31.7.08

Dos bigodes, em baixa na moda


Já foi tempo em que o estereótipo do macho lusitano era um farfalhudo bigode. Quase exigência da máscula condição. Até um sinal da profunda ruralidade que se confundia com portugalidade. A estética é tão volátil como as andanças do tempo. Houve tempo em que o bigode teve o seu templo, que o sexo masculino visitava com veneração. Hoje, os sinais da estética deixaram ao bigode um lugar anacrónico. Entre os mais novos (uma extensa faixa etária, desde que as pilosidades faciais começam a aparecer nas faces adolescentes, até, digamos que por conveniência pessoal, aos quarenta) um bigode é raridade.


Os modismos são uma tirania terrível. Convenções saídas do nada, com a espontaneidade de uma estética que emerge à superfície sem se perceber como. A certa altura, o modismo contagiou-se. Uma espécie de "passa a palavra" sobre os novos ventos da estética, sem que haja um literal "passa a palavra". São os olhos que espreitam nas imediações e se apercebem dos modismos. Uns aderem sem hesitações, entusiasmados com o último grito da estética dominante. Nem que seja para se sentirem parte da tribo que desenha as tendências que subiram ao altar da moda. Outros hesitam. Não ficam convencidos com o novo modismo, resistem até mais tarde sucumbirem perante os sinais estéticos que imperam. E depois sobram os resistentes, ou aqueles que teimam em andar para o lado contrário da maré. Dissidentes da estética que vingou.


A forma como apresentamos o rosto encerra importantes sinais identificativos, um estado de alma inteiro? Há quem pense que sim. Que é necessário mudar de aspecto quando uma página da vida é dobrada, ou quando do interior grita alto um apelo para exteriorizar diferença. Há quem seja conservador. Resista aos modismos e aparente sempre o mesmo – até quando as fases da vida se sucedem e semeiam vestígios de coisas diferentes. Contudo, as tendências que vingam deixam uma marca indelével. Hoje, por exemplo, os bigodes são olhados de soslaio, deixados no lugar da estética risível.


O recurso à memória é a prova. Entre as pessoas com que nos relacionamos e aquelas que surgem na praça pública escasseiam os bigodes. Estenda-se o exercício a uma vertente inter-temporal: ver fotografias de há vinte ou trinta anos e olhar para a mesma cara retratada hoje; entre os muitos bigodes de então e o quase deserto de hoje. O modismo que triunfou, o modismo assassino de bigodes, é inter-geracional. Os mais novos não usam bigode, nunca o usaram. Os mais velhos, que outrora foram orgulhosos hospedeiros de espaventosa bigodaça, renderam-se à estética que vingou: ou raparam os bigodes, ou prolongaram-nos para hirsuta ou rala barba. A estética do momento ditou o funeral momentâneo dos bigodes.


A idiossincrasia de um povo é feita de muitos aspectos. No século passado, quando houve muita emigração lusitana para países europeus mais ricos, ficou registado o estereótipo do macho lusitano dotado de imponente bigode. Agora libertámo-nos desse estereótipo. E se há legado que podemos ter deixado – um legado que não prima pelo orgulho, pois é motivo de chacota, um meio de desconsideração da portugalidade – é o do bigode. Nas entrelinhas de algum imaginário feminino, porventura a imagem do macho viril que as nórdicas buscam em época estival. Por causa desse imaginário, diz-se, desaguam nos fundilhos da Europa em demanda dos prazeres que os pouco másculos concidadãos lhes consentem. Tenho para mim que isto é uma lengalenga para consumo doméstico dos machos lusitanos: um auto-convencimento das façanhas que só eles conseguem alcançar, como se houvesse uma divina distribuição de dotes pelos nativos. Era então que ostentavam bigode como o sinal de identificação que saciava o cio nórdico.


Só que agora já não envergamos bigode. Porventura num retrocesso do tempo, o famoso apresentador de um noticiário televisivo na Suécia regressou de férias com novo visual. Onde antes estava uma face limpa de pilosidades aparecia agora um surpreendente bigode. Foram tantos os protestos dos espectadores contra o novo aspecto do jornalista que, no noticiário seguinte (no próprio dia), o homem já apareceu despojado da penugem infra-nasal. Explicou-se depois: que a consorte lhe pediu para experimentar a diferença, que ela o projectou de bigode e suspeitou que ficava com melhor aspecto. A ditadura das audiências desfez em nada os apetites da senhora. Mais alto falou a intrusão dos espectadores na privacidade do jornalista com jeito para cata-vento.


Os bigodes andam em baixa na bolsa de valores da estética. E a portugalidade, essa, mergulhada numa tremenda crise de identidade. Já nem sequer o maior estereótipo da portugalidade consegue vingar lá fora. Nem em nórdicas terras onde as donzelas achavam, por entre recordações de férias agitadas, que um bigode era sinal da (supostamente) incomparável masculinidade lusa.

30.7.08

Abusrdistão – outra prova

No texto ali em baixo, dizia, a propósito de entorses à gramática: "Nos tempos que correm, não é fenómeno singular. É mosca que cai na sopa até das pessoas que se julgam muito recomendáveis". Gonçalo Pereira, cronista no 24 Horas, vem dar razão ao que digo:


"Os subsídios parecem cada vez mais uma forma honerosa de o País lavar a sua consciência."


Às vezes, até os jornais precisam de legendas.

