30.9.08

Imagem de marca


É curioso: como no epitáfio de Paul Newman grande parte das fotografias que aparecem na imprensa retrata uma das imagens de marca do artista – um cigarro na ponta dos dedos, ou um cigarro negligentemente no canto da boca. Antes do óbito de Newman, li algures que se fez constar que empresas tabaqueiras pagavam a certos artistas para serem sua imagem de marca. Num mundo tão dado a fantasias e a teorias conspirativas, nem interessa saber se há aqui um fundo de verdade ou se é mais uma elucubração fantasiosa de gente que não tem mais que fazer ou que se entretém a fabricar novas verdades só para o seu nome aparecer, por uma vez que seja, sob a luz dos holofotes.


Vem isto ao caso porque construir uma imagem parece uma tarefa indeclinável dos tempos correntes. No imaginário colectivo, então, as imagens funcionam como um roteiro necessário de identificações e pertenças. Ou podem actuar como espelhos refractários, um conjunto de sinais que reproduzem a desidentificação com a nacionalidade que o lugar do nascimento atribui como espartilho sem fuga possível.


Já trouxe aqui, em texto anterior, o viveiro de idiossincrasias que é a sala de embarque de um aeroporto de um voo de regresso à terra pátria. Um mostruário perfeito, em pequena escala, da terra que se encontra depois de umas horas de voo até a casa. Ontem, novo episódio significativo reforçou a convicção de que as salas de embarque nos aeroportos são o laboratório onde nidificam as espécies representativas da portugalidade no seu pior. Tal como o cigarro era a imagem de marca de Paul Newman.


A sala de embarque já cheia de gente ansiosa por regressar à santa terrinha, de permeio com alguns estrangeiros em viagem de negócios e um par de turistas japoneses em demanda das maravilhas indígenas. À minha frente um portuguesinho típico, já entrado na quinta década de vida. Baixa estatura e roliço, faces rosadas, o ralo bigode que foi outrora paradigmático da lusa masculinidade. Lia um livro esotérico, sobre o "segredo" – ou de como toda a gente, desde que bem treinada pelos truques do "segredo", é capaz de atingir tudo a que se propõe só com a destreza da força mental bem subordinada aos interesses do objectivo.


Entretido com a leitura, espetou um dedo mindinho bem fundo na narina direita. Começou a escarafunchar, com movimentos que se assemelhavam a uma escavadora em plena função. Com a naturalidade de quem o faz no recolhimento da ausência de outras pessoas. Só que ali estavam à sua volta quase cem pessoas, todas à espera do voo. À cata da matéria nasal excedentária, o dedo bem fundo na narina por fim conseguiu cumprir a sua função. Deslizou para fora da narina em pose triunfante. O portuguesinho típico, com o ar aliviado, trouxe a excrescência nasal em visitação do ar puro. E para apreciação de quem partilhava com ele a sala de embarque no aeroporto.


A função ainda não tinha terminado. A escabrosa encenação prosseguiu para o acto seguinte. Encantando com a obra de arte retirada das profundezas da cavidade nasal, o homem deteve-se com atenção na excrescência que tinha acabado de subtrair ao seu leito. Contemplou-a durante alguns segundos, parecendo orgulhoso do feito. Afagou a excrescência nasal, tacteando-a com pose deliciada, imediatamente antes de a disparar em direcção do vazio. Percebi que não era o único espectador do admirável acto. De frente para o homem, havia mais gente a tomar conta dos gestos maquinais da boçalidade sem remissão. O homem, possivelmente inebriado com a leitura de tão elevado calibre, parecia anestesiado, muito distante daquela sala do aeroporto. Parecia que estava rodeado por nada nem ninguém, tamanha a naturalidade com que tratava da higiene nasal. As pessoas ao largo, entre a náusea e observação antropológica.


Os empenhados sociólogos andam enganados ao reproduzir em laboratório os comportamentos indígenas, na tentativa de lhes capturar os sinais identificativos. Perda de tempo. Se andassem pelas salas dos aeroportos onde aguardam embarque os passageiros de voos para a lusitana terra, o trabalho ficava facilitado e o resultado da investigação era mais fidedigno.


29.9.08

Capitalismo suicidário


Aposto que ninguém, no seu juízo (a menos que seja adversário figadal do regime capitalista), fica contente quando irrompe uma crise. Menos ainda com a magnitude e, sobretudo, a incerteza que a actual crise arrasta consigo. Pelo que leio, a crise tem o condão de por alguma gente bem-disposta. Os habituais profetas da desgraça, que povoam certas esquerdas, que agora estão com a sua moral de papo cheio e repetem por todas as esquinas: "eu não dizia?"


Fico satisfeito por esta gente estar tão enternecida com a crise que tem ido de surpresa em surpresa, deteriorando a confiança, fazendo mais negras as nuvens de incerteza que pairam sobre o amanhã. Querem fazer o funeral do capitalismo. Alguns, menos radicais, viraram as costas aos mesmos capitalistas com que amesendaram tanto tempo. Agora acusam-nos de ganância, de serem os responsáveis pelo estado calamitoso dos mercados financeiros, com o angustiante contágio à economia real. Estes, menos radicais e, contudo, mais hipócritas, asseguram que a saúde da economia só se restabelece com muita regulação. Também eles esfregam as mãos de contentamento: vêm uma nesga para subordinar os mercados ao controlo dos políticos, para pôr fim à rédea solta dos mercados.


Continuo a acreditar nas virtudes do capitalismo. Não há outro sistema económico que chegue aos calcanhares. Do que me não convenço é do capitalismo adulterado que a internacional socialista prega como destino inevitável para os dias que se seguem. Teremos que deixar passar o tempo para ver se a mão mágica do Estado conseguiu corrigir os desatinos da mão livre dos mercados. Há-de se fazer um balanço quando os efeitos começarem a ser notados. Não quero antecipar esse tempo. Apenas me coloco na posição de desconfiança metódica. De quem descrê dos predicados mágicos do Estado. Com uma agravante: os políticos contemporâneos são um hino à mediocridade.


No entanto, os sinais que levaram à crise obrigam-me a reconhecer que o capitalismo, tal como evoluiu até hoje, oferece de bandeja argumentos aos detractores. Não vou dar para o peditório organizado por alguns invejosos de serviço, destilando um despropositado despeito pelos gurus da alta finança e gestores pagos a peso de ouro; li descrições dos sinais exteriores de riqueza e do sumptuoso, mas flácido, estilo de vida dos gestores e gurus que se não são sinais de pura inveja, não sei o que sejam. Parece que os mercados financeiros atingiram tamanho ponto de sofisticação que nem os seus agentes conhecem os instrumentos que a criatividade inventou. Ou seja, não será ganância; é a armadilha da criatividade. É curioso que de algumas esquerdas certifiquem diagnósticos impiedosos que lacram a ganância da gente que gravita na alta finança. Só não percebo como são capazes de conclusão tão lapidar quando se gabam de serem inigualáveis optimistas antropológicos. Em que ficamos: os nefandos capitalistas são a excepção à bondade genética da raça humana?


Para os cânones que agora ficaram na moda – quem é louco ao ponto de continuar a defender o capitalismo como ele era quando a crise rebentou? –, ecoará um coro acusando-me de ser "fundamentalista do mercado". Não incomodam os rótulos pespegados por outros. Importa-me mais o que sei que sou. Entre os profetas da desgraça que andam em estado de nirvana com o colapso de bancos e mais bancos, e os curadores da imprescindível regulação para amestrar os selvagens mercados, continuo a ter mais confiança nos mercados. Funcionaram mal, é factual. Outro facto é o erro colossal de internalizar os prejuízos à custa de quem paga impostos (solução dos Estados Unidos, esse perigoso antro de "neo-liberalismo"; e mete-me espécie: como um antro do "neo-liberalismo" adopta uma solução que está nos antípodas do liberalismo; e como os tais profetas da desgraça se esqueceram de dar a mão à palmatória e não vieram a público emendar-se, admitindo que afinal aquilo é um antro, só que não de "neo-liberalismo"). Fica por saber se a iniciativa partiu dos políticos, ou se foram os capitalistas que, de calças rotas e mão estendida, suplicaram pela ajuda salvífica do quase divino Estado. A provar-se a segunda hipótese, sou eu que dou a mão à palmatória e começar a desconfiar dos capitalistas.


Há mercados que funcionam mal? Mas é óbvio. Um mercado, como o capitalismo, é uma construção humana. Falível, portanto. Negar isso, só com a mesma cegueira dos que estão de baioneta apontada ansiosos para disparar as balas da culpa aos capitalistas – por tomarem a árvore pela floresta. Dou este exemplo: soube há dias que há gente muito esperta, mas sem escrúpulos, que agencia trabalhadores romenos para as vindimas do Douro. Esta máfia execrável fica com um terço da jorna paga aos trabalhadores. Não me recordo dos detalhes dos números, mas com a quantidade de trabalhadores agenciados esta corja consegue reunir um pecúlio mensal que pouca gente aufere com trabalho honesto. Pergunto: o mal é do capitalismo, ou da falta de escrúpulos que alimenta uma deplorável ganância?


Mas, no fim de contas, estes não são tempos de glorificação dos fins e de desprezo dos meios?


(Em Frankfürt, em trânsito)

26.9.08

O mar interminável


Atravesso o Atlântico. Dez mil metros abaixo, o mar interminável. As horas passam, e o mar que nunca mais acaba. Primeiro sem o ver, só a pressenti-lo com o senso comum (vira as ilhas britânicas a ficarem para trás) e a ajuda da tecnologia (num ecrã à minha frente desfila o trajecto que o avião sulca). Só o pressentia, tapado que estava por umas nuvens densamente acasteladas que coreografavam o avião em moderada turbulência. Depois veio a bonança. E o interminável espelho de água lá em baixo. Ao início, de águas mansas, um chão plácido onde se deitava o largo oceano. Mais tarde, porventura por uns ventos que mergulhavam na água, discernia-se uma ondulação brava, a espuma das ondas furiosamente soltando-se da parte azul do mar.


