1.10.08

Os pesarosos lamentadores de si


Algumas almas penadas. Solicitam, compungidos, comiseração alheia. Voam sobre nós em pose sofrida, num interminável coro de lamentações. Não há mais ninguém tão sofredor como eles. Fazem gala da melancólica existência que levam. São carpideiras de si mesmos. Arrastam-se em público imersos nas suas lamentações. Como se quisessem partilhar a sofrida existência com os outros. Fosse essa a maneira de repartir os males interiores com os demais, julgando que as suas dores particulares se esmaecem com a piedade que reclamam dos outros.


Neste mundo estranho, tanto há quem sinta uma irreprimível vontade de enaltecer o ego como há outros que navegam em maré contrária, convencidos que são a alma mais penada com que o mundo travou conhecimento. Tenho para mim: nos dois casos, egos mal resolvidos. Uns, tão inebriados com a sua própria existência, esfregam na cara do mundo como o mundo gostaria de ser tão excelso como eles. Os outros, ao contrário, no pungente auto-retrato que os coloca no papel da gente mais desgraçada que se possa imaginar. No entanto, há aí um paradoxal ensimesmar. Tentam convencer os olhos do mundo que são o pior exemplo que o mundo pode conhecer. Não se cansam de se oferecer nesse altar sacrificial, sucedâneo de kamikazes em prol das virtudes que o mundo deve cultivar. Sabendo que, se essas virtudes cultivar, os lamentadores de serviço são as cobaias que mostram por onde os pés da virtuosa gente não devem pisar.


As almas compungidas teimam em prosseguir a sua particular via-sacra. Na perene auto-lapidação. Convencidos que são o pior exemplo entre a humanidade. Neles, os defeitos sem fim. Se houvesse um campeonato onde rivalizassem as tristezas próprias, cada uma destas carpideiras de si reclamaria o lugar mais alto do pódio. Até nas comoventes descrições dos tormentos que os afligem se encerra um contra-senso: o desnudamento das lamentações, o corrosivo ácido que os consome pelo interior, é a piedosa exibição com laivos de caritativa comiseração que os demais hão-de exibir, sejam eles compassiva gente. A exposição dos males interiores, o seu esbofetear nos outros em constante apiedar interior, um mal legado a quem se destina a procissão das particulares angústias.


Não conseguem ter decoro no exibicionismo das suas particulares aflições. Servem-se dos hábitos instalados: convencionado que está que as gentes devem comiseração aos desgraçados do mundo, empertigam-se nas suas maleitas e irradiam-nas, como se fossem vistosas coisas, aspergindo pétalas tristonhamente negras para que os outros possam ser testemunhas das suas aflições. Para que eles sejam curadores das suas aflições. Sentir-se-ão apaziguados ao saberem que há um séquito que partilha a sua pungência. Que interessa que semeiem entre essa gente um mal-estar interior, o produto da partilha das aflições que aos pesarosos dizem respeito mas que acabam por tocar quem delas padece por contágio.


Estas almas compungidas são como pirómanos. Ateiam fogos em outras almas, ao início não atormentadas – ou, senão, apenas atormentadas pelas suas interiores angústias. As palavras que avivam as feridas em carne viva são como as chamas alimentadas pelo vento indomável que espalha as cinzas pelo arvoredo ressequido. Vítimas inocentes da choradeira infindável que as carpideiras de si gostam de ostentar. Os que se especializam na arte da auto-lamentação chegarão a discernir que contagiam as suas interiores angústias por quem deles se apieda?


Não me quero convencer que a exteriorização das lamentações próprias é um acto de maldade. Prefiro olhar para o gesto como desesperada tentativa de amparar as dores lancinantes que incendeiam as suas veias. O clamor condoído que chega aos ouvidos e aos olhos dos demais será apenas um gesto de desespero: o desalento da sua incapacidade. Só que de tanta comiseração solicitada aos demais, a certa altura a esgotada paciência não admite mais compaixão. Nessa altura, a cansativa ladainha assemelha-se a um insólito voyeurismo de dentro para fora. Uma ladainha que espalha as angústias próprias aos demais. Como se eles tivessem que partilhar essas angústias. Ou fossem culpados pelas aflições que incomodam a existência alheia.


1 comentário:

luis pinho disse...

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