11.6.08

Silêncio depurativo


O silêncio que se impõe. O silêncio como cura. A limpeza de todos os sons que perfuram as cavidades escondidas e ferem, com intensidade. E, no silêncio, o reencontro com a essencialidade do ser. Todas as cicatrizes cauterizadas. A espaços, os sons, todos os sons, carecem de silenciamento. Os ruídos, mesmo os mais melodiosos, cedem perante a beleza do silêncio. Nessa altura, o ser entregue a si mesmo numa profiláctica solidão. Seguindo o tracejado caminho dos silêncios, como se houvesse a urgência em saciar o recolhimento de onde se regressa à profundidade de si mesmo.

Nesta digressão encontra-se no silêncio a exegese do ser, uma introspecção que revigora. O silêncio como melodia maior. Os demorados momentos em que os ouvidos vedam a entrada de qualquer ruído são a pauta onde se coreografam as notas de uma melodia inaudível. É na pausa silenciosa que se compõem, mentalmente, essas melodias. A melopeia só possível no alcantilado contraforte onde se encontra o refúgio, onde o ser se remete a um exílio necessário.

O silêncio pode acontecer em qualquer lugar. Até nos lugares mais movimentados, onde o intenso burburinho acompanha o quotidiano. O mergulho no silêncio é um exercício individual, o vasto campo de flores que se imagina no meio da cimentada cidade, as bocas emudecidas mesmo quando se entreabrem em ensandecida gritaria. Um exercício mental que isola os sons quando o ruído aflitivo exige alheamento. Uma concha hermética formada na fortaleza que se edifica no isolamento terapêutico. Pode o corpo passear nas margens de uma movimentada avenida da cidade sem notar os pregões das varinas, o martelar da artilharia das obras, o perfurante zumbido das motorizadas, as buzinas dos automobilistas apressados, a vozearia geral. Como se, subitamente, o mundo se emudecesse no prioritário silêncio.

Mas onde o silêncio encontra a sua pureza é no abrigo que empurra o corpo para um lugar desértico, longe do bulício das cidades onde as pessoas se atropelam no seu anonimato ensurdecedor. Em areais que se perdem de vista, em dias de invernia soalheira. Nos campos verdejantes com a unção da primavera, a paisagem bucólica a desfilar diante da vista como altar supremo onde se purifica o pensamento. Nas serranias implacáveis, por entre os penhascos abruptos e o granito que entoa as agrestes montanhas. Onde não haja vestígios de vida humana. E onde nem sequer se faça notar o silvo do vento, ou o longínquo rumorejar de um regato de água, ou o canto melódico dos pássaros em redor. Nem até o singelo tilintar das folhas das árvores ecoando a brisa que nelas esbarra.

O sossego que remete o ruído para o seu próprio exílio, onde os passos silenciosos depuram os sentidos. O segredo para o reencontro. Um mapa tacteado com todo o cuidado, sem perder o rasto aos fragmentos outrora desperdiçados que fermentaram a adulteração de si. É como se fosse um regresso à casa da partida para começar outra vez. Ainda que tempos adiante se faça sentir o apelo do silêncio como branqueamento de desvarios, correcção de erros cometidos, carregar numa tecla e regressar ao terapêutico zero. Um mergulho em águas profundas e límpidas, águas termais que trazem à superfície um corpo purificado pelas pétalas perfumadas do silêncio.

Tem algo de peregrinação pelos segredos acumulados no interior de si, o silêncio. Um refúgio numa fortaleza de que só o indivíduo detém a chave. Só ele sabe onde está o mapa que desvenda o caminho sinuoso que separa a vida tumultuosa do castelo que resguarda, nas suas ameias, os fragmentos de silêncio que hão-de depurar o pensamento. O silêncio, como a peregrinação interior, só se faz na imersão da solidão. No indeclinável dever do resgate de si mesmo. Sem música sequer, essa música que acompanha a vida como profilaxia. A ávida sede pelo silêncio.

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