30.12.08

Há gente que nasceu para ser carne para canhão?


Vejo a serenidade de Tzipi Livni, ministra dos negócios estrangeiros de Israel, ao pronunciar o inevitável: nas guerras há sempre vítimas inocentes. Ela diz: "as pessoas têm que compreender". Eu persisto na incompreensão. Resultado de um lirismo inconsequente, o de teimar em não entender a animalesca veia da humanidade entretida com guerras fratricidas. Aquela serenidade da senhora, apenas uma obscena serenidade.


Uma guerra sem baixas não é uma guerra – dirão, atónitos com o lirismo inconsequente dos que teimam em esboçar a sua repugnância pelas guerras, os "realistas" que aceitam o mundo como ele é. Porventura não só aceitam o mundo como ele é; acredito que chorariam lágrimas de crocodilo se o almanaque do mundo passasse pela ausência de guerras e guerrinhas durante um lapso de tempo – mas essa é uma especulação de que não me ocupo hoje.


O que me perturba é haver quem trata as vítimas de guerras como simples números. Não são gente, são já só cadáveres que, nessa condição, não deixam de ser um número a engrossar a estatística das baixas causadas por mais uma guerra do infindável rol que envergonha a humanidade. A frieza com que esses números são anunciados empresta a bestialidade a quem os pronuncia, a quem faz a contabilidade acumulada das vítimas, aos que jogam os números das vítimas de ambos os lados da contenda como expressão da parte que vai triunfando. O que é obsceno? A tranquilidade com que pessoas mortas em combate são traduzidas em números. Sejam militares que, por missão profissional, são a carne para canhão idealizada. Sejam as vítimas inocentes apanhadas no lugar errado e no tempo errado, a quem a retórica belicista convencionou catalogar como "danos colaterais" – e há fórmula mais indecorosa para rotular quem é inocente carne para canhão em guerras de que não devia fazer parte?


Que me interessa quem tem razão – se israelitas ou palestinianos? Todos a perdem quando se entregam a manobras que levam ao desperdício de vidas. São vidas, nomes, um património onde se somam todos os minutos e dias e meses e anos de uma vida subitamente cerceada por uma bomba rebentada por um desmiolado kamikaze a quem foram prometidas setenta virgens na dimensão celestial ou por um sofisticado obus que rebenta com precisão cirúrgica num alvo que, por acaso, tinha naquele momento civis inocentes. Aquela gente que se afadiga em encontrar justificações para as acções da facção da sua simpatia perde-se em análises muito sofisticadas que ensaiam a prova de que a facção da sua simpatia se limita a ripostar aos ataques ou provocações do outro lado. Não percebem que passam ao lado do essencial. Nem percebem que essas análises são tão rigorosas quanto a procura da agulha num palheiro, tão certeiras quanto assegurar se foi a galinha ou o ovo que surgiu em primeiro lugar, tão grotescas por tudo isto.


Aos simpatizantes de ambas as facções digo isto: não há desculpas aceitáveis para que um endemoninhado kamikaze se faça rebentar e com ele leve as vidas de sabe-se lá quantos inocentes. Que apenas o não são, na pérfida maneira de ver de quem instrumentaliza o kamikaze, por terem nascido com a nacionalidade do "inimigo". Essas vítimas são gente, pessoas com nome e com uma vida, não são números ou bandeiras destruídas em nome de uma causa ou de uma religião qualquer. E não há pretextos que sirvam para justificar, nem sequer para legitimar, acções militares impiedosas que em poucos dias já expediram para os cemitérios mais de trezentas pessoas. Para quem condescende com o tribalismo travestido em vestes civilizadas do exército israelita, invocar a auto-defesa é um pretexto esgotado; não lhes passa pela cabeça que as retaliações (assuma-se, por um momento, aceitáveis) devem obedecer à proporcionalidade?


É nestas alturas, sobretudo nestas alturas, que o enfeudamento das pessoas a religiões reforça a minha convicção: as religiões são deploráveis.


Neste tipo de conflitos – os conflitos que se eternizam, os conflitos sem solução em tempo algum – apetece imaginar a redescoberta do tempo. Como se fosse possível dobrar uma página e começar tudo de novo, reescrever a história a partir de uma folha em branco. Para que esta impossibilidade fosse possível, só se a realidade implodisse e com a implosão uns e outros fossem arrastados na lava terminal.


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