9.5.08

Males indígenas (III): é de heróis que precisamos?


Parece que vivemos num deserto. Para onde quer que olhemos, só a aridez das areias que tolhem qualquer vestígio de vegetação – nada consegue florir, nada fecunda na entranhada aridez que arpoa o seu ferrão numa perturbante quietude. E tudo soa a descrença. Pairam no ar os ventos que trazem o aroma de decepção e azedume, uma camisa-de-forças que nos amordaça ao cepticismo militante. Deitamos o olhar por trás do ombro, lá atrás no tempo, no outrora povoado pelas coisas belas que então havia. A saudade assenta na tremenda crise de hoje, na imensidão do nada que é o horizonte tão vasto e, todavia, claustrofóbico. O paradoxo é maior ao sentirmos que não há saída que se antecipe, como se estivéssemos perenemente hipotecados a este devir maligno.

Dizem alguns, soerguendo a cabeça entre a lamacenta existência: faltam lideranças fortes, o álibi para o ressuscitamento das massas, um fogacho de esperança – essa palavra sempre tão vã. Faltam-nos os heróis que arregimentam fidelidades, que dedilham a bússola de todos nós com a sua enorme autoridade, o seu incomparável carisma, conduzindo a turba para as laboriosas artes de um devir comum. Sentencia-se: é de heróis que as gentes carecem, guias que sejam a candeia acesa que alumia os deslumbrantes caminhos a palmilhar. E de obediência, que os divinos trabalhos dos heróis não condescendem interrogações.

Eu desconfio de heróis, seja qual for a sua têmpera, a maneira como se investiram na qualidade de heróis, o ramo onde a heroicidade se faça notar. Continuamos embrulhados nas profecias nunca confirmadas. Um adiamento que se segue a outro adiamento – num projecto eternamente adiado, à espera de um salvador que desate os nós que nos manietam. Sintoma de descrença no eu que habita em nós, sempre ávidos dos milagres da lavra dos outros, das miríficas personagens que estão para nascer ou para ser inventadas só para manter vivo o imaginário popular. Ou sintoma de uma indeclinável religiosidade, os quadros mentais estreitos que entregam o devir nas mãos de uma qualquer divindade – não interessa se sobrenatural, ou mitológica, ou carnal personagem investida em divinos dotes. Sempre à espera que a redenção caia do céu, uma pluviosidade que nem mil danças da chuva serão caução.

Os heróis, quais deuses terrenos, fazem parte da redenção colectiva. São os penhores da nossa incapacidade: frutificam dela e, assim que se enquistam heróis, tratam de preservar essa incapacidade. Alguém predestinado, com dotes para hipnotizar as massas, convencendo-as – ou elas convencidas – das alamedas cintilantes que se abrem, de par em par, com a prestidigitação do toque do herói. Pelo caminho fica a confissão assinada da pequenez de quem alimenta a espúria chegada de um redentor qualquer. A certa altura, tanta a desorientação, só querem ser agraciados com a oferenda de um herói, não interessa quem ele seja, desde que tais dotes sejam certificados. E pelo caminho fica também a individualidade de quem se empenha no prometido herói. Esfumam-se os vestígios da autonomia do indivíduo a cada passo que a sombria espada ameaça tombar e decepar o livre arbítrio.

Haja concordância com o diagnóstico: são amargas as sangrentas ruas por onde andamos, os pés dolorosamente cravados pelo plúmbeo devir que espreita nas dobras do tempo. Grande é a divergência na cura: a espera pelo próximo herói que há-de aterrar é inútil tempo gasto, as ilusões que se cegam, a negação de todos os eu que são o património de onde haveria de brotar a solução. Somos a demissão de nós mesmos quando investimos tudo num arvorado herói que nem sabemos quem seja. Sinaliza a tanta descrença nos tempos que há e o desgaste pela inépcia reiterada.

Os milagres são a essência dos mitos que mantêm acordados os que ainda se agarram às esperanças danosas. E se à volta tudo é aridez, um extenso campo onde nidificam os medíocres por omissão dos que têm qualidade, o desencanto que azeda a existência não pode tomar conta de todos os instantes. Que haja, ao menos a espaços, lucidez para reparar que a adulação de heróis que não existem mas estão sempre quase a chegar é a maior das demissões. A cura está em nós, não nos mitos que escondem a nossa incapacidade.

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