei é indeclinável. Sem desvios, nem quando o pragmatismo arremete, tentador convite a fechar os olhos ao escrupuloso respeito das leis. O princípio será um higiénico roteiro para a maioridade cívica. Se não houver deslizes, pequenos atropelos à lei, ausentes os pretextos para brechas na legalidade – nem as pequenas brechas, nem as grandes que dão origem a estrondosos rombos. O que fará a diferença entre terras retrógradas e terras mais avançadas.

Memória do dedo acusador que tombou sobre em mim, numa avenida de Bruxelas, quando a ousei atravessar estava ainda vermelho o semáforo para peões. O dedo acusador, erguido por uma velhinha cumpridora que aguardava, pacientemente, que o semáforo lhe desse autorização para cruzar a avenida. Podia o trânsito ser escasso e nem haver veículos no que a vista alcançava do horizonte. Que perigo havia em atravessar a avenida, mesmo que o semáforo vedasse a passagem, se não se avistavam automóveis em velocíssima marcha numa ameaça de atropelo? Ainda balbuciei os meus argumentos. Resoluta, a velinha interrompeu-me, sentenciando: se o semáforo estava vermelho para os peões, e se o vermelho significa impedimento de avançar, só me restava aguardar pelo sinal verde.

Como não aprendi com a vergonha diante da velhinha carregada de ética legal, dias mais tarde repeti a infracção. Continuava sem entender por que não podiam os transeuntes arrepiar caminho ainda antes do sinal para peões mudar para verde se não havia automóveis nas imediações. Não sei se dando expressão ao latino berço, ou se fazendo vingar um espírito pragmático, ou se apenas o passo desarticulado que o então ainda e contrariado estudante em direito exibia em relação às regras, ou até o anarquismo latente que se começava a esboçar – qualquer que fosse o sintoma, a vergonha passada às mãos da velhinha não tinha servido de lição.

Diria: uma pecaminosa vontade de infringir, ou somente o espírito prático que me lançava no asfalto ali ausente de automóveis que fossem perigo para a integridade física. A suprema afronta: do outro lado à minha espera, com um ar sisudo e grave, dois polícias. Fardados e tudo, para não haver sequer distracções que pudessem atenuar a ousadia. A verdade é que estava mesmo distraído. Ou, por outra, apenas atento ao trânsito, à ausência momentânea de automóveis que fosse caução para avançar na passadeira mesmo com o semáforo para peões a brilhar no vermelho. Só dei conta dos polícias quando os pés já se acercavam do outro lado da rua, onde eles estavam à minha espera e, soube-o logo a seguir, com uma tremenda vontade de multarem o peão infractor que era eu.

Por uma vez a nacionalidade lusitana haveria de ter serventia. Foi ao responder à arisca intimação para me identificar que os agentes da autoridade perceberam que diante deles não estava um nativo. Foi a minha salvação. Mudaram de atitude assim que viram que nacionalidade era a minha. A multa ficou para segundas núpcias – do aviso não me livrei, ensaboado com a ameaça de que a reincidência não seria tolerada com a invocação da nacionalidade terceiro-mundista. Foi curiosa a mudança de atitude dos jovens polícias. De um momento para o outro, através da mágica verificação da nacionalidade, perderam o ar grave e ameaçador e vestiram pedagogia. Lá foram dizendo que desta vez perdoavam a multa, mas ensinaram o cidadão distraído vindo lá dos fundilhos da Europa que se que os automóveis têm que respeitar os semáforos, os peões não podem fugir a essa obrigação. Ainda esbocei o argumento pragmático: “mas, tive o cuidado de ver que não vinham lá carros…”. E como tinha acontecido com a velhinha, também não deixaram terminar o raciocínio: “não interessa: lei é lei, sempre para ser respeitada”.

Aprendi. Quando vou de viagem a sítios onde os peões foram educados a cumprir meticulosamente a informação enviada pelos semáforos, fico à espera do sinal verde mesmo que não aviste um só automóvel no horizonte. E nem que esteja sozinho à espera de atravessar a rua, pois nunca se sabe se não vai surgir do nada um zeloso cidadão ou um polícia escondido para dar o puxão de orelhas sempre desconfortável. Sou um como eles, ordeiramente de passo estacado enquanto o sinal permanece vermelho.

Às vezes apetece desafiar o conformismo, esbofetear aquele imenso sentido ético de legalidade, ousar atravessar a larga avenida, sobretudo se de ambos os lados estiver uma multidão. Só para ver o ar contrariado, alguns acenos de cabeça em tom reprovador, enquanto a turba espera que o vazio não a atropele e que o verde venha substituir o impeditivo vermelho no semáforo. Uma insanável contradição que me assalta: o cepticismo militante perante a pequenez indígena (ou a portugalidade incorrigível) cede o passo quando vejo a bulimia dos “europeus civilizados” em acatarem as regras, suplantando o pragmatismo que traz o aroma mais humano às regras que se desumanizam quando são cegas.

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