14.10.08

Solidariedade com Lino


Até já foi motivo de paródia num programa de humor da televisão. Corro o risco de perder em originalidade, pois os humoristas disseram o que já tinha agendado dizer há dias (o assunto estava a aguardar, na fila de espera, ocasião para ser tratado). O episódio aconteceu há já uma semana, quando o ministro Mário Lino foi apanhado a dormitar enquanto sua excelência, o presidente da república, orava.


Se calhar o ministro punha-se a jeito para o enésimo episódio em que a chacota tomba sobre si. Ele tem-se distinguido mais pela incontinência verbal (e, diria, mental) que acaba por se voltar contra si. Quem se esqueceu do maravilhoso "Alcochete, jamais", quando mais tarde seria Alcochete a ser escolhido para receber o aeroporto? Quem se esqueceu de declarações de terrível mau gosto, como a que proferiu depois do acidente aéreo em Madrid, puxando a razão a si ao chamar a atenção para a insegurança do aeroporto de Lisboa? A traição do sono em pleno discurso de Cavaco seria mais um acto do anedotário que cobre Lino, o ainda ministro que só o é porque ao leme segue uma seita de amadores.


Tudo ao contrário do que seria provável, contudo. Quando vi as fotografias de Lino imerso num sono profundo enquanto sua excelência o inquilino de Belém perorava, contrariei o impulso espontâneo de apedrejar o patético ministro. Os habituais críticos da personagem que parece ter sido talhada para a crítica fácil podiam vergastar o ministro atraiçoado pelo sono. Até os lídimos representantes da muito institucional maneira de olhar para o mundo poderi-se-iam sentir ofendidos pela falta de sentido institucional do ministro, aquele sono a exibir uma inadmissível falta de respeito por sua excelência que discursava. Da minha parte, um improvável acto de solidariedade com inepta personagem: Lino adormeceu durante um discurso, um longo bocejo é o que é, de Cavaco. Nisso, assino por baixo a peça satírica dos humoristas.


O que sinto de cada vez que vejo ou ouço Cavaco discursar? A irreprimível vontade de interrogar: as aulas dele eram assim tão maçadoras? Tão entediantes quanto os discursos acentuados pela pose grave, a pose tão séria, possuída pela elevação institucional, aquela voz monocórdica, os discursos monossilábicos? É curioso: recuo ao tempo em que Cavaco foi primeiro-ministro. Nunca teve o verbo fácil. Também, como agora, escorregava para expressões infelizes (tão acertadamente satirizadas pelos humoristas). A austeridade em pose foi, todavia, elevada a um expoente ímpar. Será da idade mais avançada, que traz um sentido de responsabilidade depurado? Ou sentirá Cavaco que, como presidente da república, tem que passar a pose mais grave, pois afinal o presidente da república é mais importante que o primeiro-ministro? (Que ninguém o segrede ao actual primeiro-ministro, para ele não ter um ataque de apoplexia.)


Cavaco fala e não consigo evitar os bocejos que se repetem à cadência das palavras muito compassadas entoadas com aquela voz que, no campeonato das vozes monocórdicas, só é vencida pela de Jaime Gama. E mesmo quando Cavaco se esforça por aligeirar o registo, sempre em desastradas tentativas de oferecer aos súbditos um rosto humano, é pior a emenda. O pior está reservado para os momentos solenes, que é necessário pontuar com discursos carregados da mesma solenidade. Oratórias intermináveis, em que a noção do tempo se transforma, parecendo que os minutos se demoram além dos sessenta segundos convencionados. Quem estranha que Lino tenha adormecido? Alguém, no seu juízo, pode censurar o ministro por ter sido apanhado nos braços de Morfeu?


Coitado do ministro: tantas dores de cabeça na pele de governante e ainda ter que aturar as cerimónias solenes do cinco de Outubro, quando aquilo não tem nada a ver com as funções técnicas do ministro das obras públicas. Porventura, poucas horas de sono, tantas as preocupações. Logo agora que, em plena crise financeira, a prudência aconselharia a adiar o calendário das faraónicas obras públicas que fazem desta apenas remediada terra um arremedo de rico país. A prudência esbarra na teimosia do calendário eleitoralista (eleições já para o ano) e na insensata ostentação dos socialistas empenhados em construir os elefantes brancos das obras públicas – eles querem deixar a sua impressão digital emoldurada no futuro.


Diante tantas dores de cabeça, que tantas horas de sono devem roubar ao ministro Lino, quem estranha que tenha sucumbido ao sono perante o longo bocejo das palavras de Cavaco? Não é lapidação pública que ele merece. É solidariedade.


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