Foram horas a fio só com o mar como distante chão. Pus-me a pensar: há quem tenha como ousado projecto de vida atravessar o Atlântico embarcado num navio da marinha mercante. Só se for por contrição contra um mal tremendo em que se debatam, tamanhos os dias de viagem apenas com o mar a cercar a embarcação por todos os lados. Ou serei de uma impaciência relapsa, incapaz para me entregar a refrigérios monásticos.


Dizem que às vezes as pessoas precisam dos seus refúgios. O lugar onde as coordenadas interiores são calibradas, por carentes de calibragem estarem. Um retiro, tão monástico como os retiros conventuais onde impera a frugalidade dos hábitos, onde até o silêncio dói na sua pungência. Não sei quem uma vez me contou esse desejo secreto – de se fazer embarcar como convidado do navio mercante e jogar-se corajosamente à solidão da terra por dias a fio. Na altura escutei o devaneio – já então me parecera apenas um devaneio, juvenil devaneio – e não lhe prestei atenção.


O defeito será meu, pela impaciência que adivinhei caso fosse eu o embarcadiço, por causa da terra firme que tanto haveria de se demorar. Um dia deitei-me a pensar no assunto, a supor-me desvairado para saltar do cais para o convés que haveria de conhecer em todas as suas rugosidades. Tive medo. Que o interminável mar me engolisse, no navio tão frágil diante da força assustadora do Atlântico numa das suas ensandecidas tempestades. Ou, à míngua de borrasca marítima, o pavor do tédio. A imensidão das águas, dos milhares de quilómetros de interminável oceano. Se custa a atravessar na velocidade supersónica do avião, quanto não seria o tédio dos dias de clausura no convés do navio à espera da salvífica terra firme? Tive medo, já com a cabeça recostada na almofada, que me custa a augurar prisões, quaisquer privações da liberdade. Nessa noite, o sono tardou e percorreu toda a noite em sobressalto.


Ao demorar o pensamento sobre o assunto, dias mais tarde, houve um esgar de dúvida no anterior diagnóstico tão célere: como seria admirável testemunhar uma brava tempestade no meio do oceano – surgiu o quadro, tentador. À memória vêm imagens de navios que ficam entregues nas mãos das ondas que revolvem o mar em chocalhos violentos, a embarcação desaustinada de um lado para o outro, como se perdesse naqueles momentos o seu próprio destino, incapaz de domar o rumo por onde queria seguir. A água irrompendo contra o casco ferrugento, o restolho do mar bravio em suas próprias ondas cadentes a varrer o convés. Um vento implacável, sem deixar os marinheiros sequer espreitar o cheiro mórbido que a tempestade cavalga.


Agora seria a minha vez de confessar devaneio juvenil. Impraticável devaneio. Para ser espectador de uma tempestade em alto mar, onde as tempestades debitam toda a sua devastadora força, teria que andar ainda dias incessantes até o navio beijar os braços da intempérie. Até lá, definhava de tédio. Com o mar repetitivo, ora um lençol onde haveria repousado a quietude, ora a agitada cama ao sabor da brisa fresca, a ser o repulsivo cenário de onde irromperia a impaciência.


As promessas, quando são esperadas com ansiedade, às vezes desaguam em decepção. Esgotado o interminável mar, quando já começava a acreditar que era infinito, lá em baixo a árida e deserta terra castanha da Terra Nova. Não era grande a diferença.


(Em Edmonton, Canadá)

25.9.08

Quando a propaganda chega a ser pornográfica


A maior vantagem da independência é o distanciamento com que aprecio as manobras da governação e do combate partidário. Seria sempre acusado de estar a defender uma facção se, pelo cunho da crítica, fosse militante de um partido ou pelo menos estivesse nas suas proximidades. É o que acho mais intrigante na cegueira que toma conta de pessoas, muitas delas inteligentes, que fazem ataques à pessoa que critica os seus sem terem o cuidado de rebater, um por um, os argumentos que são o chão onde assenta a crítica.


A reacção desabrida também tem como alvo a abater certos opinadores profissionais que, não tendo filiação partidária conhecida, vão dando sinais de que estão algures noutro lado da barricada. É suficiente para os argumentos dos críticos serem desconsiderados. De permeio, se preciso for, soltam-se ataques ad hominem. Os leais defensores dos mandantes nem percebem o enxovalho a que se abraçam quando tropeçam nos ataques pessoais aos críticos e se distraem do que é importante: os argumentos, as ideias.


Longos vão os prolegómenos. Agora, ao contexto. Da maldita propaganda política, contra-arte onde triunfa quem mais e melhor iludir o destinatário da mensagem, a gente que vai votar. Não quero acreditar que haja estudos sérios que provem que uma imensa maioria das pessoas se deixa atrair pelas artimanhas dos feitores da propaganda, trazidas aos holofotes pelos políticos sucedâneos de actores de terceira categoria. O relógio do tempo testemunha a propaganda mesquinha, a propaganda que espezinha a dignidade das pessoas, a propaganda que é um atentado à inteligência dos eleitores, a propaganda que instrumentaliza – a propaganda na sua indigência. A propaganda que mente indecorosamente. O diagnóstico já é sombrio quanto baste. Os amadores que tudo fazem para se manterem agarrados ao poder tratam de juntar mais alguma fuligem ao cenário.


Anteontem foi um dia magnífico para a propaganda. Tenho o cuidado de retocar a frase: para a propaganda no que ela foi transformada, na desprezível propaganda que desvirtua a democracia. Um fartote de ministros e secretários de Estado semeados por escolas que tiveram o privilégio de inaugurar o computador portátil "Magalhães". Depois da vergonhosa propaganda encenada na anunciação da iniciativa, pensava-se que o governo tivesse mais recato quando chegasse o dia de desembrulhar os primeiros "Magalhães" nas escolas agraciadas. Afinal, fora abundante e concludente a prosa a denunciar o embuste do muito que foi solenemente anunciado em relação ao "Magalhães".


Quando se acreditava que esse episódio tinha ficado registado nos anais da propaganda lamentável, lá saltaram os governantes, em coro, em diligente visita às escolas onde as criancinhas exultavam com prenda tão generosa. Ocasião para ouvir e ler afirmações que entram no panteão do ridículo: o ministro que tutela a comunicação social e faz a gestão da propaganda oficial a assegurar, pela enésima vez, que ficam para a "história", e obviamente pelos melhores motivos; ou o timoneiro a conviver atrapalhadamente com os petizes, tentando usar da linguagem catita a que a criançada está acostumada; ou um qualquer secretário de Estado, impassível diante da rara oportunidade de brilhar ao lado dos superiores, a alvitrar que até os "senhores jornalistas" deveriam ter um exemplar do brinquedo. Estes amadores pareciam mais excitados do que os petizes que se abraçavam à maravilha da tecnologia tirada da cartola. Desbragamento em estado puro.


Foi tudo tão reluzente, tudo tão excitante, que a comitiva terá regressado aos ministérios respectivos a pensar como é inevitável que a populaça lhes renove o mandato. E a maioria absoluta. As pedras da excitação foram, porém, a anestesia para a grotesca propaganda que usou as criancinhas como figurantes necessários. Agora que tanto se fala na protecção da imagem – a mesma RTP servil, minutos mais tarde, passou uma reportagem sobre diabéticos e todos os pacientes apareciam na imagem com uma faixa a tapar os olhos que impedia a identificação – e tantos cuidados se colocam na protecção dos interesses das crianças, o governo tão esplêndido escorregou, sem dar conta, na sua própria casca de banana. Inocentes e indefesos petizes no papel de figurantes do acto de propaganda.


Dizem que há limites para tudo. Eu acredito que mesmo os limites se ultrapassam. Aquela propaganda toda, com os infantis estudantes a servirem os propósitos da propaganda, escolheu o seu próprio rótulo: pornográfica propaganda. Por um momento, desejei que a minha filha fosse aluna de uma das escolas que mereceram visita feérica de suas excelências. Só para o grato prazer de colocar essa gente em tribunal.


24.9.08

Regra número um das starlets de televisão: um sorriso de orelha a orelha


Há por aí um especialista do ramo capaz de elaborada explicação: dos benefícios do sempiterno sorriso. Como se fosse um perene massajar dos músculos faciais que dispõe bem. E cativa os outros, os que são agraciados com tamanha torrente de bem-estar, o contagiante sorriso que se assemelha a uma bebedeira de felicidade. Só por isso, dirão, as meninas que desfilam na televisão no papel de "apresentadoras" merecem os maiores encómios. Um serviço público que prestam, elas sim, no permanente sorriso que se esboça de orelha a orelha.


Só que a pose soa a uma indisfarçável plasticidade. Em palavras cruas, aqueles sorrisos infindáveis que se misturam com palavras, os sorrisos que emudecem as palavras que saem das bocas das "apresentadoras", são o ninho da artificialidade. Elas são meninas de plástico em todo o seu artificial esplendor. Um esplendor feito de nada, que se dilui na vacuidade daqueles esforçados, mas nada espontâneos, sorrisos. Sorrisos cansativos. Eu digo, sem recusar uma nota de mau humor: ao vê-las no interminável cortejo de boa disposição apetece ser macambúzio, o pior dos Eanes, incapaz de mostrar um sorriso. Apetece-me ostracizar o sorriso. Porque o sorriso não pode ser matéria tão fácil, pavoneado com a ligeireza das formatadas estrelas do néon televisivo. Mereciam a acusação formal, com direito a sentar o rabo em tribunal e tudo: pelo crime de banalização do sorriso.