Absurdistão


Um cortejo de bizarrias. Como se fôssemos espectadores involuntários de uma encenação surrealista. Há quem lhe chame a "silly season": a época estival leva a massa encefálica ao estado vegetativo, as preocupações em salmoura, os sempre inacabados projectos para mudar de vida metidos no parêntesis das férias. É um tremendo erro de perspectiva. A "silly season" entrou fundo em todo o calendário. O calendário todo é repositório do surrealismo.


Dos dias recentes, muitos episódios embebidos em absurdeza. É o comandante da zona marítima do sul que proibiu massagens de praia. Uma empresa qualquer quis trazer diferença aos veraneantes que vão à praia, propondo diversas actividades para não esturricarem perigosamente ao sol algarvio. Ioga, workshops de sushi e outras actividades que ensinam os rudimentos da vida saudável. As massagens causaram espécie ao comandante. Nem quis saber que as mesmas fossem aplicadas por terapeutas profissionais. A sua mente sórdida, canalizada para um mal disfarçado moralismo público. Sentenciou o comandante: sabe-se como começa uma massagem, só não se sabe como vai terminar.


O excesso de zelo do comandante dá pano para mangas. Primeiro, o comandante expôs-se em toda a sua perversidade. Ninguém precisava de saber que na cabeça depravada do comandante, massagens é sinónimo de envolvimento carnal. Ele lá saberá do que fala. Em segundo lugar, que o comandante esteja desassossegado com os sinais indisfarçáveis da sua libido é um problema que só a ele diz respeito. Da audiência dispensava-se partilhar esses tormentos pessoais. Terceiro, o comandante transborda as suas funções quando se incomoda com a promiscuidade alheia. Vamos supor que a certidão de terapeuta profissional das pessoas contratadas para as massagens é uma máscara para a cédula da profissão mais velha do mundo. A pergunta é esta: o que tem o comandante a ver com o coito alheio? Por acaso essa promiscuidade vem à cena no areal, mesmo à frente dos frequentadores da praia?


Acto número dois do absurdistão que nos cerca: algazarra pegada para os lados do Entroncamento, com tiroteio só visto em filmes norte-americanos onde a violência escorre em toda a sua gratuitidade. Um grupo de homens barricados resistiu aos polícias com exaustivo treino para destroçar motins. Um "operacional" baleado depois, os colegas por fim irromperam pela casa e prenderam os meliantes. Pelo caminho revolveram a casa e, consta, até os membros femininos da família foram mimoseados com uns pontapés e canos cerrados de artilharia pesada à cabeça. As televisões, sedentas de burburinho e sangue, montaram acampamento nas imediações.


Nas entrevistas às familiares dos barricados, a opção editorial de passar legendas. Contextualização: as mulheres, portuguesas de gema, falavam um português onde os atropelos à gramática se repetiam a uma velocidade impressionante. Nos tempos que correm, não é fenómeno singular. É mosca que cai na sopa até das pessoas que se julgam muito recomendáveis. E como se não bastasse o insólito dos tiros trocados entre os "operacionais" e o bando, por momentos negando a consagrada pacatez indígena, o brado maior veio com a aposição de legendas para que os espectadores percebessem o que as mulheres indignadas protestavam à frente das câmaras que as filmavam.

Eu dispensava as legendas. Descontando os muitos pontapés da gramática, o discurso era inteligível. Possivelmente o jornalista era um purista da língua, ou apenas um snob arrepiado com o estranho sotaque das mulheres que, todavia, não impedia a percepção do que diziam. O que estranhei é que o timoneiro da nação há tempos, em momento televisivo encomiástico, arranhou um patético "espanhuel" e ninguém ousou colocar umas legendas para que os vassalos entendessem aqueles sons guturais que agrediam os ouvidos do camarada Zapatero do outro lado do telefone. O Bloco de Esquerda entrou todo de férias.


Terceiro episódio. No Porto, um homem psicótico foi condenado a prisão por ter atingido a tiro, por erro, uma mulher. Quis acertar num homem que lhe salvou o gato. Ingrato, o homem meteu na sua complicada cabeça que o outro, o que salvou o gato, por ser pederasta tinha desencaminhado o gato para essas práticas libidinosas e "contra-natura". Temendo que o gato, por contágio, tivesse adquirido homossexualidade, resolveu o dilema a tiro. Acertou na pessoa errada e foi a tribunal depor uma doentia homofobia. Nem sei o que é pior: se a mente doente do dono do gato ou o juiz que escreveu isto na sentença: "Dar um tiro em alguém por ser homossexual e por supostamente ter tido relações sexuais com um gato que ajudou a resgatar, e por isso o animal ter ficado paneleiro (…)". A magistratura pelas ruas da amargura: nem ela, sequer, tem tento na língua.


Este absurdistão não é motivo para avantajadas olheiras. Ao contrário, é o fermento para fartas gargalhadas. Assim como assim, os três episódios são a amostra da têmpera patética de quem se julga emblema da portugalidade contemporânea. Pois não há por aí uma suposta referência de todos nós (sem direito a dissidência, logo alvo de lapidação) que anda de braço dado, com direito a numerosos elogios, com o responsável pela faceta mais circense da política internacional?

29.7.08

O que há de comum entre Radovan Karadzic e Pinto da Costa?


Há coincidências notáveis. Para aqueles que se entretêm com a cabalística das coincidências, há simbolismos marcantes em cada coincidência notável. Eis a que me traz ao texto de hoje: para Karadzic, como para Pinto da Costa, o mundo – o mundo que parecia não admitir rombos – entretece as suas ruínas. Admito que o título pode chocar algumas consciências, sobretudo as que se deixam cegar pela filiação clubista. Admito: há diferenças entre as personagens que proponho comparar numa linhagem que, todavia, não é menosprezável.


