31.12.09

Sigur Rós, "Svo Hljótt"

Um ano inteiro.

E os teimosos que teimam que a década acaba hoje?


Dez anos depois, a mesma ladainha. Como se não bastasse o cansativo, repetitivo aranzel dos "balanços" de final de ano – em que se compulsam as personalidades do ano, as frases mais bombásticas, os fracassos, os melhores discos, filmes e livros, etc. –, este ano temos dose dupla de tudo isto porque há muita gente que teima que o último dia de 2009 anuncia o final de uma década. Há dez anos passámos por tudo isto. Com uma agravante: em 1999 havia muita gente convencida que o século XX terminava no trigésimo primeiro dia de Dezembro desse ano.

Das duas, uma: ou toda essa gente tem um problema terrível com os números (e particularmente com a ordenação cardinal), ou têm uma pressa impressionante de andar atrás do tempo. Vou acreditar que se trata da primeira hipótese. São atraiçoados pela mudança de número no terceiro dígito que compõe o ano que começa amanhã. Esse dígito deixa de ser o zero e passa a ser o número um, o que as leva a darem por adquirido que daqui a uma horas já entrámos numa nova década.

Ora, uma década é composta por dez anos. E, a menos que se arranje uma versão adaptada daquela ridícula estrofe de um ícone do cancioneiro ligeiro indígena que sugere que "o natal é todos os dias, é quando um homem quiser", também se podia dizer que uma década termina quando a um homem apraz. Se me apetecer dizer que a década só termina no fim de 2012, é porque considero que ela começou no primeiro dia de 2003. Para as convenções, todavia, as décadas começam num número redondo. Talvez por isso os tais teimosos estejam convencidos que na dobra do ano que muda o terceiro dígito da combinação numérica que compõe o ano se faça a mudança das águas entre duas décadas. Assim como assim – imagino que seja este o seu raciocínio –, o zero é o tal número redondo e até é um número par.

Tudo isso faria sentido se o calendário fosse um aglomerado de datas ao sabor dos caprichos humanos. Não parece que seja esse o caso. O calendário é uma sequência ordenada e obedece a uma coerência. A contagem do tempo teve algures um começo. Se formos pelas normas estabelecidas, foi com o nascimento de Cristo que se iniciou a contagem dos anos. O primeiro ano do calendário foi aquele em que J.C. nasceu. O primeiro ano, logo, o ano um desta contagem. A sequência de dez anos que consuma a década só terminou ao décimo ano, logo, ao ano dez desta contagem.

Por maioria de razão, e decalcando o raciocínio para a década em que estamos, 2009 é o nono ano da década. Então como se teima que hoje termina a década se amanhã se inicia o décimo ano da sequência? Para que os teimosos estivessem certos na sua extemporânea sucessão de décadas, teriam que nos convencer que a presente década tinha começado em 2000. Recuando no tempo, aos alvores da contagem d.C., era como se o ano inicial do calendário tivesse sido o ano zero...

Se não for por atrapalhação algébrica, esta teimosia em apressar o final da década só se explica pela pressa em andar atrás do tempo – ou, também se podia alvitrar, pela pressa em empurrar o tempo com a barriga. Um sinal dos tempos: a paradoxal prisão interna que nos inquieta, divididos entre a tremenda pressa de viver a vida, como se fôssemos nós a atropelar os relógios que marcam o compasso do tempo, e as lamúrias de que o tempo se escoa com uma lentidão exasperante. Tenho a impressão que o extemporâneo funeral da primeira década do século XXI aprova a sensação que domina os teimosos – a de que temos que apressar o tempo que eles sentem passar muito devagar. O que me deixa perplexo, pois padeço de maleita oposta: a cada ano que se dobra, naqueles inevitáveis momentos de interiorização do ano que termina, sinto a apoplexia do tempo que vai numa corrente acelerada.

30.12.09

Expressões idiomáticas sem sentido (II): vir a talho de foice


Está convencionado dizermos que "vem a talho de foice", a expressão idiomática para se dizer, por palavras diferentes, que "vem a propósito" falar-se disto já que se estava a falar daquilo. Quando alguma coisa vem a talho de foice, fazemos a ponte entre dois assuntos que, à partida, não têm ligação entre si. Mas só aparentemente é que não há vínculo entre eles, pois logo a seguir atamos as pontas separadas enquanto advertimos, "a talho de foice", que afinal uma coisa leva à outra.