Um dia destes, experimentei fazê-lo. Ensaiei um sorriso de orelha e orelha. Tentei mantê-lo, por uns segundos que fosse, para sentir o efeito. Ou por falta de treino, ou por inépcia congénita, fiquei cansado ao cabo de uns instantes. Cheguei à triste conclusão, que me deixa traumatizado: terei descoberto que sou sorumbático? É que me doíam os músculos faciais depois da experiência. Nesta altura, senti comiseração pelas princesinhas entronizadas campeãs da simpatia. As provações que devem passar para ostentar o sorriso emblemático o dia todo – ou, pelo menos, o tempo a mais (diagnóstico pessoal) que passam à frente das câmaras de filmar. O sortilégio da antipatia sobra para mim. Um doce sortilégio.


Pensando bem, até faz sentido que estas Barbies de aquacultura nidifiquem no espaço público. A populaça não anda longe de uma depressão colectiva. Para compensar, precisa de ver rostos, pretensamente bonitos, a exalar um convencido sorriso a toda a hora. Aposto que elas sorriem sempre. Até quando se zangam, a ira vem perfumada com o irrecusável sorriso. Porventura, até a dormir não se conseguem desfazer do estético sorriso. Tudo a bem da nação, na terapêutica dos males que atormentam a saúde mental do povaréu. As avozinhas inebriadas com o estilo airoso das sempre juvenis "apresentadoras". E um exército de candidatas ao trono por elas ocupado que teima no estilo, abusando do sorriso gratuito, desgastando o significado do sorriso. É então que o sorriso se esboroa na sua fragilidade, tão plástico irrompe.


O estilo espaventoso contraria os cânones da simplicidade. Por hoje, torna-se mais difícil cultivar a sobriedade. E ser-se genuíno. Os espectadores educados para o telelixo preferem consumir os sorrisos fátuos das embaraçosas "apresentadoras". Uns para os outros, como do código genético do telelixo faz parte o sorriso congénito das meninas. A volúpia do sorriso fácil desengana-se em si mesma. A plasticidade das "apresentadoras" e do seu sorriso faz o resto. Tomara que por aqui medrasse um povo todo sorridente, aprendendo a lição do sorriso fácil. Podíamos não largar a miserável condição – tamanha que vamos sendo passados, no campeonato dos países em crescimento, por aqueles que estavam tão longe de nós – mas seríamos, pudéssemos decalcar o mecânico e eterno sorriso das starlets de televisão, uma gente feliz. Alimentada no seu próprio sorriso.


Lamentavelmente, a gente na sua maioria adora e aplaude o sorriso dissimulado das plásticas estrelas da televisão, mas é incapaz de o praticar no quotidiano. A prova cabal que não sabemos praticar a teoria que aplaudimos. E, lamentavelmente ainda, os sorrisos de orelha a orelha só disfarçam as misérias que por aí abundam. A contagiante simpatia esbarra nas impenetráveis muralhas da realidade. O povoléu gosta é de ver as rainhas da simpatia a sê-lo, rainhas da simpatia. Depois, vão todos dormir o sono dos justos, convencidos que o mundo se deita embrulhado no mesmo conforto. Esboços de um mundo todo salpicado com os matizes do faz-de-conta. Com o timbre daqueles sorrisos tão cansativos.


23.9.08

Very institutional


Há gente que leva muito a sério os cargos de representação institucional. O zénite de uma carreira. Pressinto um desfasamento entre o discurso de justificação para o exterior e os sentimentos interiores em que navegam. Por um lado, a solenidade da representação da instituição, a muita importância por serem rosto e porta-voz da instituição, afinal, de todos os que são o substrato da instituição. Por outro lado, lá por dentro, uma irreprimível vaidadezinha: a sinecura revela muita importância, a confiança depositada pelos seus pares, a solenidade da distinção. Lá está: o zénite de uma carreira.


Quem tem um aguçado sentido de pertença a um colectivo leva mais a sério a representação de uma qualquer instituição que corporize aquela pertença. Os indivíduos atingem a plenitude quando se agrupam num todo, o grupo que se cimenta com as afinidades conjuntas. O colectivo atinge a maioridade quando consegue pôr de pé instituições. Defende a existência através do sentido institucional e das regras que alinhavam a pertença isenta de conflitos. Uma maneira de pensar que desvaloriza o indivíduo, remetido ao papel de selvagem enquanto vive fora de um grupo, ausente das instituições que dominam o seu egoísmo. Quem assim pensa glorifica a existência de instituições, como se inclina perante a socialização – a socialização sempre voluntária, nunca forçada – do indivíduo.


Por mais voltas que estes institucionalistas dêem, a individual condição da pessoa é indeclinável. Concedo: há tantas coisas que só somos capazes de alcançar em conjunto, através de pertenças múltiplas. Isso não traduz a diluição do indivíduo no grupo a que pertence. Nem significa a concessão perante os imperativos das instituições que cimentam a pertença ao grupo. Os benefícios que cada indivíduo recolhe da pertença reflectem-se na sua esfera individual. E quando alguém decide aderir a um grupo e trabalha no seio das instituições, não o faz por desinteressado compromisso pelo grupo e pelas causas que o norteiam. Ainda que essa seja a retórica que alicerça a pertença. Ainda que seja exteriorizado um espírito de missão sempre louvável para os espíritos encantados com a entrega a causas colectivas. Não há como negar: mesmo que seja crível o desapego e o altruísmo, o impulso vem sempre de dentro do indivíduo. É uma decisão individual. A pertença e a sagração das instituições são instrumentais ao impulso individual.


Não me consigo comover com a necessária pertença a grupos e menos ainda com a sublimação das instituições como expressão máxima da pertença. Como se as reuniões plenárias das instituições fossem a sagração máxima da pertença. No imperativo de levar muito a sério a reunião plena da instituição, o momento mais solene que consolida a fortaleza do grupo. Tudo isto me soa a ficção. O grupo é uma abstracção, como a "sociedade" é a abstracção maior que violenta a individual condição de cada um. A história cauciona os piores exemplos de demissão do indivíduo perante as exigências do grupo. Como indivíduos se vêm desapossados da sua essência, entregues num altar sacrificial no putativo nome dos interesses do grupo. O pior é a cegueira da gente que se vê transformada em carne para canhão dos desígnios traçados pelos que arquitectam as causas do grupo. Eis a ficção da pertença – e do ignóbil convencimento das anónimas gentes para se sacrificarem em nome do "interesse colectivo": as mais das vezes, apenas a transposição do interesse individual do guru, que se transforma em interesse colectivo.


Pode o funcionamento das instituições temperar este efeito. Serão intermediárias entre os indivíduos e o desígnio escolhido para o grupo, sobretudo se tiverem um funcionamento democrático. Desconfio: da manipulação de gente perversa, perfidamente inteligente para moldar os interesses do grupo à imagem dos seus próprios interesses; e do acomodamento de uma imensa maioria, acriticamente seguidora de quem consegue mobilizar gente à sua volta. Ao fim e ao cabo, as instituições são o retrato dos interesses de indivíduos predestinados que convencem os outros a tomar os seus interesses individuais como interesses do grupo.


Admito: esta retracção pelas pertenças e pela solenidade das instituições tem, como pano de fundo, um individualismo circunspecto. Ou o mau feitio impenitente. A persistência em permanecer desalinhado, um orgulho em ser ovelha sempre tresmalhada dos rebanhos ordeiros. É por isso que adoro a elevada importância da gente que leva muito a sério a sinecura institucional. Lá no fundo, a vaidade dos penachos.


22.9.08

Ladrão que roubo ladrão tem cem anos de perdão


Das notícias deliciosas. Um manjar opíparo que encanta os sentidos. Há poucas assim, enegrecido o panorama noticioso por entre a tristonha penumbra do que o mundo é e a atracção pelo sensacionalismo que atira a imprensa para uma qualidade que não se distingue do lixo. Só que o mundo tem coisas belas para oferecer. Por isso é que há poesia – ou talvez haja poesia porque os poetas andam arredios do mundo.


Seja como for, há pontuais oferendas que destilam o perfume do encantamento. Diante delas, até os empedernidos cépticos esboçam um sorriso. Até eles, por um momento que seja, se enamoram pelo mundo de que tanto desconfiam. Nem que seja para provar que o pessimismo metódico tem dias que esbarram no seu desmentido. Nessa altura, eventos esparsos rompem com o petrificado pessimismo. Que se descobre na sua surpreendente fragilidade: afinal as convicções do céptico militante também se esboroam quando os olhos testemunham episódios que são a negação daquela militância. Desde que haja arejamento mental para não bater a porta aos luminosos acontecimentos que ensaiam uma pontual manifestação nos antípodas do pessimismo costumeiro.


Na semana passada, a onda de criminalidade que cavalga – negando a ficção em que vivem mergulhados os maravilhosos governantes – teve o seu momento inusitado. Uma pandilha atacou uma repartição de finanças perto de Lisboa e de lá saiu com o pecúlio de impostos. Estou a imaginar os moralistas do reino, aqueles que acreditam piamente que todos temos que pagar impostos porque esse é o preço da socialização que garante a ausência de selvajaria. A vê-los, indignados, perante este crime de lesa-majestade. Suprema ousadia, dirão. Que assaltem bancos, ainda se entende: um banco é uma entidade privada e, que se saiba, a Caixa Geral de Depósitos (CGD) não reúne as preferências dos gatunos especializados em bancos. Eles lá sabem: o banco do Estado não se assalta, ou assalta-se menos, ou assalta-se porque os desesperados profissionais do crime, do alto da sua ignorância, nem sabem que a CGD é o "banco de todos nós".


