7.5.08

Males indígenas (I): A terra onde “não ter passado” é caução de probidade


Mal vai a santa terrinha quando os salvadores da pátria, os novos D. Sebastião, se perfilam diante do público como gente desprovida de passado. É retórica, é certo. E a retórica, carregada das sinuosidades da semântica, dos alçapões onde se entretecem as palavras na sua ambiguidade, esconde múltiplos sinais. Que quererá um candidato à liderança do PSD dizer quando se apresenta “sem passado”? Apenas o contraste com os seus rivais, esses sim detentores de um cadastro que os implica em responsabilidades pelos males que causticam os indígenas?

Seja lá o que for, é impossível não prender a atenção às palavras que Passos Coelho e os seus apoiantes proferem, quase como pregão mor da candidatura. Ele não tem passado. Ora, o que dizer de alguém que quer cativar o voto dos apaniguados daquele partido apresentando, como certidão de credibilidade, a ausência de passado? Que dizer, caso venha a vencer as eleições e a ser entronizado líder do partido que alterna com o que detém agora o poder, de um político que quer ser primeiro-ministro e tem como capital de confiança a ausência de passado? Quem se casaria com um(a) desconhecido(a)? É insólito que se construa uma imagem alicerçada no arrivismo, um neófito que se distingue dos rivais por ter andado longe dos meandros da política nos últimos tempos. Quase como se tivesse estado em retiro, um monástico recolhimento de onde se solta agora para vir salvar um partido à deriva e um país também errante.

Admito que há nesta retórica o selo da semântica. Percebe-se onde Passos Coelho quer chegar. A diferença em relação aos rivais do partido, até em relação ao que será o seu adversário político caso saia vencedor das eleições directas no PSD – o primeiro-ministro. E que o seu recolhimento monástico, ele que quase tinha caído no esquecimento, seja laboriosamente apresentado como a vantagem da candidatura, a alavanca que faz a diferença. Ou seja: se a crise de personagens em que estamos mergulhados for sintoma da realidade, Passos Coelho terá a varinha de condão de inverter o estado comatoso porque ele andou fora da política enquanto videirinhos medíocres por cá andaram a afundar a pátria (e o partido de que ele faz parte). Quando o eixo do candidato é a putativa (sim, a putativa – e já se verá a razão) ausência de passado, apenas o cansativo recurso à imagem de uma salvífica personagem. Não aprendemos que o sebastianismo não é a cura, apenas o sintoma maior do coma dormente.

Regresso à retórica da personagem sem passado. Quem pode construir reputação, arregimentar apoios à custa de uma folha em branco, de um passado que é tão imaculado quanto inexistente? Quem pode confiar numa pessoa que aparece vinda do nada, como se o arrivista caído de pára-quedas conseguisse, só por assim chegar, sem passado, cativar as simpatias de multidões? A tentação para contrastar com a mediocridade dominante é o lenitivo que empurra Passos Coelho para a imagem do político sem passado, o político que nunca o foi. As pessoas estarão cansadas dos carreiristas que só são alguém na vida porque se souberam mover nos corredores da partidocracia. O sucedâneo de Barack Obama para consumo doméstico aposta na diferença: ele andou resguardado dessa mediocridade porque andou a fazer carreira fora da política. Eis o seu cadastro imaculado, o tal “não passado” que é a cenoura para o eleitorado enfeitiçado pela arte da retórica. A juntar a outros ingredientes que fazem parte da poção mágica da ambiguidade do candidato: não é de esquerda nem de direita, é liberal e defende a intervenção do Estado ao mesmo tempo – um caldo fétido que nidifica num atraso de vida chamado “consenso”.

Só que esta retórica é, de uma penada só, um embuste e um ardil. Ardil porque sintoma da doença terminal que apoquenta a santa terrinha quando alguém poisa na sopa de letras que é o leque de políticos e esse alguém diz “eu não tenho passado”. E um embuste, já que a estratégia de Passos Coelho é um estalinista revisionismo do seu passado. Ele afinal tem um passado: há que não esquecer os muitos anos que vegetou na liderança de um dos maiores miasmas da partidocracia caseira – as “jotas” dos partidos.

E mal andaria a pátria se apenas pessoas “sem passado” vingassem. Teríamos quase dez milhões de candidatos a primeiro-ministro.

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