22.8.08

O mar das patranhas


Há mentirosos compulsivos. Vendedores de banha da cobra. A suprema desfaçatez de desdizer o que foi dito lá atrás e que ficou registado nos arquivos, teimando em distorcer a realidade. São mestres maiores em fazer da mentira verdade e da verdade mentira. Vivem de uma estranha cumplicidade com quem representam: mentem para cativar a simpatia. Paradoxalmente, os que levam a palma no campeonato do engodo são os que vingam nas preferências dos que são enganados. Dir-se-á: são as regras do jogo. E, se o povo escolheu os que tanto lhe mentem, que ninguém ouse levantar um dedo contra a democrática e inquestionável sentença das urnas.


Provavelmente, o povo nem chega a perceber o chorrilho de patranhas que engole a cada dia. Provavelmente, inebriado pelo embrulho fantasioso com que lhe é servida a realidade pelos prestidigitadores de serviço, aplaude-os ainda que seja destinatário da fileira de lérias servidas numa deslumbrante vestimenta. Aos viandeiros da falácia instalada, a distinção pelo mérito da mentira: a donairosa vitória com o selo do eleitorado. Nisto, fico convencido que a política é a arte de tisnar a realidade, mascará-la com os oportunos enfeites que transformam um deserto num faustoso oásis. Esta urgência em celebrar a mentira, só para glorificar feitos que o não são, só para somar pontos na contabilidade eleitoral, é o perigoso caminho da decepção da democracia. Os seus fautores, esses, ineptos para a função. E, ademais, verdugos da democracia.


Os exemplos, uns atrás dos outros – o altar das patranhas à exaustão, tanta a insistência nelas que se faz crer que a mentira se transforma em verdade. É a miragem de cento e cinquenta mil empregos que iriam ser criados, por artes de magia, durante esta legislatura. Aproximando-se o ano de eleições, ao menos seja feita honra ao maestro do bando de mentirosos que resgatou a promessa eleitoral: há dias veio defender a dama, anunciando que só faltavam uns escassos milhares de empregos para atingir a meta. Para sua grande infelicidade, há quem não goste do estilo infalivelmente mentiroso e despedace a verdade das suas mentiras. Logo a seguir houve demonstrações cabais da clamorosa mentira que nos é pespegada. Nas elucidativas palavras de Santana Castilho (no Público de anteontem):


"Reaparecendo na ribalta política, Sócrates tratou os números com a desenvoltura que tristemente lhe conhecemos, como se fôssemos todos estúpidos ou distraídos. (...) Disse, com o seu habitual optimismo de plástico, que, desde Março de 2005, foram criados 133.000 postos de trabalho. Mas não disse quantos se perderam. É preciso topete para afirmar publicamente que está quase cumprido o objectivo de originar 150.000 novos empregos até ao fim da legislatura, quando os desempregados são 7,3 por cento da população. (...) Quando Sócrates tomou posse, em 12 de Março de 2005, 413.000 portugueses estavam desempregados. No fim do segundo trimestre de 2008, esse número tinha descido para 409.900. Durante a legislatura foram, portanto, recuperados 3100 postos de trabalhos perdidos. Para cumprir o objectivo faltam-lhe recuperar 146.900. Repito: é preciso topete para dizer que está a 17.000 do objectivo".


Outro exemplo: o celebrado computador portátil Magalhães, apresentado como pedrada no charco, um marco mundial. Logo a seguir, um mar de gente veio provar, e com provas irrefutáveis, que o "Magalhães" já é produzido, e desde há algum tempo, noutros países. Claro que nesses lugares não se chama "Magalhães". Para abrilhantar mais um episódio histórico – e tantos são neste consulado que um dia destes é a própria história que se reinventa pela mão do timoneiro – até o presidente da Intel foi convidado para a patranha. Aposto que ninguém lhe contou os pormenores da encenação propagandística. E nem o discurso do relações públicas da portugalidade boçal, à boa maneira dos gurus do marketing que se passeiam descontraidamente de um lado para o outro do palco, terá sido traduzido para inglês. Só para que o presidente da Intel não desse conta do logro para que foi convidado como actor principal involuntário.


O exemplo derradeiro: quem escuta o timoneiro e perorar sobre o estado da economia, há-de ficar convencido que somos uma lança espetada no largo terreno incendiado pela crise internacional. O cantinho nos fundilhos da Europa terá, no optimista diagnóstico de sua excelência, escapado ao algoz da crise. E, no entanto, o seu grande amigo presidente da Venezuela confidenciou lá na sua terra que o amigo lusitano lhe terá dito que a economia portuguesa está estagnada. Donde, só resta perguntar: quem está a mentir?


Mas neste reino apalhaçado e inerte, continua tudo feliz e contente, todos banhados no mar de patranhas em que somos convidados a estadia demorada. Esse mar que tem o condão de nos anestesiar, incapazes depois para discernir a mentira. É neste jogo que me recuso a participar. Pois se a mentira é ingrediente congénito a todos os actores, venham eles de que quadrantes vierem, recuso-me com a minha anuência a caucionar patranhas sucessivas. Para não ficar refém do estigma da mentira como matriz da acção política.


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