A lógica será esta: o que pertence ao povo nunca devia ser objecto de roubo. Os sacerdotes da bonomia do Estado protestarão duplamente contra os patifes que irromperam pela repartição de finanças e roubaram o pecúlio dos impostos. Por um lado, os impostos são como as esmolas das igrejas – intocáveis. Devia haver decoro entre a gatunagem potencial, uma espécie de código de conduta, os mínimos necessários que até ladrões não se escusariam a respeitar. Os impostos são o preço necessário para a construção da sociedade, um instrumento ao serviço do progresso da nação – assim nos ensina a doutrina oficial. Por outro lado, neste socialismo em acção em que vivemos, é de bom-tom concordar com o preceito de que os ricos pagam mais impostos em favor dos pobrezinhos. Aquilo a que se convencionou chamar "redistribuição". Eis a inadmissível ousadia dos gatunos da repartição de finanças: impediram que aquele dinheiro dos abastados fosse redistribuído pelos necessitados.


Como esta gente deve estar tão indignada, dou daqui umas sugestões para evitar furtos destes no futuro. Mudar as leis, por exemplo, para criminalizar os roubos de repartições de finanças como crime de terrorismo contra o Estado. E, porque não, a retirada de todos os direitos humanos dos pérfidos assaltantes de impostos que pertencem ao povo, se por hoje há quem defenda que as garantias fundamentais podem sofrer entorses se elas forem obstáculo a interesses supremos. Uma espécie de Guantánamo onde seriam enclausurados os gatunos de impostos, uma lição que impediria novos roubos de impostos. Para grandes males, grandes remédios. Os grandes desígnios não podem soluçar perante estes imponderáveis.


Eu tenho uma visão muito diferente sobre o assalto à repartição de finanças. Que me perdoem os que acharem a ideia despropositada, ou longe dos padrões convencionais por onde somos aconselhados a pisar. Se confessar a veia anarquista talvez me desculpem o excesso, mas continuo a achar um imposto sinónimo de roubo – um roubo com a aquiescência das gentes, tão formatadas para pagarem sem protestos. Ora se um imposto é um roubo institucionalizado, quem rouba um ladrão não será decerto ladrão normal. Será ladrão que merece condescendência, se não até aplauso.


É que, nem de propósito, foi o primeiro-ministro a que temos direito que se lembrou de inventar uma taxa contra as empresas petrolíferas a que deu o nome de "taxa Robin dos Bosques". Não era Robin dos Bosques que roubava aos ricos para dar aos pobres? Com a mania das obras faustosas, pagas com impostos desviados dos contribuintes à força, até parecemos um país muito rico. Se os impostos servem para pagar devaneios destes, o seu roubo simboliza a subtracção de quem é rico. E todos concordaremos que o produto do roubo aproveita a alguém que é mais pobre, muito mais pobre.


Diante disto, só um demorado aplauso aos ladrões da repartição de finanças. Sem que se entenda o diagnóstico como uma aproximação ao marxismo. Robin dos Bosques não foi contemporâneo de Marx. E, que se saiba, Marx não se inspirou em Robin dos Bosques.


19.9.08

Teia de aranha


Às vezes, os passos trocados desaguam num terreiro onde se alcança uma teia de aranha. Espessa teia de aranha, como se fossem as areias movediças onde os pés se afogam ao cabo de uma fatal distracção. O pior é quando, naquela encruzilhada, o sentido escolhido não foi o resultado de uma distracção, antes o exercício da convicção. Nessa altura, arrependimento algum possui a alta magia de subtrair o corpo da teia de aranha, seu leito fatal.


O corpo então debate-se nos fios viscosos da teia. Que se enredam no corpo, desmultiplicando-se vindos do nada. No seu afã, o corpo parece deslaçar-se de uns quantos fios da grande teia. Só que logo a seguir há outra parte do corpo já tomada por um entrelaçado que imobiliza um membro, o torso, outra parte qualquer. Quando a escuridão varre a luminosa luz diurna, a teia de aranha parece espessar-se mais ainda, aprisionando o corpo sem remissão. Adormece os dedos das mãos e dos pés, que deixam de se debater, consumidas as forças contra o paredão inamovível daqueles fios entrelaçados. E parece que na noite não tem fim.


E, contudo, a teia de aranha é um lugar de contradições. Nela se entretece uma multidão de frágeis fios salivados pela aranha. Vistos como peças isoladas, os fios são de uma fragilidade assustadora, quebradiços ao mínimo toque. Só que a viscosa teia em que se tecem é uma impenetrável parede. Onde cada fio isolado mostra fraqueza, no seu conjunto, tecidos numa intrincada teia, agigantam-se numa férrea estrutura onde as presas encontram a sua sepultura, só à espera que o aranhiço chegue para a degustação.


Não é o caso. Apenas os movimentos manietados pela solução viscosa que se desprende de cada fio, uma gelatinosa substância que anestesia os movimentos. A certa altura, o corpo deixa de se debater. Faz a concessão final. E, nessa altura, é como se o corpo passasse a fazer parte da teia de aranha. Salivando ele também os seus próprios fios. Tecendo uma carapaça onde se refugia do que lhe é exterior. Apanhado numa teia, transforma-a na sua fortaleza inacessível. Uma teia reflexiva, não uma teia predadora. Não é um emaranhado para atrair à armadilha quem se ofereça como sua presa. Ao contrário, a espessura salivada retrai estranhos e curiosos. Os fios viscosos, como se fossem as paredes untadas que impedem a escalada.


A teia, um sinal retemperador. Dos males que o parecem ao primeiro contacto. Que, todavia, se tornam num arremedo profiláctico, uma reserva mental que protege, em antecipação, dos alçapões traiçoeiramente espalhados, dos aleatórios alçapões. Não é o fermento da desconfiança metódica. Apenas um também metódico recato do mundo em redor. Porventura com uma maleita associada: o temerário encasular, como se desviar o olhar das doenças pungentes mostradas pelo mundo fosse vacina individual.


Os gestos enérgicos que ao início tentavam deslaçar o corpo da poderosa teia deram lugar à tranquila pose diante das coisas do mundo. Em vez de ser presa da teia tornou-se feitor da teia. Afinal, a concessão que chegou com a noite implacável fora a poção mágica que tanto procurara algures. Estava por entre os sucessivos fios viscosos que enleavam o corpo no casulo salvífico. Às vezes, o poço fundo, o assustador e escuro poço que não parece ter fundo, encerra misteriosos lugares que se oferecem como sítios de onde sussurra a regeneração. É como se os olhos andassem perdidos, por tempos infindáveis, a olhar para o lado errado. Como se um pedaço do cérebro angustiado pelas sombras nutrientes do desconhecido, temendo os insondáveis caminhos, se recusasse a irromper por aí. A ousadia da aventura desvela o lado que sempre estivera escondido. Afinal, o desconhecido na sua terapêutica forma.


A teia de aranha deixara de ser o manancial de pesadelos. Era o segredo ocultado pela espessura dos fios que não atraiam ninguém. Do lado de lá dos fios entrelaçados, sem receio daquela parede viscosa, o ar enfim purificado. Um mundo todo diferente. Mesmo que seja feito de uma espessa manta de ilusões.


18.9.08

Das incompreensíveis injustiças: o primeiro-ministro da Tailândia demitiu-se por ter participado num programa de culinária


Mergulhados no vezeiro etnocentrismo, estamos mentalizados que a bizarria vem quase sempre de longínquas paragens. Os sítios que, de acordo com os nossos padrões, rotulamos como lugares exóticos. São os sítios onde acontecimentos incomuns baralham os padrões daqui. Curiosos, damos uma espreitadela no acontecimento raro, como se andássemos por um jardim zoológico à cata de espécies que só em cativeiro teremos oportunidade de ver em carne e osso. Depois soltamos um esgar arrogante, a meias com um sorriso sarcástico, que sela a, acredita-se, nossa tamanha "superioridade civilizacional" (assim mesmo, entre aspas). É nessa altura que não damos conta como os planos se invertem: e o que se pensa ser superior desagua numa escusada inferioridade.


A curiosidade tem algo de antropológica. Ao sermos espectadores de um episódio fora do comum, apetece interrogar pelas causas. Que traços culturais específicos o possibilitam? Que idiossincrasias particulares se combinam como nutrientes do acontecimento que baralha os nossos quadros mentais? Depois deixamos funcionar as gavetas fáceis onde as coisas se encaixam em simplistas categorias. A bazófia de cá cauciona o convencimento de que somos superiores aos outros, logo engavetados no rótulo de gente que pertence a lugares atrasados. Mesmo quando há indicadores que mostram que o subdesenvolvimento de outrora é assunto encerrado, com alguns países (sobretudo asiáticos) a mostrarem uma pujança económica que faz inveja às economias pouco mais que estagnadas do auto-proclamado "mundo desenvolvido".


Puxando lustro às convenções: a Tailândia é um país atrasado? Para os auto-convencidos da notável superioridade civilizacional do "ocidente", sim, é atrasado. A prova de como esses assertivos juízes estão errados nem se funda nos indicadores económicos e sociais que seriam suficientes para negar o rótulo. Por hoje, vou provar que a Tailândia vive em maioridade social por causa da decisão tomada pelo primeiro-ministro, que se demitiu ao ter sido apanhado a participar num programa televisivo sobre culinária – que pecado imperdoável...