Por exemplo, podíamos falar do inverno rigoroso com que fomos agraciados este ano. De caminho, enquanto resgatávamos da memória um anterior inverno tão severo, podíamos interrogar, a talho de foice, se o catastrofismo das alterações climatéricas faz sentido. Ou podíamos discutir a probidade do primeiro-ministro a propósito dos rumores que se ouvem por aí acerca da linguagem de caserna que usou nos telefonemas com o seu grande amigo o banqueiro do BCP. Para, a talho de foice, mergulharmos numa intensa discussão sobre a dignidade (ou indignidade) de usar chamadas telefónicas privadas na batalha política. Terceiro exemplo: enquanto assistimos ao discurso habitualmente enfadonho do presidente da assembleia da república (na muito solene cerimónia em que uma delegação do parlamento vem desejar boas festas ao presidente de república ou em qualquer circunstância em que Jaime Gama ora), diríamos que vem mesmo a talho de foice falar de medicamentos que induzem o sono.

Esta é uma expressão idiomática que sempre me soou mal. Ouvia as pessoas dizerem "a talho de foice" e não percebia o que tinha o talho a ver com a foice. Pois se no talho se amanham as carnes dos animais já cadáveres que depois se expõem em nacos vistosos e se as foices são usadas para ceifar os cereais, tinha dificuldade em perceber a coerência entre as duas palavras. Naquela curiosidade típica da idade dos porquês que começa na infância e nunca mais pára, recordo-me de ter perguntado ao meu pai o que se pretendia dizer quando alguém pronunciava a expressão "a talho de foice". Sedimentei a resposta sem perceber a explicação. Continuei, pelo tempo fora, a coçar a cabeça de cada vez que escutava alguém dizer que isto vinha a talho de foice daquilo. A certa altura interroguei se não se tratava daquelas expressões idiomáticas que entram nos costumes sem nos darmos conta se elas têm qualquer significado.

Para piorar a embirração com a expressão, ela continha uma palavra que esbarrava em pessoais preconceitos. (E quem afirmar a pés juntos – outra expressão idiomática que dava pano para mangas… – que não tem preconceitos, que atire a primeira pedra ao ar). Eu esbarrava na palavra "foice"; a ininteligibilidade da expressão idiomática ainda não se escorava num preconceito contra a palavra "talho". Encalhava na foice porque a ligava a um dos símbolos do comunismo. Alérgico ao comunismo como sempre me conheci, de cada vez que escutava alguém dizer "a talho de foice", revolvia-me nas entranhas porque a foice tinha a conotação com o escabroso, esclerosado comunismo.

O que é pedagógico é perfurar as paredes da expressão idiomática. Ela combina palavras que aparentemente encerram o significado da própria expressão. Qual é a relação causal entre o "talho" e a "foice"? Nos talhos não se comercializa o que é ceifado nas searas pelas foices empunhadas pelos camponeses. Da mesma forma que nos campos trabalhados pelas foices não se colhe mercadoria vendida nos talhos. Indo a fundo na expressão que combina dois termos tão em descompasso um com o outro, percebe-se o seu significado. Se, quando dizemos que isto vem a talho de foice em relação àquilo, queremos atar as pontas de dois assuntos que na aparência não têm qualquer relação entre si, faz todo o sentido dizer-se que "vem a talho de foice". O talho e a foice também não se entoam na mesma sintonia.

Que é como quem diz – pedindo o calão de empréstimo ao povo: quando se pensava que o cu não tinha a ver com as calças, afinal até tem.

29.12.09

Agricultores virtuais?


É da natureza humana, a faceta lúdica. Somos jogadores natos. Há quem perca a cabeça – e o património – com apostas viciantes que jogam contra as escassas probabilidades de sair triunfante no jogo. E há outros jogos mais saudáveis porque não estiolam o património de quem por eles se enamora.

Quando éramos jovens dependíamos dos flippers. Depois vieram as primeiras consolas rudimentares (a ZX Spectrum), que empancavam a toda a hora para desespero de quem se queria divertir com os pueris joguinhos. Ficámos adultos e a tecnologia cavalgou num trote acelerado. Descobrimos computadores pessoais, consolas mais sofisticadas, processadores potentes e velozes, jogos cada vez mais apetecíveis, com imagens que se aproximam da realidade. Com o advento da internet até passámos a jogar à distância, os adversários porventura anónimos num sítio qualquer que desconhecemos. Soube há dias que a indústria dos jogos para consolas e computadores vale uma fortuna. Sintomático.

