12.8.08

Os soldados não são feitos de chumbo


Nem as pessoas comuns – que seja perdoada a distinção, pois os soldados, qualquer soldado, é tão carne e osso e sangue como uma pessoa qualquer. Só que os soldados formatados para entrarem em guerra sabem que o dia em que enfrentam uma batalha pode ser, com grande probabilidade, o seu derradeiro dia. São a carne para canhão das guerras ditadas por loucos que variam em ausência de escrúpulos. E mesmo eles não são feitos de chumbo, ou de plástico, ou de qualquer matéria inerte, como os especialistas em estratégia militar (militares de carreira, ou os que o são em versão frustrada) gostam de teatralizar. Se eles, treinados para morrer em combate (assegura a retórica castrense), são gente, o que dizer dos inocentes que tombam "vítimas colaterais" (que hedionda expressão!) de uma guerra que neles desabou?


Todos temos os nossos dias de desarmante ingenuidade? Uma visão pura e lírica. E de tão pura e lírica, onírica, concedo. Do que o mundo não é, porventura do que o mundo deveria ser e que, temos a certeza, jamais verá a cortina descerrar-se. Estou diante de mais um acto de estupidez colectiva, a impressão digital da espécie humana: a guerra do momento, que há-de sempre haver guerras prontas a ceifar vidas na vil glória dos exércitos que se entregam à mórbida valsa dos inimigos. A guerra entre a Geórgia e a Rússia. Outra vez as armas a trovejarem às portas da Europa que se pensava reservada a uma longa era de paz. Não fosse esquecer-me do pessimismo antropológico que esforços vãos procuram encerrar numa inacessível arrecadação do pensamento.


É nestas alturas que o mundo inteiro desata num ensandecimento colectivo. A começar pelos beligerantes. Desapossados de racionalidade, falando a linguagem da artilharia, cegos pela conquista de posições ao inimigo, celebrando cada soldado inimigo morto em demencial festim. As notícias que não se queriam ler chegam a uma velocidade vertiginosa. Uma contabilidade infame: a cada dia de bombardeamentos, mais funda a trincheira onde se enterram os mortos. Estes mortos que não contam para nada. Prova-o a frieza com que a guerra desabou nas suas vidas, desvalorizadas a uma bagatela. São medalhas, ensanguentadas medalhas, para o lado contrário; não são vidas humanas que deixaram de ver a luz do sol, o riso dos familiares, a beleza da paisagem. Apenas coisas a quem o lado errado apanhou na esquina da morte. As guerras, insisto na faceta naïve, são a condecoração mais refulgente da bestialidade humana. Os seus orquestradores caldeiam a humana condição com os atributos animalescos que renegam aquela condição. Leio: dois mil mortos em meia dúzia de dias de combates. Noventa por cento, civis apanhados no caminho dos morteiros. E sinto vergonha da humanidade.


A loucura geral estende-se até a quem não participa nas atrocidades da guerra. A diplomacia atarefa-se em medir as consequências da guerra para o balanço de poderes. A diplomacia devia estar interessada em levar os beligerantes à paz imediata. Em vez disso, olha para o respectivo umbigo nacional e procura saber o mal (ou o bem) que a guerra pode significar. Desafortunada humanidade. Com os soldados empenhados numa guerra mesmo quando não empunham uma arma na frente de combate.


A provar que a guerra é uma patologia contagiante, até gente com discernimento olha de esguelha para o evento. São os comentadores, neste caso especialistas em geoestratégia, assuntos militares, relações internacionais. Muito entretidos a tentar explicar o que não têm explicação possível – a não ser pelos manuais da demência, os manuais da especialidade que acolhem a guerra como acto natural do Homem. Entusiasmados, desenrolam o fio à meada: o contexto regional, a geografia particular, os interesses envolvidos – os directos e os encapotados – as tensões étnicas que fermentam desavenças mortíferas entre povos vizinhos. Tomam partido, caucionando a tempestade de balas e a assassina coreografia de bombardeamentos aéreos, um mero ingrediente da normalidade. Os milhares de quilómetros de distância amolecem a sensibilidade pelas vidas humanas, as já perdidas e as que estão em risco. O "teatro das operações" é que os excita, sucedâneos à distância dos generais que comandam a estratégia refastelados no bem-estar do quartel-general.


Alguém devia explicar o básico a estes excitados especialistas da "arte de guerra" (que cínica conjugação de palavras: "arte" e "guerra", como se a guerra alguma vez pudesse ser uma arte, qualquer arte que seja). Que na longínqua guerra andam a morrer ou em sofrimento pessoas tão carne e osso e sangue como eles, comentadores no papel de abutres de uma guerra alheia. Que a longínqua guerra não tem actores de chumbo – ou de plástico, ou de outra matéria inerte; são pessoas. Em repetição, só para perceberem como deve ser: as pessoas não são feitas de chumbo.


1 comentário:

Anónimo disse...

AMEEEII ESSE TEXTO KE ATE USEI EM UM TRABALHO DE ESCOOLAAAA
FALANDO DOS SOLDADOS
PARAABENS