24.10.08

A doença do nacionalismo


"A língua é a minha pátria", Fernando Pessoa


Demora em chegar, a modernidade. A teimosa ancestralidade do nacionalismo que perdura. É comportamental. Arrumamo-nos todos direitinhos nas gavetas delimitadas pelas nacionalidades que calharam em sorte à nascença (ou em desdita, depende da perspectiva). Se há coisa que me irrita é quando perguntam, no estrangeiro, de onde venho, e logo de seguida as pessoas desfilam estereótipos que julgam ser identificação da idiossincrasia nacional. Falam-me ora das sardinhas, ora do fado, ora do encantador Algarve, ora de uma agremiação regional que tinha acabado de levar a palma num troféu europeu de futebol. Como se por ter este passaporte tivesse que gostar de sardinhas, de fado, do Algarve apinhado de inestéticos turistas, ou estivesse entusiasmado com o triunfo futebolístico da agremiação regional.


Este nacionalismo é uma camisa-de-forças que aprisiona a liberdade interior. Por termos nascido num certo lugar, somos nacionais de um determinado país. Imediatamente espera-se que em nós fermente uma solidariedade colectiva com os demais que coincidem na nacionalidade. Não importa que não haja a menor identificação pessoal com o grupo, pois somos ensinados desde tenra idade que os laços de nacionalidade se sobrepõem ao resto. Que interessa que tenha mais afinidades pessoais com alguém de outra nacionalidade, se a formatação instituída me impõe solidariedade por aqueles que coincidem na posse do mesmo passaporte? É um espartilho, isto das nacionalidades. Uma tremenda restrição à liberdade pessoal.


Todos os dias, manifestações de nacionalismo pacóvio. Agricultores que vivem enquistados em tempos de antanho onde se glorificavam as virtudes do "orgulhosamente sós". Encenam patéticas teatralizações, com o dramatismo inane a tomar conta das ruas onde se manifestam. Oferecem leite nacional a quem passa e vertem no asfalto o leite estrangeiro que teima em entrar nas superfícies comerciais. Exigem restrições sobre a venda de leite estrangeiro, como se não houvesse União Europeia e as fronteiras não estivessem abertas ao leite que vem de outros países da União Europeia. Ou pescadores que perseguem camiões que trazem peixe espanhol, violentamente destruindo esse peixe que, ó heresia, ia ser vendido nas nossas lotas.


Há ainda muita gente que prega o infeliz slogan publicitário "o que é nacional é bom". Bem entendida a mensagem subliminar: convoca-se a solidariedade em nome da bandeira vermelha e verde que se deita sobre todos os concidadãos, para que nos convençamos que as coisas aqui fabricadas são melhores que as produzidas no estrangeiro. Como se fosse uma dádiva divina (logo, inexplicável) que nos levaria a preferir o que é nacional, no irracional argumento que "é bom", ao jeito dos não argumentos que apenas explicam "porque sim". Que interessa a minguada carteira das pessoas que compram esses produtos? Em muitos casos, até podiam poupar dinheiro – logo, viver melhor – se não houvesse o apelo à afectividade nacionalista e comprassem mercadoria estrangeira mais barata e de melhor qualidade. É o nacionalismo no seu esplendor irracional.


O fervor nacionalista ultrapassa as fronteiras dos exemplos mesquinhos e toca até quadrantes intelectuais. Vê-se na língua, seja na literatura, seja na música, ou ainda no teatro e no cinema. Há cultores da literatura que se excitam ainda na famosa frase do poeta Pessoa, num incontido orgulho da língua que empregam na escrita, providencial diferença que faria do português uma língua predestinada. Há académicos que vivem ultrapassados pelos tempos e se condoem por verem o português ferido pela entrada do inglês nas salas de aula. Receiam que o português se perca, como se alguém acreditasse que é por aqui que o fantasma da língua morta se abate sobre o português, qual latim dos tempos vindouros cedendo ao inglês em pose de língua franca. Há músicos que se gabam de serem pastores do português cantado, como se a música não fosse universal e a língua que a canta apenas seu instrumento. Chega-se a defender a língua a peito: há por aí um rapper – ou artista do hip-hop, ou lá o que é – que se notabilizou por uma composição em que censura, com uma violência verbal inusitada, artistas nacionais que cometem a heresia de cantar em inglês.


Mas o que interessa tudo isto? O que faz tanta gente distrair-se com os deleites envenenados da nacionalidade, que depressa resvala para um nacionalismo que é tão saloio como insensato? É ao ver estas patéticas exibições de guardadores do rebanho nacional que sinto uma incontrolável pulsão de meter os papéis para a apátrida condição.


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