O uso do plural ali atrás é uma figura de estilo. Só momentâneos arroubos com estes jogos, pois nunca tive paciência para gastar tempo com eles. Para começo de conversa: os vícios dos outros são-me assunto totalmente estranho. Gastamos o tempo como bem nos aprouver; ninguém, a não ser o próprio, é senhor do seu tempo e soberano em como o vai despender. No máximo, cada um de nós manifesta, no seu íntimo, estranheza pelos vícios dos outros. Sobretudo se não houver mínima identificação com o que os leva a cair no estado de dependência.

Está na moda um jogo em que os jogadores fazem as vezes de agricultores virtuais. Já esteve na moda um outro jogo de realidade virtual em que quem nele embarcasse era convidado a um fútil exercício de esquizofrenia, desmultiplicando-se em personalidades paralelas, tantas as que conseguisse criar e manter. Era uma espécie de Fernando Pessoa e heterónimos exportados para a realidade virtual. O modismo do momento para quem aderiu ao Facebook é ser proprietário fundiário e camponês ao mesmo tempo. No fundo, uma maneira diferente da tal esquizofrenia de personalidades em que a realidade virtual parece fértil. Quem se propuser a ser proprietário fundiário herda, por milagre, uma quinta. Depois tem que a manter – e é aí que o empresário agrícola se converte em camponês de si mesmo.

Noto o passadismo deste jogo. Quando se pensava que o século XXI era o receptáculo da pós-modernidade (há até quem invoque a "pós pós-modernidade"…), as delícias da tecnologia colocaram-se ao serviço de uma tradição de antanho. Foi lá atrás, muito lá atrás no tempo, quando o conhecimento científico e a tecnologia eram rudimentares, que a agricultura teve o seu apogeu. Agora que estamos na era da "pós pós-modernidade", a tecnologia – que em teoria daria mais um golpe nas ancestrais tradições da agricultura – faz a ponte com o anacronismo. O mal pode ser meu, que tenho a mania dos exageros de análise: pode ser por genética antítese com a agricultura, mas é-me dado a ver que a agricultura tem os dias contados. Já sei que me vão interrogar: e sem a agricultura, o que comemos? Até me podem apontar o dedo argumentando que a agricultura é imprescindível para manter a paisagem rural, o contraponto da mancha urbana que se estende com a passagem do tempo e com a sedução das pessoas que se acotovelam nas cidades.

Os teólogos da nova ruralidade argumentam que é no campo que reside a qualidade de vida. Assustados com a vida apressada das cidades, onde o ar é irrespirável e as pessoas se tratam na indiferença do anonimato recíproco, querem construir um novo futuro através do regresso ao passado. Exilam-se no campo, onde se deliciam com o bucolismo da paisagem não composta por betão armado ao alto. Refugiam-se no estado da natureza em que a ruralidade ainda é pródiga.

O jogo que convida os jogadores a serem agricultores virtuais é o berço desta ruralidade pós-moderna? Talvez a resposta esteja no seu próprio enunciado: não passam de agricultores virtuais. Virtuais. Quantos estariam dispostos a mergulhar na vida árdua de quem cultiva (a sério, não no computador) legumes, frutos e cereais? E, no fundo, um jogo não é isto mesmo – a simulação, e só a simulação, da realidade?

28.12.09

Votos natalícios, os votos impossíveis



Faz parte do imaginário da quadra: um microfone estendido diante de populares anónimos, convidados a formular os desejos para o natal e para um novo ano que se aproxima. As pessoas respondem, com préstimo e generosidade: ora desejam saúde (para cada um e para todos, imagina-se), ora anseiam pela paz sempre adiada. Enterneço-me enquanto espectador deste voluntarismo tão ingénuo.

Os poetas apregoam que os sonhos são o sal da existência. Alguém pode ser acusado por desfiar desejos que, à partida, no seu próprio íntimo, sabe serem objectivos impossíveis? É da natureza humana, a ambição. Se nos demitirmos das metas ambiciosas, arrastamo-nos numa existência vegetativa. Daí que nestas alturas de balanços (o fim do ano é a melhor altura para acertar contas com o que ficou para trás) um laivo de optimismo, um laivo que seja, perfume o exercício prospectivo.