Dou de barato que a gente por dentro da política se deve dar ao respeito, evitando dar o flanco para a chacota dos outros. E vou dar de barato que a presença num programa de televisão sobre culinária não condiz com a solenidade do cargo de primeiro-ministro. Vou aceitar estas premissas, mesmo que delas discorde. Raciocinando através delas, a pergunta sacramental: em que outro lugar do mundo, mesmo nos que reclamam para si a condição de avançados países, este episódio daria lugar à deposição do líder do governo (ou de quem quer que seja)? Logo fermenta outra pergunta: não é factual que em países – chamemos-lhes assim: sérios –, polémicas mais graves ou escândalos vistosos não servem para remover políticos das sinecuras que ocupam?


O primeiro-ministro da Tailândia deu o exemplo, acossado por todos os lados porque muita alma tresandando uma impoluta moralidade terá ficado ofendida com a banal participação num banal espectáculo de culinária. Se calhar, banalidade a mais, incompatível com a solenidade do cargo. Demitiu-se. Noutros sítios, homólogos seus teimam em ficar no lugar mesmo quando há histórias mal contadas acerca da estalinista concepção do curriculum vitae. Afinal, onde está o país atrasado? E aqueles que satirizam a Tailândia, riem do quê?


Há uma maneira diferente de olhar para o estranho caso de um primeiro-ministro empurrado para a demissão só por ter mostrado na televisão os seus dotes culinários. Este "só" não é inocente, nem aparece por acaso. Caem os parentes na lama a alguém por confessar em público que gosta de cozinhar, mostrando de seguida os dotes culinários? Mesmo que esse alguém seja tão importante como um chefe de governo? Por acaso a culinária é uma arte de proscritos, uma arte menor onde apenas habita uma ralé? Se assim fosse, quem frequentava restaurantes? Quem tirava o prazer da gastronomia, das suas inventivas criações? O primeiro-ministro da Tailândia quis mostrar uma face humana, uma humildade que os residentes no poleiro da política não estão acostumados a praticar. No rescaldo, foi crucificado. No rescaldo, também, a nobre arte da gastronomia nunca foi tão mal tratada.


O que mais estranho é a ocultação da dimensão simbólica da presença do primeiro-ministro da Tailândia naquele programa sobre culinária. Para o mal ou para o bem, não é o primeiro-ministro que cozinha os destinos do país?


17.9.08

Da pérfida moral que as criancinhas aprendem nas historietas infantis


Agora que a minha filha descobriu que sou um exímio contador de histórias infantis ao deitar (…), começo a descobrir certas subtilezas dessas historietas. E fico surpreendido como aquela gente que cultiva o politicamente correcto, aquela gente tão pressurosa em formatar as cabecinhas de um rebanho que querem ordeiro, apascentando em terras impolutas de devaneios consumistas e materialistas, ainda não se tenha lembrado de verberar as historietas infantis. Ou andam distraídos, ou não contam histórias infantis aos seus filhos. Ou narram apenas histórias que se encaixem nos cânones dos modernismos politicamente correctos, ou versões dessas histórias que venham extirpadas dos vestígios que possam corromper o "novo homem novo" que se espera que as criancinhas venham a ser. Ou, simplesmente, não têm filhos.


Honestamente, fico espantado como estes sacerdotes do pensamento impoluto, sempre vigilantes para impedir desvios que nos coloquem para além do limiar da sua moralidade necessária, ainda não tenham percebido como as histórias infantis são uma perturbante fonte que tira os meninos do caminho certo. Ainda por cima, esta gente é tão dada a esotéricas teorias da conspiração que menos se entende que ninguém tenha protestado contra os desvios (decerto instigados por alguém a soldo do grande capital) a que os petizes são levados pela insidiosa mensagem das histórias infantis.


Passo a exemplificar: lia o "Gato das Botas" e apercebi-me como toda a história formata a cabeça das criancinhas de forma tão errada. A fábula gira em torno de um gato servil, um gato falante e maquiavelicamente inteligente. Munido de umas altas botas, que lhe darão poderes mágicos para congeminar as artimanhas que favorecem o seu dono, vai compondo as peças de um puzzle que manipula só para proporcionar ao dono, um jovem afundado na pobreza, uma faustosa vida futura. Primeira ilação da insídia contida na história: os meninos aprendem que a pobreza não interessa a ninguém. Primeiro laivo do hediondo capitalismo que coloca o bem-estar material acima de tudo. Começam a aprender pela cartilha errada – diriam, se estivessem atentos, os sacerdotes pressurosos do lirismo dominante.


O Gato das Botas congeminou um plano para casar o rapaz seu dono com a princesa herdeira do reino. Segunda ilação: as criancinhas são convidadas a mergulhar num mundo fantasioso, feito de belas princesas, imaculadas princesas, que pertencem a anacrónicos reinos. Haverá aqui o dedo de gente a soldo do capitalismo, como já sugeri. Gente que é também saudosa da monarquia. Mais um ensejo para as vozes que alimentam teorias da conspiração protestarem contra o enviesamento das historietas infantis. Narram um mundo de fantasia, um mundo que está em extinção. Uma realidade que teima em manter vivos traços ancestrais e reprováveis (reis, princesas, monarquias) dentro da modernidade que querem moldar ao seu jeito.


Onde os valores preocupantes – ou a ausência deles – se mostram em toda a sua pujança é nos detalhes do plano congeminado pelo Gato das Botas. Encena o afogamento do dono à passagem da carruagem real, motivando a comiseração do rei e da princesa pelo pobre rapaz que ia perdendo a vida afogado. Depois convence todos os camponeses que assistiam à passagem da carruagem real a dizerem que conheciam o rapaz e que ele é o marquês de Carabás. A lamentável apologia da mentira. E a apologia da instrumentalização do outro, levando-o a mentir como meio para atingir um certo objectivo. As criancinhas, aprendizes de Mourinho pela mão da história do Gato das Botas.


A perfídia total que açambarca as cabecinhas em formação tem o seu zénite quando o Gato das Botas se apropria de um castelo, transformando o gigante seu proprietário num rato que de imediato se transforma em sua refeição. Portanto, as crianças aprendem que o direito de propriedade é muito relativo, diria, volátil. De seguida, o Gato das Botas recebe o dono, na companhia do rei e da princesa. O rei rende-se a tanta riqueza. Chega a dizer: "Tanta riqueza, senhor marquês. Tem que casar com a minha filha". Lá está: como não houve nenhum sacerdote das coisas politicamente correctas que tenha apontado o dedo a esta lamentável instrumentalização dos petizes que hão-de ser os senhores do futuro? Como é que nunca se insurgiram contra a banalização dos afectos? Para, no final, concluírem que casamentos de conveniência, ao arrepio da vontade das mulheres, não acontecem apenas nas sociedades islâmicas. Nesta altura, entrariam em cena as exacerbadas feministas para denunciar o viés de género das histórias infantis. Que eu saiba, nunca o fizeram. Incompreensivelmente.


Admirado. É assim que me encontro depois de ler a história do Gato das Botas. Não pela história. Mas pelo silêncio dos sacerdotes do politicamente correcto. Por nada dizerem contra esta maquinação que – de acordo com a sua habitual retórica – formata os monstrozinhos do futuro, um exército de gente que aspira a parecer o que não é. Os Vale e Azevedo de tempos vindouros.


16.9.08

Gostava de dizer isto ao rapaz dos graffiti


Discordo da direita de sacristia, tão apessoada nos seus inamovíveis costumes, quando destila impropérios contra os graffiti. Já ouvi, em tempos, o CDS de Paulo Portas propor legislação restritiva sobre os graffiti que redesenham a geografia urbana. Acho excessivo. Na diarreia de leis que nos consome, as leis devem-se voltar para coisas importantes em vez de se debaterem com o acessório. Era assim que pensava e agora estou na dúvida. Pois hoje fui vítima de um rapazola que decidiu dar azo à criatividade no meu carro. Um belo desenho a ocupar uma das portas traseiras, um azul florescente a sobrepor-se ao preto que é a cor do catálogo.


Há muitas maneiras de encaixar isto. Uma delas nem merece muito arrazoado: o ganapo decerto desprovido de inteligência, talvez mesmo carente de neurónios, incapaz de perceber que a sua fantástica impressão digital de artista tem um custo – o número de dias de trabalho que me vai custar a repor a pintura no estado original. O artista que me perdoe: não duvido da sua proficiência, dos seus dotes como futuro ícone da representação graffítica, mas que não me leve a mal por desdenhar da oferta que plantou na porta do meu carro. Prefiro vê-lo a uma só cor – a cor que trazia quando o fui buscar ao stand.


Andamos pela Europa fora e, nas grandes cidades, os graffiti são ponto de honra. Por todo o lado, em paredes de casas, em painéis de publicidade, pintando de uma ponta a outra carruagens de metro e de comboios urbanos. É uma forma de expressão dos mais jovens, da seita enamorada pelo rap e pelo hip-hop, que puxam da paleta de tintas e desatam a mudar o lustro das paredes e de painéis publicitários e de carruagens de metro e de comboios urbanos, dando-lhes cor e movimento. Sim, os graffiti embelezam as cidades. Convencionou-se até que não se deve cercear a criatividade dos jovenzinhos quando modificam o elemento conceptual da tela que se põe a jeito para os avassaladores graffiti. Não vão os jovenzinhos sentir a sua liberdade de expressão tolhida pelos velhos do Restelo que ainda não foram capazes de compreender a elevação estética dos graffiti.