O primeiro vem acusado de graves crimes contra a humanidade, arrastando consigo a torpeza de ter ordenado massacres que condenaram a valas comuns milhares de muçulmanos bósnios. Agora que foi capturado, vai responder no tribunal de Haia pelo crime mais vergonhoso de todos: genocídio. Diria: na escala da criminalidade não é possível descer mais baixo. Tanto assim que os crimes julgados pelo tribunal de Haia – os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade – não prescrevem. Perseguem os criminosos enquanto forem vivos, não importa o esconderijo onde se refugiem ou a falsa identidade que assumam. O outro não é acusado destes crimes. Nada que se pareça com estes crimes. Sobre ele caem, em acusações concretas, as muitas suspeitas de jogos de corrupção, da teia de interesses que espalhou uma máquina bem oleada que facilitava o rol de vitórias conquistadas nos últimos anos. Há escutas telefónicas que puseram tudo a nu. Malabarismos de juristas amestrados tentam invalidar as escutas, como se o que foi escutado nunca tivesse acontecido, ou fosse irrelevante. Manobras processuais tentam ilibá-lo do tráfico de influências e da corrupção que uma pequena amostra de escutas telefónicas, e por acidente, trouxe à superfície.


Fixadas as diferenças, o que une Karadzic e Pinto da Costa? Revejo as imagens de Belgrado em lágrimas e revolta depois da captura de Karadzic. Uma erupção de nacionalismo sérvio, o vulcão de fervor nacionalista soltando palavras de protesto contra a traição das autoridades. Ao que consta, para uma larga fatia dos sérvios Karadzic foi e continua a ser um herói. A perplexidade sobe ao lugar mais alto. Não quero ser vítima da máquina de propaganda dessa pérfida coisa abstracta chamada "interesses ocidentais", mas afirmo à mesma: há relatos insuspeitos das atrocidades ordenadas por Karadzic. Pior, das atrocidades sordidamente planeadas. Foi o carrasco de milhares e milhares de inocentes que nasceram com o credo errado e estavam no lugar errado no momento errado. Mas o erro maior foi a fria sentença de morte colectiva assinada por Karadzic.


Quando um mundo (quase) inteiro condena estes actos de barbárie, na Sérvia há muita gente que continua a endeusar Karadzic. Não há lugar ao arrependimento, nem sequer à vergonha pelos actos vis sancionados por Karadzic. Em vez disso, a glorificação de um herói. Através da revolta das gentes que saíram à rua em Belgrado e noutras cidades sérvias, uma mensagem aterradora: se a história se voltasse a repetir haveria outros imbecis candidatos a tomar o lugar de carrascos no estertor das rivalidades étnicas. Mais chacinas com aprovação entusiasta. E criminosos de guerra entronizados no lugar de heróis. Por mais abertas que estejam as feridas das rivalidades étnicas, com todo um lastro histórico que obstrui a pacificação das gentes desavindas, sou incapaz de perceber como alguém pode caucionar a chacina colectiva e o humilhante enterro em valas comuns e coroar o feito com pinceladas de heroicidade. Ou há aqui uma cegueira motivada pelos ódios inter-étnicos, ou está tudo errado na percepção das coisas e dos valores.


Agora que um dos maiores carniceiros da guerra dos Balcãs foi preso, vertem-se lágrimas pelo seu destino e espuma-se a raiva pelo herói privado da liberdade. Os que perderam a vida debaixo da sua assinatura sofrem, já no túmulo, a pior das humilhações. Aqueles que festejam, em protesto, a heroicidade de Karadzic, sinalizam a mensagem: os que foram mortos e enterrados em valas comuns, foram muito bem mortos.


Com as distâncias já ressalvadas, há parecenças com Pinto da Costa. Anos de rumores e suspeitas transformados em acusações da justiça. Todo um mar de evidências espalhando-se. Não interessam aqui as manobras processuais e os malabarismos dos juristas para assegurar o impoluto ar da personagem. Só me interessa a reacção dos fiéis seguidores, que o continuam a ser – e ainda mais indefectíveis. Quem os ouve e lê aprende muito: o presidente daquele clube fez muito bem em distribuir prostitutas pelos quartos de hotel onde estavam hospedados árbitros seduzidos pelo aperitivo carnal. É que para triunfar nos campeonatos vale tudo e tudo vale. Curiosa semelhança: Karadzic preso e as gentes a louvarem-no como herói, porventura deus como nunca; Pinto da Costa a contas com a justiça e endeusado como nunca o fora.


A reprodução da nova ética que respira nos tempos que correm: na coreografia entre meios e fins, os meios sucumbem diante da ditadura dos fins. Nos condoídos adeptos de Karadzic, como nos irados apoiantes de Pinto da Costa.

28.7.08

Em discurso directo com o travesseiro do primeiro-ministro


Apetece interrogar o travesseiro – os travesseiros – onde o senhor primeiro-ministro se deita. Interrogá-los acerca do sono que tem. Se é um sono sobressaltado, tomado por pesadelos de onde gritam dores de consciência. Ou se o sono é dos justos, sereno por não temer o acerto de contas com a consciência. Perguntar a esses travesseiros se o primeiro-ministro não chega até eles envergonhado depois do périplo de diplomacia económica que o fez reunir, em tão curto espaço de tempo, com os ditadores de Angola, Líbia, Venezuela e Guiné Equatorial. E indagar os travesseiros que guardam os vestígios da dormida consciência do timoneiro da nação se ele não confessou indigestão depois de loquazes elogios com que mimou, em doses variáveis, os ditadores.


