16.9.08

Gostava de dizer isto ao rapaz dos graffiti


Discordo da direita de sacristia, tão apessoada nos seus inamovíveis costumes, quando destila impropérios contra os graffiti. Já ouvi, em tempos, o CDS de Paulo Portas propor legislação restritiva sobre os graffiti que redesenham a geografia urbana. Acho excessivo. Na diarreia de leis que nos consome, as leis devem-se voltar para coisas importantes em vez de se debaterem com o acessório. Era assim que pensava e agora estou na dúvida. Pois hoje fui vítima de um rapazola que decidiu dar azo à criatividade no meu carro. Um belo desenho a ocupar uma das portas traseiras, um azul florescente a sobrepor-se ao preto que é a cor do catálogo.


Há muitas maneiras de encaixar isto. Uma delas nem merece muito arrazoado: o ganapo decerto desprovido de inteligência, talvez mesmo carente de neurónios, incapaz de perceber que a sua fantástica impressão digital de artista tem um custo – o número de dias de trabalho que me vai custar a repor a pintura no estado original. O artista que me perdoe: não duvido da sua proficiência, dos seus dotes como futuro ícone da representação graffítica, mas que não me leve a mal por desdenhar da oferta que plantou na porta do meu carro. Prefiro vê-lo a uma só cor – a cor que trazia quando o fui buscar ao stand.


Andamos pela Europa fora e, nas grandes cidades, os graffiti são ponto de honra. Por todo o lado, em paredes de casas, em painéis de publicidade, pintando de uma ponta a outra carruagens de metro e de comboios urbanos. É uma forma de expressão dos mais jovens, da seita enamorada pelo rap e pelo hip-hop, que puxam da paleta de tintas e desatam a mudar o lustro das paredes e de painéis publicitários e de carruagens de metro e de comboios urbanos, dando-lhes cor e movimento. Sim, os graffiti embelezam as cidades. Convencionou-se até que não se deve cercear a criatividade dos jovenzinhos quando modificam o elemento conceptual da tela que se põe a jeito para os avassaladores graffiti. Não vão os jovenzinhos sentir a sua liberdade de expressão tolhida pelos velhos do Restelo que ainda não foram capazes de compreender a elevação estética dos graffiti.


Juro, e sem ponta de ironia, que uma cidade enxameada de graffiti não me transtorna o espírito nem agride a vista. Só que não acho aceitável que certos sectores prefiram dar prioridade à "criatividade" dos jovens artistas dos graffiti, desvalorizando outros valores. E há aqui um valor que é determinante: a propriedade. Bem sei que em certos lugares e de certas franjas ideológicas há líricas tentativas de resgatar um ideário que questiona a eticidade da propriedade. Há até um jovem lírico que, a culminar um raciocínio muito bem elaborado, conclui o seguinte: "(a) propriedade como extensão do corpo, como a via Locke, é uma coisa. A propriedade tal como existe (…), como um direito exclusivo e irrestrito sem consideração do valor da igualdade, é outra. E essa outra coisa, se não é um roubo, é pelo menos um ultraje". Já percebi: é um ultraje ser proprietário do meu carro. Donde, o graffiti tem toda a legitimidade: o artista terá manifestado o seu ultraje pela existência daquele carro, e dele ter um proprietário. Longe de a isto se poder chamar, e só, vandalismo. Se isto não é o mundo virado às avessas…


Como a malta do rap e do hip-hop e dos graffiti e dessas merdas se gaba de uma notável consciência social, há neste gesto algo que não bate certo. É natural que eu queira fazer regressar a cor preta onde neste momento se encontra o gatafunho azul florescente. Ora, isso custa dinheiro. Que sai de um remediado trabalhador para os bolsos de gente capitalista, decerto mais endinheirada: a empresa que produz a tinta, o concessionário onde o carro vai ser reparado. Afinal de contas, o imbecil dos graffiti está a soldo do grande capital. E, afinal também, ou esta gente é desmiolada ou a retórica da igualdade não passa de um poster que gosta de ostentar sem a saber praticar.


Eu tenho uma vingança para o magnífico artista que alterou o aspecto do meu carro: já que não lhe posso enfiar goela abaixo dois litros da mesma tinta florescente que utilizou para roubar espaço ao preto da carroçaria, deixo-lhe aqui esta mensagem. A sua "obra" é uma impressão digital tão idêntica às marcas deixadas por gaivotas atrapalhadas com a sua disenteria particular. Tão corrosivas, uma como a outra. Tão merdosas, uma como a outra.


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