Juro, e sem ponta de ironia, que uma cidade enxameada de graffiti não me transtorna o espírito nem agride a vista. Só que não acho aceitável que certos sectores prefiram dar prioridade à "criatividade" dos jovens artistas dos graffiti, desvalorizando outros valores. E há aqui um valor que é determinante: a propriedade. Bem sei que em certos lugares e de certas franjas ideológicas há líricas tentativas de resgatar um ideário que questiona a eticidade da propriedade. Há até um jovem lírico que, a culminar um raciocínio muito bem elaborado, conclui o seguinte: "(a) propriedade como extensão do corpo, como a via Locke, é uma coisa. A propriedade tal como existe (…), como um direito exclusivo e irrestrito sem consideração do valor da igualdade, é outra. E essa outra coisa, se não é um roubo, é pelo menos um ultraje". Já percebi: é um ultraje ser proprietário do meu carro. Donde, o graffiti tem toda a legitimidade: o artista terá manifestado o seu ultraje pela existência daquele carro, e dele ter um proprietário. Longe de a isto se poder chamar, e só, vandalismo. Se isto não é o mundo virado às avessas…


Como a malta do rap e do hip-hop e dos graffiti e dessas merdas se gaba de uma notável consciência social, há neste gesto algo que não bate certo. É natural que eu queira fazer regressar a cor preta onde neste momento se encontra o gatafunho azul florescente. Ora, isso custa dinheiro. Que sai de um remediado trabalhador para os bolsos de gente capitalista, decerto mais endinheirada: a empresa que produz a tinta, o concessionário onde o carro vai ser reparado. Afinal de contas, o imbecil dos graffiti está a soldo do grande capital. E, afinal também, ou esta gente é desmiolada ou a retórica da igualdade não passa de um poster que gosta de ostentar sem a saber praticar.


Eu tenho uma vingança para o magnífico artista que alterou o aspecto do meu carro: já que não lhe posso enfiar goela abaixo dois litros da mesma tinta florescente que utilizou para roubar espaço ao preto da carroçaria, deixo-lhe aqui esta mensagem. A sua "obra" é uma impressão digital tão idêntica às marcas deixadas por gaivotas atrapalhadas com a sua disenteria particular. Tão corrosivas, uma como a outra. Tão merdosas, uma como a outra.


15.9.08

A cantora das trezentas plásticas, o político que faz dois mil abdominais por dia e o labrego que veste fatos Armani


É espantoso como as massas se deixam inebriar por gente de plástico. Gente artificial, quase irreal. Tudo neles soa a maquinação, entre uma bancada de cosméticos que transfigura (ou, deveríamos dizer, desfigura), cirurgias que recompõem a pele e têm o condão de recuar a aparência no tempo, tratamentos dispendiosos que desligam a idade real da idade biológica. Uma outra forma de serem modelos – aqui modelos noutra acepção da palavra: gente modelar, gente modelada no mais profundo que a artificialidade pode alcançar. E, no entanto, uma plasticidade que atrai a horda, tal o exército de seguidores, o séquito que se desfaz em homenagens mecânicas à plasticidade de quem veneram.


Uma cantora exótica, cinquentona que não o parece, sabe-se lá quantas operações plásticas naquela epiderme. Desconto o género artístico, a descompasso com as minhas preferências estéticas. Daqui sairão palavras apenas sobre a feérica imagem, o cartão de apresentação da artista. O eterno problema do endeusamento de artistas. Os apaniguados que vão de véspera e ficam a dormir ao relento à entrada do recinto onde a artista será consagrada, tributam a imagem cheia de artificialidade que dali exala. Estarão na primeira fila, ainda assim suficientemente longe para não terem pretensões de estarem perto demais da deusa, aos gritinhos histéricos não condizentes com a já nada adolescente idade. Glorificam a artista mais pelo que ela aparenta. Contudo, quantas destas pessoas fariam seu o estilo de vida que ela tem levado ao longo da sua vida?


A plasticidade dominante contagia-se do universo artístico para o mercado político. Já não é novidade: que os políticos se destacam não pela competência, não pelas ideias que escasseiam cada vez mais. Distinguem-se pelo embrulho com que aparecem. Aliás, evite-se perscrutar para além do brilhante papel de celofane que encanta os incautos e os que têm a certeza que o não são, pois só se há-de encontrar o vazio. A ensurdecedora perfeição é que motiva a desconfiança. Tudo tão modelado, cirurgicamente composto, sem detalhes que escapem à equipa que compõe a figura, o altar inacessível de onde exala uma perfeição inumana.


Li há dias: um antigo primeiro-ministro espanhol, que se diz retirado mas que continua a adejar sobre a paisagem política, continua na ribalta. Um exército de seguidores prossegue o encantamento com a fatuidade da personagem. Possivelmente desde as catacumbas da inenarrável imprensa cor-de-rosa dali do lado, tão ao jeito da umbiguista gente que adora a nobreza e a burguesia brasonada, os maiores encómios ao ar informal com que a personagem aparece – ele são as camisas desportivas desabotoadas, as pulseiras "hippy" (?!), até o patético bigode que tem vindo a evaporar-se, o corpo musculado que ostenta uma idade biológica quinze anos abaixo dos cinquenta e cinco que o bilhete de identidade anuncia. Tudo tão bem orquestrado que o "personal trainer" veio dizer que o homem faz dois mil abdominais por dia!


(Parêntesis para a perplexidade pessoal. A matemática não engana. Levo quinze minutos diários para fazer duzentos abdominais. É só fazer as contas. Dois mil abdominais são dez vezes mais. Dando de barato que a progressão geométrica do tempo é difícil de alcançar, o herói da direita espanhola teria que gastar duas horas e meia por dia a fazer abdominais. Sem pingo de inveja, acho que se apanha mais depressa um mentiroso que um coxo.)


Quando vejo a fantasia que envolve estes exemplares da direita bafienta – este, como o presidente francês que se estica em cima de tacões de dez centímetros para não parecer minorca, ou do primeiro-ministro italiano que desfila diariamente uma patetice infantil e aquele improvável ar blasé – entendo que as esquerdas tenham que existir. Há gente que morre pela boca, tal como o peixe. Outros são atraiçoados pela sua imagem tão imaculada, tão perfeita, um penteado sem um cabelo fora do sítio, um cortejo de inanidades que descerram diante do público exemplares de uma perfeição que só pode ser inumana. Esta gente tão direitinha é outro motivo pelo qual ando tão longe desta direita. De repente, porém, uma fulgurante excepção: o presidente da câmara de Londres, excêntrico e com imagem descuidada. Uma personagem mais próxima da gente comum, com os seus pecadilhos e devaneios. Porventura outro produto da imagem bem elaborada. Ao menos, uma imagem que se distancia da imaculada perfeição dos outros.


Por cá, também os há. Por exemplo, o labrego que aparenta aquele ar irritantemente modernaço. Pode envergar fatos Armani que não deixará de ser um labrego. Os ofendidos que perdoem o assomo de "fascismo social", mas quem andou a projectar pela Beira Alta casas do quilate estético há tempos revelado tem o seu cartão-de-visita – o cartão-de-visita de um labrego sem remissão. Não, não é a reconversão urbana, nem as causas modernas património genético do indissociável politicamente correcto, que fazem extinguir os vestígios da labreguice. Esses são inatos, por mais fatos Armani que venham a envolver a figura.


De tanta gente feita de plástico, depois vêm os arautos da modernidade clamar pelo humanismo. Uma contradição de termos.


12.9.08

Peixe : Avião, "A Espera é um Arame"

Os ateus não deviam gozar feriados religiosos – disse


Por mais que se afiance o Estado laico, os vestígios da religião católica permanecem vivos. Nos feriados, por exemplo. O calendário oficial permeável à tradição católica. Impondo-se a todos, católicos, gente de outros credos, aos ímpios que negam a existência de um deus. Nos feriados religiosos, uma externalidade em favor dos não crentes. Beneficiam, por arrastamento, de algo em que não acreditam. Quem conhece um ateu que proteste contra um feriado qualquer, mesmo dos que têm o selo do catolicismo?


Por isso ouvi dizer: "os feriados religiosos não deviam aproveitar aos ateus". Sabia, ao sentenciar a frase, que era mais uma provocação ao interlocutor ateu que coisa que fosse praticável. Sujeitou-se a ouvir o ateu a retorquir com uma interrogação: "e como se fazia o cadastro de crentes e ateus?" Que o cadastro seria peça fundamental para saber quem ficava a gozar do feriado religioso e quem continuava a trabalhar. Até podia ateus haver que ocultassem a sua condição, só para não serem impedidos do descanso dos feriados religiosos. Afinal, os ateus são gente tão pouco recomendável, com uma moral tão duvidosa, porventura sem espinha dorsal, que não se estranharia que fizessem de conta que não eram aquilo que dantes se anunciavam só para tirarem partido dos feriados religiosos.


Insistia: no fim de contas, os feriados religiosos consagram acontecimentos que só têm significado para quem pratica o catolicismo. Entre crentes devotos e a híbrida categoria dos "católicos não praticantes", só a eles deviam aproveitar os feriados com a chancela da igreja católica. Aliás, há ateus que têm o atrevimento de não saberem o que é consagrado em feriados religiosos. Eu não sei para que serve o 15 de Agosto. Estava convencido que o primeiro de Novembro era o dia das pessoas fazerem o cortejo anual pelos cemitérios, reservado o dia para homenagear entes queridos já sepultados. Afinal, o primeiro dia de Novembro celebra todos os santos, sem discriminação dos ditos.


A indignação dos ateus terem direito a descansar nos feriados religiosos não cessava. O pior, dizia, é que os ateus cometem a aleivosia de satirizar a igreja. Não tementes a deus, escorregam para heresias a torto e a direito. Permitem-se parodiar coisas tão sérias como os dogmas católicos. Para depois, num arroubo de incoerência, se deixarem dormir até tarde quando o calendário regista dia festivo para a igreja católica. Prova definitiva de uma falta de coerência dos ateus, manchando o seu trajecto de vida. De braço dado com o argumento final que a católica esfregava, altiva, na cara do ateu: a generosidade maior dos católicos, que agraciam os ateus com dias de descanso que se ficam a dever a algo em que eles não acreditam.