Não sei se os travesseiros dirão que a diplomacia é o terreno onde germinam as sementes do realismo. Sementes que vão desabrochar em rendíveis negócios, nutrientes preciosos para, dizem-nos, o crescimento económico, o bem-estar pátrio, ou apenas para que alguns negócios privados esfreguem as mãos de contentamento. Oportunidades lacradas com o selo da infâmia. E crescimento pátrio com o pútrido odor das atrocidades aos direitos fundamentais e dos atropelos às liberdades. Não sei se os travesseiros dirão que o primeiro-ministro é um pragmático. Nessa modalidade subvertida que obriga as pessoas a torcerem a coluna vertebral e a estenderem a mão a facínoras da pior espécie. Ou a aparecerem os olhos dos outros (ingénuos, decerto, estes últimos) como espécimes destituídos de coluna vertebral. Porventura os expoentes do realismo dirão: "abre os olhos, ó ingénuo, que estes são tempos em que os meios sucumbem diante dos fins".


Teria que perguntar aos travesseiros: se não guardam as respostas para tudo isto nas fronhas onde repousou a brilhante cabeça do primeiro-ministro. Se nas fronhas não estão traços vivos da pior das incoerências – a de alguém que solfeja moralismo quando exala princípios e logo a seguir se esquece desses discursos quando amesenda com ditadores da pior espécie.


Gostava de poder escutar as confidências com os conselheiros que rodeiam o senhor primeiro-ministro: saber se havia uma palavra de arrependimento por ter convivido com gente daquela igualha. Se foi acometido por um arrependimento ditado pela profunda consciência, as dores tão fortes de quem se curva perante as exigências da realista diplomacia económica. A alguém alinhavado com imagem tão exemplar, só os interesses patrióticos da economia indígena são convencimento suficiente para estender a mão a gente pouco recomendável. Essa gente que lhe estende mãos manchadas com tanto sangue, eles que transpiram o fétido suor da desonra. Para logo depois atirar a maior das interrogações: e tudo isto não se contagia aos que conferenciam com ditadores deste jaez? Ou é apenas um espelho da calibrada consciência de quem aceita embelezar a imagem externa de gente condenada ao isolamento internacional?


Gostava que os travesseiros me dissessem se o senhor primeiro-ministro neles procurou habilitante confessionário. Que me revelassem se ao entrar no quatro do hotel sua excelência não fez mais nada sem antes ter lavado, e sob abundante água, as mãos que apertaram as mãos daqueles facínoras. Se deu conta do muito sangue que escorria das suas então infectas mãos. Se ainda tivesse direito a mais um par de questões, queria que os dilectos travesseiros me saciassem a curiosidade: os prolixos elogios aos déspotas eram sentidos, ou só palavras de ocasião nas exigências da cortesia protocolar, um salamaleque diplomático para elevar o ego dos déspotas? Ao incensar gente que não é companhia recomendável, quanto mais para ser ungida com um elogio que seja, o timoneiro pensou no que disse ou disse o que pensou? E gostava de findar o interrogatório aos travesseiros para saber se o senhor primeiro-ministro não confessara vergonha por andar com tão más companhias; até, se não chorava as dores de uma consciência agredida pelas exigências da diplomacia realista, a tábua rasa aos princípios eticamente impolutos de alguém que se pavoneia como insígnia da tão exemplar internacional socialista.


As companhias são a imagem de quem com elas aceita andar de braço dado. O povo, raras vezes sábio, merece que se abra uma excepção para recordar sugestivo adágio: "diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és".


25.7.08

Etnocentrismo boomerang


Há presumidos do lado de cá que teimam em vincar a (alegada) superioridade civilizacional do ocidente. É patológica a necessidade de manter vivo um inimigo no horizonte. Do lado de lá encontra-se "o árabe" (com tanto de errado que a homogénea categoria encerra). Dizem: o ocidente leva séculos de vantagem civilizacional sobre "os árabes".


Eis um exemplo acabado de presunção civilizacional. Através dela desfila uma argumentação que tenta provar a nossa superioridade: compara-se o ocidente aos "árabes" e destaca-se tudo aquilo que somos e que neles está ausente. A isto chama-se etnocentrismo. Eu diria: a negação da superioridade civilizacional que tanto se reclama para o ocidente. A incapacidade de olhar para os outros como eles são. A incapacidade para ajuizar os outros sem ser pela lente com que nos olhamos é o túmulo que encerra a presuntiva superioridade civilizacional.


(Mas: de que vale perder tempo com esta discussão? Que interessa saber onde está a superioridade civilizacional? A não ser para inflamar ódios, quando a dita superioridade é esbofeteada naqueles que são remetidos à condição de civilização inferior. A não ser para alimentar o ego ocidental, porventura um pretexto para desviar o olhar da profunda crise em que o ocidente está mergulhado. Os que exibem a superioridade civilizacional são os que têm que se agarrar a uma tábua de salvação. A tábua que impede que se afundem no lodaçal onde mergulhou o ocidente. Uma aflitiva catarse que assim se ensaia.)


