15.12.08

Seremos mesmo “todos” de esquerda?


Sondagens caseiras anunciam a catástrofe (os socialistas a roçarem a maioria absoluta) e a extrema-esquerda junta abrigando 20% das intenções de voto. É a crise imparável, que teve o condão de destruir crenças de afamados economistas que agora pressagiam o regresso a Keynes, batendo no peito em jeito de "mea culpa". Há dias, no Diário de Notícias, Pedro Lomba sugeria que "somos" de esquerda porque temos salários reduzidos e trabalhamos para quem ostenta tanta abastança.


As esquerdas rejubilam. Andam de peito inchado, envaidecidas, no convencimento de que a crise trouxe o colapso do diabolizado "neoliberalismo". Entre a pose "afinal tínhamos razão" da extrema-esquerda e a conversão oportunista de socialistas a um Keynes de novo milagreiro, há muita gente a embarcar na maré. É em momentos de aperto que as emoções se sobrepõem à racionalidade. Muita gente só se lembra do seu deus quando vive uma aflição. Há muitos enamorados de uma esquerda qualquer por lhes ocorrer, vagamente, que só as esquerdas possuem sensibilidade social, só as esquerdas conseguem praticar a justiça social, tirando aos nefandos ricos para redistribuir por um numeroso exército de necessitados. Não é novo: na construção de ideias e imagens, as esquerdas gostam de visões absolutas e de chamar a si o monopólio de certos paradigmas.


A fé pessoal é incontestável. Pertence ao domínio da intimidade de cada um, logo intangível. Posso, quando muito, dirigir uma interrogação para dentro de mim: "por que não és capaz de embarcar na caudalosa maré das esquerdas triunfantes?" Em parte, por mau feitio, um veemente espírito de contradição. Quando vejo consensos irrecusáveis, as correntes copiosas que reclamam a participação de todos os que sejam sensatos, é quando mais me apetece ser dissidente do coro esmagador. Trata-se de um imperativo de higiene mental.


Por outro lado, tento convocar o discernimento – o meu discernimento, que até pode ser um tremendo erro na maneira de ver dos outros, o que pouco me atormenta. Sou observador do modismo e tento perceber se encaixa nas ideias que são meu lastro – ou se o modismo, de tão triunfante, convoca um abalo nos alicerces das pessoais ideias. Se a correspondência não existe, sobra-me o "desconsolo" de figurar entre a escassa minoria que se recusou alistar no consenso do momento. Este engrandecimento das esquerdas não me comove. E menos me convencem as receitas que elas preconizam para ultrapassar a crise. Aliás, a surpresa é a convergência de medidas defendidas pelas várias esquerdas, numa espécie de frentismo inusual se se atender à história política da democracia em que vivemos.


Primeira dissonância com o modismo: não consigo digerir o regresso a receitas do passado como solução milagrosa para extinguir o incêndio da crise. Foram resgatar Keynes ao túmulo. Esquecem-se, os promotores da ressuscitação de Keynes, que ele tinha sido enterrado por as suas políticas terem levado à grande crise da década de setenta. E por as suas políticas terem sido incapazes de voltar a página da crise. Parece que não aprendemos com os erros de outrora. Que nos esquecemos da história – ou que é conveniente olvidar certas páginas enegrecidas que ficaram registadas lá atrás.


Segunda dissonância: depois da peregrinação interior para responder à pergunta "por que não és capaz de ser de esquerda", retomo a proposta de Pedro Lomba. Sendo um remediado trabalhador por conta de outrem, não tenho o prazer de figurar entre a privilegiada minoria dos "bem pagos". Nem assim consigo encontrar razões para o alistamento no imenso exército que, por convicção, oportunismo ou lirismo, pertence às esquerdas. Sei que está na moda fazer descer o chicote nos endinheirados e nos que, não sendo capitalistas, auferem salários das arábias. Invoca-se um dever de solidariedade para amortecer os males dos muitos desvalidos com os recursos tirados, por arte de impostos, aos abastados. Outros sobem ao púlpito do tribunal da moralidade – esse lugar tão perigoso – e sentenciam a falta de ética dos poucos que ganham demais. A todos falta saber se os salários das arábias têm merecimento ou não. Partem da suposição negativa. Os preconceitos, só a eles pertencem.


Lamento, mas não sou capaz. De entrar nos sumptuosos palácios onde habitam as esquerdas, esses lugares perfumados pela justiça social, os lugares ungidos pela igualdade. Onde não haveria ricos e os pobres deixá-lo-iam de ser. Um lugar onde irradiaria a centelha da solidariedade, convencidos os abastados a redistribuir pelos carenciados e pelos menos carenciados que não reprimem a pessoal ganância e se deixam cegar pelo néon dos cifrões. Pedro Lomba terá acertado ao lado: eu não estou entre os que ganham muito e isso não me faz cultor de uma esquerda qualquer. Sem ser de direita – pelo menos das direitas indígenas.


As coisas do mundo são complexas demais para se prestarem a leituras tão simplistas. O súbito enamoramento pelas esquerdas, que tinge as cores da moda, parece-me um refulgente simplismo.


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