Mas: não dizia no início da conversa que os ateus não deviam ter direito aos feriados religiosos? Quem, no fim de contas, era apanhado no alçapão da incoerência? O ateu que goza o feriado católico e goza com a religião católica, ou a crente convencida da generosidade dos católicos no legado dos feriados que também aproveitam aos ateus, mas depois reclama que a herética gente devia trabalhar nos feriados religiosos? Que culpa tem o ateu das meias tintas do Estado que se diz laico mas que tem um ror de feriados religiosos?


Não propunha o ateu a extinção dos feriados religiosos. Ele queria perceber que o laicismo em letra de lei e com o cunho de políticos dados a um republicanismo intolerantemente laico não podia aniquilar as arreigadas tradições católicas de uma larga fatia das gentes. Era o ateu a perceber que faz parte de uma minoria, que nada contra a maré engrossada pela maioria dos católicos. Na volátil fronteira entre as tradições religiosas e a cultura popular, tudo num caldo que identifica uma certa idiossincrasia nacional.


O ateu não queria banir os feriados religiosos. Recusava essa intolerância. Só queria que a católica não fosse intolerante ao ponto de reclamar a exclusividade dos feriados religiosos para os crentes da sua religião. Que cada um fizesse do feriado o que bem entendesse.


11.9.08

Everest, um sonho


Não temos todos um sonho exótico, um projecto faraónico que sabemos ser quase impossível alcançar? Uma qualquer façanha pessoal, daquelas que até aos mais modestos faça garbo. Um lampejo de heroicidade pessoal. Qualquer que seja o género de feito, que as façanhas mudam de tonalidade consoante quem as idealize. Que um feito pode-o ser para uma pessoa e ser uma irrelevância para o vizinho do lado.


O meu projecto distante, muito distante em tudo, chegar ao alto do Everest. A montanha mais alta do planeta, que se eleva a quase nove mil metros de altitude. Um fascínio que vem desde criança, quando os olhos se colavam ao ecrã da televisão sempre que passava um documentário sobre temerárias expedições ao Everest. Naquela altura, a inocência da tenra idade semeava o deslumbramento pelo risco dos alpinistas que se aventuravam palas ladeiras geladas da montanha. Por vezes, o dramatismo encharcava os documentários quando expedições terminavam com a morte de alpinistas – às vezes apanhados numa inesperada e traiçoeira tempestade que os enregelava até à morte, outras vezes escorregando para precipícios inacessíveis, suas sepulturas finais. Havia, naquela heroicidade dos ousados alpinistas, uma inexplicável magia que era a razão de parte do fascínio de então.


A entrada pela idade dentro foi amolecendo os traços imberbes saídos da mais pura irracionalidade. Todavia, todo o encantamento pela alcantilada montanha manteve-se. Já não era o arrebatamento pela heroicidade gratuita, no fio ténue que separava os aventureiros da morte. Era um magnetismo que as formas da montanha deixavam em forma de rasto. Imagens do Everest ao longe continuavam a prender a atenção por demorados momentos. Cada notícia de um alpinista que ascendia ao cume da montanha era lida de uma ponta à outra. As expedições de João Garcia, passadas a texto, seguidas com atenção. E, apesar de ocasionalmente continuar a haver gente a perder a vida na montanha, persigo no encantamento quase religioso pelo Everest – e quase religioso porque estas palavras que aqui compulso são um difícil ensaio para passar um sentimento à forma de palavra.


Consta que a escalada do Everest se banalizou. Há tempos, a propósito da tragédia numa montanha que rivaliza em grau de dificuldade (o K2) que levou a vida de um punhado de experimentados montanhistas, a imprensa dedicou várias páginas à escalada das altas montanhas dos Himalaias. Soube que há turismo organizado na área, permitindo a interessados sem grande experiência tentar a escalada de alguns desses picos. Há quem lhe chame turismo vaidoso, para gente que depois regressa à terrinha para se gabar do feito alcançado. Esta forma vaidosa de associar turismo com a escalada do Everest é, dizem os puristas, uma adulteração do espírito com que os pioneiros encararam as traiçoeiras ladeiras até ao cimo da montanha. Sem as provações dos alpinistas profissionais, que agora até as tendas nos acampamentos-base possuem ar condicionado! Turismo pago a peso de ouro: os amadores aventureiros que ambicionem chegar ao tecto do mundo pagam trinta mil euros só por um lugar numa expedição.


Não vou contestar o rótulo depreciativo que os puristas colam à "comercialização" do Everest. Há muitas maneiras de encarar as coisas. Até uma escalada ao cume do Everest. Ao que sei, há vias de lá chegar que são menos difíceis, onde a exposição ao risco é menor. E as vias mais inacessíveis só ao alcance dos alpinistas profissionais, onde a probabilidade de acidentes é maior. Há quem julgue que só são válidas as chegadas ao cimo do Everest se não houver a ajuda de máscaras de oxigénio. As expedições organizadas para aspirantes a alpinistas e gente que depois ostenta a façanha obrigam à utilização de máscaras de oxigénio a partir de determinada cota, quando o ar se torna rarefeito. Que interessa discutir a pureza da escalada, ou se há ostentação nestes aventureiros endinheirados que procuram chegar lá cima? Nisto, como na compra de um potente e vistoso automóvel: há quem o faça por puro gosto, por ser apreciador; e quem o faça por pura ostentação.


É discussão irrelevante. Oxalá pudesse um dia fazer como um jovem economista do Banco de Itália que, no seu gabinete em Roma, tinha uma discreta fotografia tirada quando atingiu o cimo do Everest. Não o faria como espectáculo gratuito para os outros verem. Seria, e apenas, o simbólico orgulho de ter pisado a tecto do mundo ao cabo de uma (imagino) extenuante subida pelas ladeiras íngremes e geladas da montanha mágica. Uma mania então deixada para trás.


10.9.08

A falácia da democracia participativa – ou os meninos só sabem jogar com regras feitas à sua medida


Há por aí muito intelectual que reclama a paternidade do refrescamento da democracia. Desiludidos com o rumo da democracia tradicional – a democracia parlamentar representativa – querem orientar a democracia para formas que, argumentam, se aproximem da participação popular. Sem que esta participação se resuma, como agora, a depositar o voto nas urnas de cada vez que há eleições. Acham que é uma participação esparsa. A pouca assiduidade sela a reduzida qualidade da democracia que nos é oferecida. Entre as eleições, os eleitos actuam de forma pouco democrática: fazem o que bem entendem, quantas vezes alijando-se do cardápio de promessas eleitorais que terão caucionado o triunfo nas eleições. Estes intelectuais protestam a crise da democracia tradicional. Provam-no com os miasmas que consomem a democracia pelas entranhas: a mediocridade dos políticos, já que a política só consegue atrair os menos capazes; e, talvez até por isso, o estigma da corrupção que tomou conta do processo político.


Não tenho problemas em coincidir com estes intelectuais no diagnóstico. A coincidência pára por aí. Quando olho para as receitas prescritas por estes pretensos curadores da "boa democracia", prefiro continuar com o que tenho. Apesar de todas as suas maleitas, apesar do cortejo grotesco que, com o tempo, dá sinal de uma patologia que se afunda no seu lodaçal. Apesar dos medíocres que sucedem aos anteriores medíocres, tornando mais densa a rede de mediocridade – quando se pensava que seria impossível ir mais abaixo no poço da mediocridade.


Aqueles curadores propõem a reconfiguração da democracia. Ela deve-se modernizar. A cidadania plena exige mais participação das pessoas na governação do que as afecta. A modernização da democracia depende da vontade para ultrapassar o colete-de-forças do modelo tradicional. A democracia representativa já não é suficiente. Acusam os actos eleitorais de não terem capacidade para exprimir escolhas racionais. Os votantes são ofuscados por manobras eleitorais, pelo intenso marketing político que oculta o que não convém e mostra o que é conveniente mostrar, mesmo que sejam ingredientes acessórios. Entre as eleições, reduz-se a pouco mais que nada o escrutínio efectivo de quem foi escolhido para governar. Até porque a governação se distingue pela arte da ilusão, pelos tiques que uma retórica bem estudada consegue passar, pela imagem cirúrgica que desvia a atenção para as margens do acessório.


A alternativa é a "democracia participativa". Os seus defensores aparecem como milagreiros, os indispensáveis arquitectos da renovação do sistema político. Dotados de verdades incontestáveis. Quem se apresenta senhor de verdades divinas merece o estatuto de desconfiança. A desconfiança de que devem ser credores os infalíveis deste mundo. O que propõem vem enfeitado com um atraente papel de embrulho. Não devia haver decisões sem se darem a conhecer a quem fosse por elas afectado, antes de serem decisões. Os intelectuais da "democracia participativa" enamoraram-se das assembleias populares onde todas as decisões seriam tomadas. Propostas, discutidas, votadas (e de braço no ar, para melhor se controlar a vontade dos interessados) e, só então, adoptadas. É encantador, o modelo. As gentes interessadas teriam sempre uma palavra a dizer. No final, argumentam, o processo político teria uma legitimidade redobrada.


Quando as coisas são assim tão lineares, costuma haver uns inesperados grãos a ensombrar o raciocínio e as lapidares e cristalinas conclusões. As assembleias populares são o ensejo para os intelectuais destas causas poderem fazer vingar as suas ideias, dotados do notável poder de persuasão tão próprio da sua incomensurável inteligência. Põem a sua inteligência e dotes de retórica ao serviço da arte da manipulação. Para influenciarem a discussão e conseguirem condicionar a votação. A desconfiança prossegue: são bem capazes de infiltrar agentes, que actuam como seus capatazes, para orientar a discussão para os resultados que querem atingir. Como se sabe, a inteligência pode ter utilidades perversas. É quando a inteligência se confunde com perfídia.