Também abundam os que protestam, desde o ocidente, contra a ostentação civilizacional que agride os outros. Uma espécie de contra-cultura que germina dentro das fronteiras do ocidente. Têm toda a razão em denunciar a jactância dos desesperados sacerdotes da imaginada superioridade civilizacional que o ocidente reclama para si. Pelo caminho, entre as inflamadas críticas à incapacidade ocidental para compreender "os árabes", os críticos perdem o norte. Tal como os adeptos da superioridade ocidental se calcinam com argumentos irracionais, também os que se atiram ferozmente ao etnocentrismo ocidental depressa resvalam para a mesma irracionalidade, só que com cambiantes diferentes. Todos os males residem no ocidente, são promovidos pelos que defendem a presumida superioridade civilizacional. Como se do outro lado da vedação não houvesse males a identificar. Como se lá tudo fosse um afectuoso campo de rosas onde apetece deitar.


Às vezes, os pressupostos intelectuais que fermentam a crítica – uma determinada crítica – são moldados pela conveniência. Pela conveniência ideológica, ou doutrinária, ou pela conveniência da finalidade a que uma certa militância se entrega. Os que criticam ferozmente o etnocentrismo ocidental, sem terem capacidade para apontar os males que existem do outro lado da vedação, defendem-se: uma pessoa é uma circunstância e um lugar, o lugar onde se encontra e a circunstância que vive. Estes críticos habitam no ocidente e é ao ocidente, à sua prosápia, que dirigem as críticas. Dispensam-se de fazer a análise dos males de outras civilizações, porque não é a elas que pertencem.


É um pressuposto conveniente: é que são os mesmos que ensinam que nos devemos esforçar por saltar a vedação e compreender quem se encontra do outro lado. A metodologia necessária para evitar pecadilhos etnocêntricos. Só que grita mais alto uma tremenda incoerência: como podem manter que, na crítica que fazem e na cegueira aos males que existem do outro lado da vedação, só lhes interessa combater os males que os incomodam porque estão espalhados pelo lugar a que pertencem? Por exemplo: como não é a perseguição à homossexualidade em países islâmicos motivo de condenação, logo para quem elege como um dos "combates" a igualdade de direitos entre homossexuais e heterossexuais no ocidente? A incapacidade destes críticos do etnocentrismo ocidental para condenar a perseguição a homossexuais em certos países islâmicos condensa a sua incoerência. Os homossexuais árabes são menos humanos que os homossexuais ocidentais?


Os que denunciam o etnocentrismo ocidental e depois são incapazes de condenar "os árabes" escorregam para um etnocentrismo de sinal contrário. É um etnocentrismo boomerang. Não lhes interessa reconhecer os traços civilizacionais dos que são atacados por quem eles atacam. Se o fizessem, tinham que atropelar princípios e valores que, do alto da sua suposta superioridade moral, reclamam como universais. São uma versão às avessas de Samuel Huntington. Talvez não compreendam que essa cegueira – que é uma cegueira – dá trunfos a quem combatem (os arautos da patética superioridade civilizacional do ocidente). São a prova de uma inestimável generosidade analítica do ocidente, uma incomparável (com outras civilizações) capacidade de crítica introspecção. E uma tolerância, ao dar o flanco e o rosto e o corpo inteiro, se preciso for, às críticas exacerbadas que partem de dentro. Algo que não existe do outro lado da vedação.


Regresso à casa da partida, para uma conclusão que contraria uma crença pessoal: e tudo isto não é prova de superioridade civilizacional?

24.7.08

A “esquerda” não é sectária. Nem intolerante (remake) – ou que do “esquerda” é capaz para se auto-convencer que está ungida de razão


A direita, meu caro amigo, faz essa figura em todos os países, mesmo os mais ricos. Basicamente, acha ela que, se os pobres são pobres, alguma coisa terão feito de errado.” João Pinto e Castro, no blogue Cinco Dias

Não tinha planeado prolongar o tema de ontem. Às vezes, imponderáveis obrigam a mudar a agulha. Um acontecimento inesperado, ou palavras lidas que cativam a atenção – e a perplexidade. Em vez de guardar as palavras que dão o mote ao texto de hoje e agendar o tema para depois, preferi aproveitá-las antes que arrefecessem. E fazer a ponte com o texto de ontem. Como se o texto de hoje fosse o segundo acto da minha tremenda admiração pelo universo onde flutuam as esquerdas. Disso e da minha incapacidade para dar o salto para esse lado da barricada. Porventura, das maiores frustrações pessoais.

As generalizações são um terreno movediço. Um pântano onde as ideias se afundam, desgastadas na ausente honestidade intelectual. Também é verdade que a retórica ensina truques que fixam um hiato entre o que é dito e o que se queria afirmar. O problema das generalizações fáceis é que nem toda a gente empurrada para a categoria generalizada corresponde ao protótipo que, para conveniência argumentativa, é inventado às três pancadas. Se João Pinto e Castro estivesse coberto de razão, toda a gente que não se revê numa iluminada esquerda diria, com convicção, que os pobres carregam o fardo da miséria por castigo. A assertividade da sentença é tal que este opróbrio que cobre a direita (como se “a direita” fosse coisa homogénea) é predicado universal: é a figura que, nas sábias palavras de Pinto e Castro, “a direita” faz em “todos os países”. Vício de raciocínio: se existe alguma solidariedade ideológica que atravessa fronteiras, essa é a da Internacional Socialista.