Muito democratas, são os feitores da "democracia participativa". Daquela democracia que coincide com a razão que lhes assiste do alto da sua predestinada condição. Mesmo quando essa razão não é subscrita pela maioria. Há muitos ditadores que começaram assim. Por isso é que, entre dois males, continuo a preferir o mal menor. Com todas as críticas que por aqui já destilei contra a agónica democracia convencional, prefiro-a à "democracia participativa".


9.9.08

Nine Inch Nails, "Pig" (live)

PIGS (are we?)


As metáforas são um movediço terreno. Às vezes, felizes imagens que retratam o que desfila diante dos olhos. Outras vezes infelizes metáforas, como se fosse um desbocado que põe o coração à frente da boca e solta as primeiras palavras que vêm à superfície – não pesadas palavras. As metáforas também pertencem ao domínio da relatividade. Uma metáfora pode ser genial para uns e verberada por outros, pelos que estejam do lado contrário de uma qualquer barricada. Há ainda as metáforas que tomam proporções gigantescas, quando afinal não merecem a dimensão que as virgens ofendidas lhes conferem.


O contexto: o Financial Times arranjou um novo acrónimo para os países do sul da Europa (apenas os que fazem parte da União Europeia, daí ilibando os países balcânicos). Dantes, Portugal, Itália, Grécia e Espanha eram, pejorativamente, o "Club Med". Não passávamos de destinos turísticos, onde há sol e calor e águas do mar cálidas, a caldear outras coisas exóticas que os povos da parte mais nortenha da Europa aproveitam, em hordas despejadas por aviões de companhias low cost, para retemperar forças. Curiosamente, havia muita gente nos países do "Club Med" que ficava ofendida com o epíteto. Achavam-no pejorativo. Nunca entendi tanta sensibilidade à flor da pele. Afinal, os de lá de cima, mais do norte da Europa, os que vêm tisnar as suas esbranquiçadas tezes ao sol tórrido do "Club Med", escolhem-nos para fazer férias. Não é bom sintoma gostarem de fazer férias por cá?


Agora já não somos (apenas) o "Club Med". Agora somos PIGS – acrónimo para Portugal, Italy, Greece, Spain. E a malta ficou tão ofendida! Quem se julgam aqueles bifes mal cheirosos para insinuarem que somos porcos? Anda por aí muita gente exaltando a veia nacionalista, acusando o calo pisado. As ofensas à honra pátria não podem ficar sem resposta. Assim como assim, quem não se sente não é filho de boa gente – lá ensina o sábio povo, parafraseado numa ocasião pelo funambular Santana Lopes então acidentalmente primeiro-ministro. A cereja no topo do bolo, quase a elevar o episódio à categoria de incidente diplomático: o improvável Pinho ministro da economia acabou de dizer, ao retardador como é usual, que não gostou de ler no Financial Times que fazemos parte da quadrilha suína.


Antes de mais prosa elaborada em defesa da honra latina (três quartos latina, que os gregos o não são), convinha ler as palavras do Financial Times e saber colocá-las no devido contexto. Para os que não saibam – ou que tenham convenientemente esquecido – o Financial Times é um jornal de assuntos económicos. Foi a fazer análise económica que um jornalista, no uso da criatividade com que foi agraciado, desencravou a metáfora dos porcos. Dos porcos que, em linguagem que tem tanto de simbólica como de apelo ao imaginário, descolam como se aviões fossem. E depois aterram, também como os aviões. Traduzo do inglês para o português (daqui):


"Há oito anos, os PIGS conseguiam voar. As suas economias dispararam depois de terem entrado na zona euro. As taxas de juro desceram para mínimos históricos (…). Seguiu-se uma explosão de crédito, tal como a noite vem depois do dia. Os salários aumentaram, o endividamento subiu a níveis estratosféricos, o mesmo acontecendo com o preço da habitação e com o consumo. Agora os PIGS desceram à terra."


Eis como uma inocente metáfora em análise económica se está quase a transformar num incidente diplomático. Eu não sei se quem acusa tanta dor pela sigla PIGS está, de alguma maneira, a acusar o toque. Lá vem outro adágio popular: "quem não deve não teme". E uma interrogação: os que protestam tão alto a sua ofensa terão esqueletos escondidos no armário? Ninguém gostará de ser pejorativamente tratado com suínas alusões. Mas só quem andar em pocilgas é que acusará o toque. Os outros, que de forma alguma se revêem num dos múltiplos significados do epíteto, por que hão-de ficar ofendidos?


Talvez um ponto sensível. E isto é uma exótica pocilga, com praias que atraem as hordas de higiénicos povos que vêm de lá de cima, onde o sol é coisa rara. A pocilga onde eles fazem férias, bem entendido: e quem gosta de fazer férias numa pocilga? Mais a mais, as mulheres deles adoram os suínos latinos, quando por fim descobrem as virtudes dos amantes a sério. Ah! Deve ser por isso. Puro ressentimento. No restolho do lamentável fait divers que quase tomou proporções de incidente diplomático, o lamento maior é a ofensa aos suínos. Que não têm culpa de o serem e ainda são pejorativamente colados à humanidade grotesca.


8.9.08

Dos fundilhos das calças


Ia no metro. À minha frente, dois ganapos entretidos a apreciar a clientela da carruagem. Bem entendido, iam a apreciar o vestuário. Comentavam a preceito. Fixaram-se numa rapariga que ia ao fundo da carruagem. Diria, à distância, parecer uma daquelas meninas que andam a soletrar a palavra do senhor de porta em porta, mercando a boa nova das testemunhas de Jeová. Na outra fila, era a vez de um rapaz esquálido merecer a atenção sarcástica dos oratórios da boa estética que, ao mesmo tempo que disparavam o comentário jocoso, mastigavam chicletes com estardalhaço.


Foi a minha vez de apreçar os particulares trapos que os rapazes, dir-se-ia críticos de moda, envergavam. Começo por jurar a pés juntos que nada me move contra modas juvenis que irrompem com os anos que passam. De uma forma ou de outra, também passei por um desses modismos de vestuário. As modas, quaisquer que sejam, nunca são involuntárias. Sinto um gosto especial em ver como os adolescentes vão variando os trajes. O relógio do tempo é generoso na estação estival: vai destapando cada vez mais partes generosas de corpos femininos, por exemplo. É uma certa espessura do tempo que cauciona a observação. E se há coisa que me indigna é a indignação de gente muito aperaltada, da cabeça que seja, que acena com a cabeça em tom de reprovação quando se cruza com um jovem que ostenta a "moda esquisita" dos dias correntes.


Os rebeldes continuavam a satirizar a rapariga com ar evangélico e o rapaz acabrunhado, eles emproados à condição de catedráticos dos costumes. E o seu retrato, o que era? Sobressaíam as calças de ganga fartamente esfarrapadas, com meia dúzia de golpes negligentemente em pontos nevrálgicos. Um ar negligé, mas paradoxalmente cuidado. Pois que esta é a moda que está na moda. Mas não fica por aqui o retrato: pois os adolescentes de agora gostam de descair a parte traseira das calças, como se não houvesse cóccix para amparar os fundilhos das calças. Aliás, estes fundilhos acercam-se dos meados das coxas em vez de estarem mais perto do lugar que se julgava anatomicamente feito à medida. O toque de requinte final: à guisa de descontracção fatal, os ausentes fundilhos das calças deixam à mostra uma substancial parcela das cuecas, com uns dizeres refulgentes "Calvin Klein".


Oxalá houvesse espelhos nas casas dos incisivos rapazes que continuavam a bolçar juízos de estética, a desdenhar dos alvos da sua chacota peculiar. É certa a medida relativa quando entramos no campo da estética, pântano viscoso onde se afundam, e sem remissão, os que se julgam penhores dos mais elevados padrões. Era o pecado original daqueles ganapos. Fanfarronice em telhados de vidro. Os telhados de vidro de quem dava o flanco pela grotesca pose. Porventura, apenas um lampejo de tacanha gente incapaz de se imaginar no mesmo tribunal onde tinham sentado as vítimas do seu escarnecimento.


Damos desmedida importância aos trapos que escondem a nudez envergonhada. O pior, é que o vestuário sinaliza tribos particulares a que julgamos pertencer. Como se fosse um sinal de pertença, um dressing code que fala mais alto que mil palavras que queriam expressar o que somos. À minha frente vive um engenheiro que tem amigos que, diria, partilham o mesmo guarda-vestidos, todos tão iguaizinhos. Só que este é um raciocínio que encerra uma armadilha, uma irritante armadilha. Depois de nela apanhado é que percebo como é inútil o exercício de avaliar a estética alheia através da roupa. O pior é ver-me cercado por uma exasperante futilidade. Bem me tento convencer, em arabescos líricos, que o que conta é a profundidade do interior das gentes (há quem lhe chame alma). Logo esbarro de frente contra a dupla irritação: a cada passo que dedico atenção ao vestuário, pareço rivalizar com a improvável espécie de estilistas e afins, uma fauna que glorifico no altar das irritações pessoais.


Saí do metro com uma dúvida: que interesse tinham as manobras satíricas dos dois ganapos vestindo calças sem fundilhos? E que interesse tinham as calças sem fundilhos? O cinismo letal: assim termina um texto que se esgota nas suas interrogações finais. Ou, que é como quem diz, um texto tomado pela futilidade.