Se me esforçasse por pensar de acordo com os refrescantes quadros mentais desta “esquerda” – a de Pinto e Castro é diferente da de Elísio Estanque –, ou de como essa esquerda retrata a forma de pensar da “direita”, diria que a “direita” acredita que os pobres carregam o fardo da pobreza como pretexto para desfiar o rol de críticas ao assistencialismo típico do generoso Estado social. O exercício mental consiste em perceber o que esta esquerda, para seu auto-comprazimento, põe na cabeça da “direita”. É o retrato idealizado, e conveniente, da homogénea “direita” feito pelas cabecinhas iluminadas desta esquerda.

Continuando nas oportunas convenções que semeiam generalizações a eito: quem é de direita é conservador e católico. Sem lugar a excepções – nem os ateus que, não se orgulhando de serem de direita, fogem a sete pés de toda e qualquer esquerda. Talvez “aves raras” que perturbam a facilidade das generalizações, um grão na engrenagem das teorias fáceis que alimentam o auto-convencimento da razão que assiste, inevitável, às “esquerdas”. Retomo o fio à meada: como os da “direita” acreditam em deus, a condição de pobreza será castigo divino. Lá diz Pinto e Castro: que a direita está convencida que “se os pobres são pobres, alguma coisa terão feito de errado”. “Basicamente”, como enfatiza.

A imaginação delirante, febrilmente delirante, desagua nestas pérolas heurísticas. Que guru de “direita” terá defendido semelhante ideia? Do que tenho lido, nunca encontrei um ideólogo de “direita” a afirmar que os pobres são pobres por destino divino. Sei que por mais que leia, há ainda muito mais que fica por ler. Talvez Pinto e Castro prestasse um favor à honestidade intelectual se citasse algum ideólogo de “direita” que tenha escrito que os pobres estão remetidos a essa condição como castigo por “algo de errado que fizeram”.

É impressionante: as cambalhotas argumentativas e os truques de retórica que se empregam para se atingir uma finalidade. É óbvio que vivemos numa era dominada pelo triunfo dos meios sobre os fins. Parece que o mal se contagia dos actos ao pensamento. Quando sem usam falsos argumentos para rebater uma posição contrária a meio de uma discussão, é sobre essa pessoa que recai o maior dos opróbrios. É ela mesma que se encosta às cordas, no fundo presa à sua desonestidade intelectual e a uma estupidez sem remissão.

Da minha parte, só tenho pena que não consiga embarcar na nau pilotada pelos timoneiros de uma esquerda qualquer. Eu sei que ser de esquerda é que está na moda. Ser de esquerda é que é justo. É patrocinar as causas dos fracos, oprimidos pelos funestos capitalistas. Ser de esquerda é ser emblema da justiça social - e quem não é pela justiça social é indigno de ser cidadão. E tudo o resto que faz das esquerdas uma atractiva casa. Para minha desdita, não consigo. Por mais que me esforce, não consigo. E menos o consigo de cada vez que dou de caras com as esquerdas intelectualmente batoteiras.

23.7.08

A “esquerda” não é sectária. Nem intolerante

"Os sinais de crescimento eleitoral dos partidos à esquerda do PS e a provável perda da maioria absoluta pelo actual partido no poder requerem uma reflexão séria sobre "a esquerda" e os seus desafios. Se o proclamado "socialismo moderno" de Sócrates vier em breve a desvanecer-se no ar, uma mudança paradigmática na esquerda terá de ocorrer, se não quisermos hipotecar em definitivo o futuro da democracia." Elísio Estanque, in Público de 22 de Julho de 2008 (o destaque é de minha autoria).

Não consigo resistir a um ensaio sociológico sobre alguma sociologia política que está muito em moda. A sociologia engajada, onde a certa altura se confunde o papel do investigador universitário com o papel do actor empenhado em militâncias. Não estou a defender que o primeiro seja uma criatura asséptica, sem opiniões próprias, ou que no lugar de investigador tenha pudor de revelar preferências. Assim como assim, o primeiro não se desliga da cívica condição. Não se pode impor uma camisa-de-forças ao académico apenas porque o é. A condição de investigador e as exigências de rigor e imparcialidade não podem motivar a demissão do cidadão que há si.


No entanto, não compreendo como alguns misturam os dois papéis num só. A certa altura não sabemos quem opina: se o meritório académico, se o cidadão que puxa os galões à académica condição (como se ela fosse passaporte de autoridade intelectual…) e intervém em defesa de uma das causas em que milita.


A escola coimbrã sempre chamou a si, em muitos saberes, um papel liderante. Tanto que, não faz assim tantos anos, ouvi um catedrático local gabar-se que a Universidade de Coimbra não reconhecia diplomas passados por Oxford e Cambridge. O modismo coimbrão, que se serve numa paleta onde repousa narcisismo intelectual densificado ao longo de sucessivas gerações, é coisa inerte. Teima, estóico e imperturbável, ao avanço dos tempos. Mesmo que o modismo venha temperado com novas cambiantes, novas escolas que chamam a si a vanguarda do pensamento, que se auto-convencem que estão muito à frente na arte de fazer ciência.


A sociologia engajada é a nova aragem desta vetusta tradição. O autor do mote que encabeça o texto é um dos representantes dessa escola. E tem o inalienável direito à opinião. Tal como alguns leitores o direito a considerá-la disparatada, facciosa, inquietante. A frase do artigo de opinião de Elísio Estanque é exemplar do facciosismo e do perigo que uma certa esquerda representa. Compreendo que o sectarismo de Elísio Estanque o faça incluir apenas as "esquerdas" no escrito. Das direitas, outros hão-de curar, mais interessados no vegetativo estado em que elas se encontram por estes dias (dou de barato que o PSD se encaixa na "direita", diagnóstico de que discordo). Adivinho que o paraíso na versão imaginada por Elísio Estanque, seus gurus e acólitos, seja uma paisagem eleitoral em que a "direita" fosse varrida. De preferência para sempre.


Serão estas palavras uma adivinhação, apenas um registo especulativo? Talvez não. Retomo as palavras de Elísio Estanque: "(…) uma mudança paradigmática na esquerda terá de ocorrer, se não quisermos hipotecar em definitivo o futuro da democracia". O leitor aprende da cartilha: o futuro da democracia é sinónimo de "esquerda", dir-se-ia património genético das "esquerdas". Por exclusão de partes, "a direita" (ou as "direitas", pelo menos algumas delas) não defendem a democracia. Estão ausentes do futuro da democracia. Eu avançaria uma proposta: a Constituição já proíbe os partidos que professam a ideologia fascista; para o paraíso chegar à lusa terra, é só um passo mais: proibir todos os partidos que, de acordo com uma comissão de sábios onde Elísio Estanque e outros engajados sociólogos coimbrões teriam lugar cativo, levem com o vergonhoso rótulo de "direita".


Cada um fica entregue aos deslizes totalitários da sua lavra. Não sei se o relativismo em que a sociologia engajada se revê aceita a volatilidade da "democracia" (apesar de estar nos antípodas dela, coincidimos no relativismo). Haverá maneiras diferentes de interpretar "democracia"? Os comunistas usam a palavra a toda a hora, mesmo que se saiba que o passado de quem foi seu ícone não é abonatório do respeito pelas liberdades, da tolerância pela opinião diferente. Não abona em favor das suas credenciais democráticas. Talvez por isso se escondam no corajoso passado de resistência "anti-fascista" para puxarem lustro aos galões democráticos. Um expediente, apenas: não é essa heróica resistência que os transforma, por decreto, em democratas. Mas Elísio Estanque acha que os comunistas, principalmente os que procuram escapar da ortodoxia leninista que faz do PCP um museu vivo do comunismo de antanho, são mais democratas do que a gente que anda pelos partidos de "direita". O relativismo é a fiança de tudo e mais alguma coisa.


O que me inquieta é esta esquerda arvorar-se em campeã da tolerância. É só reler a frase de Elísio Estanque. E interrogar: para onde terá emigrado a tolerância de quem escreveu aquilo? O sectarismo impedirá de concordar com este juízo. Sobra-me o pregão definitivo: que viva o relativismo!

22.7.08

A vida quase toda num pedaço de Internet


Trazem-me pela primeira vez até a uma página de Hi5. Já tinha ouvido falar da coisa, mas nunca a curiosidade de a visitar. Talvez porque, do que me falavam, formei a ideia que é parecido com aqueles programas de televisão que metem um grupo de pessoas dentro de uma casa, com câmaras de filmar espalhadas por todos os recantos, tudo e mais alguma coisa filmando. E os actores de ocasião, contentes por exporem toda a sua vida, até os detalhes mais íntimos, a quem tenha uma enfermiça curiosidade pela vida alheia.

A impressão, num caso como no outro, de que a privacidade e a intimidade são esbulhadas. E com o consentimento dos próprios, já não vítimas desse esbulho, mas seus promotores dilectos. Eles próprios a devassarem a sua intimidade. Agora, parece que a coscuvilhice parte de si para os demais – uma inversão do conceito.

Foi por acidente que me apresentaram a uma página pessoal no Hi5. Uma colega de trabalho, imersa numa tremenda ingenuidade, decidiu fazer ligação à sua página pessoal no Hi5 na página de um evento divulgado para a juventude que equaciona a entrada numa universidade. Por portas travessas, é todo um universo de frequentadores da Internet que trava conhecimento com a vida daquela pessoa. Ali toda exposta em fotografias. A sua, a do consorte, os dois idilicamente em Barcelona (e seria em lua-de-mel?), os retratos enternecedores da boda, os amigos trazidos para ali – e teria sido com o seu consentimento?

É algo que ultrapassa a minha compreensão: como há quem se disponha a abrir a sua vida, em detalhes que por vezes entram no território da intimidade, pô-la assim toda, ou em fragmentos, na Internet? Ânsia de reconhecimento público? A Internet é um clamor democrático sem precedentes. Todavia, um perigoso ensejo para quem se quiser mostrar a toda a gente. Quem se expõe diante de um vasto universo de utilizadores da rede corre riscos. O maior deles é o de alguém espiolhar toda a sua intimidade revelada. Há um desapossamento da individualidade de quem, toldado pela ingenuidade, se inebria pelas possibilidades da Internet, versão 2.0. Para corroborar a ideia de que estamos numa aldeia global, e que a propagação da Internet aproximou mais ainda os habitantes dessa imensa aldeia onde as distâncias se desfazem em décimos de segundo.

Parece que tudo se encaminha para a diluição da esfera privada – daqueles, e numerosos o são, que se enamoram das possibilidades de partilha de informação através da Internet. Sinal dos tempos: muitos exaltam o conforto da Internet, as tantas possibilidades à distância de um clique num qualquer computador. Talvez o preço a pagar seja a exposição de detalhes de uma vida, à disposição dos mirones que andem pela rede em doentia busca desses pormenores. E talvez seja a Internet um diferente caldo de voyeurismo, uma nova modalidade de voyeurismo. Com a particularidade da existência de um imenso exército que se entrega voluntariamente no altar desse voyeurismo. Deixam de ser vítimas da propensão alheia para espiolhar a vida dos outros. Passam a ser eles os fautores desta tendência dos novos tempos. Porventura são os próprios conceitos de voyeurismo e de intimidade que devem ser repensados, redefinidos.

Ao chegar aqui, uma necessária introspecção. Os textos que aparecem num blogue, às vezes tão umbiguista, não são uma variante da exposição de toda uma vida? Pode um certo recato impedir o aparecimento de fotografias que revelem o autor e o seu entorno. Mas não é verdade que há palavras que desnudam mais que mil retratos? Palavras que ficam emolduradas no arquivo da memória, palavras que foram escritas e escancaram as janelas de uma certa intimidade. Essas palavras encerram imagens mais poderosas que um retrato. Quando isso acontece, não há mais exposição de si que em Hi5 pejados de fotografias por tudo e mais alguma coisa?

É intrigante. Como se tecem as pontes para a revelação das fragilidades que só aparecem depois de as ver algures. O que obriga a repensar o que se escreve num blogue. Para não o tornar numa versão escrita de um Hi5 sem pudor que abre de par em par as janelas da esfera individual.

21.7.08

Sigur Rós, "Ára Bátur"

O altar dos néscios


O desassombro das almas maiores. Predestinados, nascidos para serem (ou se julgarem) gurus de seitas ao menos imaginadas. O desprendimento de tão elevada inteligência, uma assombrosa inteligência espalhada como dote que se oferece aos demais em redor. A inteligência que se ostenta com tiques sublimes, quase imperceptíveis, de sobranceria. É a inteligência que se esmaga contra quem ousa interrogar dogmas elevados a imperativos categóricos. A inteligência que esmaga os ousados que julgam descobrir uma brecha no pensamento.

Só que tão sobredotados crânios não têm brechas no pensamento. Ele, o pensamento, blindado numa imaculada perfeição. Mal dos que julgam discernir um rombo por onde se escapa alguma incoerência do pensamento – onde estaria, afinal, a imperfeição digna da natureza humana. Da pura impossibilidade: o pensamento tão elaborado, de braço dado com a tremenda inteligência que se passeia para adoração de audiências, hermeticamente selado. Insusceptível de qualquer incoerência. Pressupostos convenientes e dogmas que o são – dogmas, encerrados no seu próprio monolitismo.

Quem não se convence com tão esmagadora inteligência, os que exercem a liberdade de expressão e afinam as ideias por paradigmas diferentes, logo encerrados no altar da necedade. Não podem adversários ter a ousadia de questionar dogmas ungidos com tamanha perfeição de intelecto. Só lhes resta um destino: o desmerecimento, passarem por despeitados, palavras ao mesmo tempo simples e de uma devastação total, na desleal táctica de quem arremete com intolerância contra os que ensaiam pela discordância um abalo telúrico de tão sólidos dogmas.

Diante de sumidades deste calibre, só apetece ser entronizado no altar dos néscios. Nestas condições, ostentar orelhas de burro é elogio maior. A superior recompensa é saber que aos outros pertence a aleivosia de ridicularizar quem se coloca nos antípodas dos dogmas que se confundem com imperativos categóricos. Curiosamente, é gente que prega modismos intelectuais como o relativismo. Gente que adoça a boca com a tolerância, esteio maior de uma fraudulenta posição. A falácia em esplendor quando alguém situado em lado contrário da barricada provoca os dogmas inexoráveis. Às urtigas o relativismo e a idealizada tolerância. Estalado o verniz, fica à mostra uma têmpera: das verdades incontestáveis, afinal na negação do proclamado relativismo; e da intolerância congénita quando alguém interroga os sacratíssimos dogmas.

O pior é que estas erupções chegam de mansinho, perfumadas com uma suave ironia, sem que haja um tom agreste nas palavras que açoitam o que discorda e que, por discordar, vai arcar com o rótulo de néscio. Sem ser assim chamado. As palavras usadas é que o deixam perceber. Carente franqueza que leva a esconder a acusação em meias palavras. Um tacticismo que desnuda vilania em estado puro. A vilania que se esconde numa certa aura monástica – aos monges longe de se atribuírem maus fígados.

Mesquinhez a dobrar. A de quem prega uma coisa e pratica o seu contrário. E surge aos olhos dos outros como exemplar sacerdotisa, ungida com divinos dotes que entronizam personagem que marca o caminho que seguidores devem percorrer. Entre a perturbante intolerância que mascara a incapacidade para sentir a afronta dos monolíticos dogmas e um mal disfarçado fundo de maldade, fica a dúvida quanto ao diagnóstico. Mal por mal, prefiro quem não se esconde atrás de uma aura de santidade para ter estes alardes de indisfarçável fúria avassaladora em relação a quem ousa discordar. Prefiro quem tem a espontaneidade da maldade em estado puro, em toda a sua cristalinidade. Sabe-se, logo, com o que contar. Não é preciso deixar o tempo passar e acumular-se uma densa camada de pequenos mas significativos episódios de grotesca, mas ao mesmo tempo sublime, intolerância. Para então perceber que a perfídia maior é a de quem se esconde detrás do espelho de santidade.

Só que o espelho, de tanto se desgastar, torna-se baço. É então que tudo fica à mostra. Entre ser confinado ao altar dos néscios ou ser tão perfidamente inteligente, deixo este atributo vago e conforto-me com as orelhas de burro.