O ingénuo voluntarismo dos anónimos populares é isso mesmo: uma manifestação de vontade que prima pela ingenuidade. Pode dar-se o caso de as pessoas abordadas pelos repórteres de rua serem apanhadas de surpresa quando são interrogadas. Com a pergunta disparada de chofre, nem sequer pensaram no assunto. As primeiras palavras que descem à boca coincidem com a reacção espontânea, com os votos vulgares que se repetem ano após ano – e que todos os anos se desfazem em pó quando, na hora do acerto de contas com o ano dobrado, as metas se repetiram miragens.

As pessoas desejam-se, umas às outras, saúde. Voto inconsequente. Não acontece a existência ser uma roleta russa que a uns distribui saúde de ferro e a outros doenças mais ou menos pungentes? Não vale a pena dar o braço a torcer e fazer coro com as pitonisas de uma vida asséptica que não se cansam de avisar que hábitos desregrados trazem consequências desagradáveis, dolorosas, por vezes fatais. Quem não conhece gente com hábitos de vida irrepreensíveis que foi assaltada pelos caprichos da roleta russa? Como a saúde pertence ao domínio do aleatório, desejar "saúde para todos" é uma forma envergonhada de ambicionar para si próprio um ano longe de hospitais e de médicos. Enquanto, atrás das costas, cruza os dedos num ritual supersticioso.

As pessoas desejam, à humanidade em geral, paz. Só o desconhecimento antropológico da espécie as pode conduzir a semelhante voto. A história da humanidade está repleta de conflitos, mais ou menos sangrentos, que são a negação da paz ambicionada. Para que não haja equívocos: não sou nenhum falcão enamorado por jogos de guerra, como acontece com os militares acantonados na caserna, aqueles militares de baioneta enferrujada mergulhados numa tremenda depressão porque lhes faz falta a acção em "teatro de guerra", o cheiro a pólvora misturado com o odor nauseabundo do sangue e de corpos que jazem derrotados pela absurda guerra. A cada guerra que passa, um lamento, um pungente lamento. E o registo da estupidificação da espécie, teimosamente entretida com a sua antropofagia bélica.

O que era ideal? Que não houvesse guerras. Todavia, o que se deseja é impraticável – e com uma frequência tamanha que isso se converte em regra, desmonta os ideais em nada. Quem insistir em projectar um futuro risonho para o planeta, um cenário aliviado de guerras e guerrinhas, desconhece a natureza da espécie. Ambiciona o desejável que, contudo, é de uma impossibilidade atroz. É nestas alturas que as dores dos desejos impossíveis são lancinantes. Ou nem o chegam a ser por inconsciência de quem formula votos tão belos como insensatos.

Estes desejos que proclamam, nas intenções, um ano melhor do que o ano senescente, são uma de inutilidade pegada. Como se houvesse esta compartimentação da existência fervida na artificialidade dos calendários que se sucedem. Se entendessem que a vida se repete dia após dia, as decepções não caldeavam a diária amargura. Como os dias se repetem sem o espartilho dos calendários, nem a insana cabalística dos anos, talvez não formular votos seja o melhor método. Sobretudo dos votos tangidos pela vulgaridade, os votos impossíveis. De uma impossibilidade além de qualquer utopia.

25.12.09

O natal impugnado (conto natalício tardio)



Contava-se às crianças, às sucessivas gerações extasiadas com a aproximação do natal: o natal é imorredoiro. E as crianças enfeitavam-se de ilusões. Presas a um alucinante conto do vigário, convencidas, tão inocentes, de fábulas que desfiavam as leis da física. É que nem o pai natal é personagem singular – a menos que também as convencessem que o envelhecido, barbudo Nicolau tem o dom da ubiquidade e uma energia juvenil – nem as renas são animais com brevet de voo.

Mas o natal repetia-se todos os anos, sempre na mesma data por honra às convenções. Enquanto as criancinhas andavam o vinte e quatro de Dezembro num frémito impossível de travar, os mais velhos predispunham-se para o banquete. Os infantes entregues à febre imparável, aquecida pelo relógio que naquele dia parecia demorar-se na sua marcha – e só podia ser de propósito, a preguiça dos ponteiros. Os mais velhos, há muito tempo desfeitas ilusões prodigiosas, nos preparativos para o alambazar tradicional. E um punhado de crentes fixava o natal pelo significado religioso, a imperativa missa do galo marcada para a meia-noite em ponto, um digestivo para os exageros da gula.

Afinal o natal haveria de não ser imorredoiro. Num certo ano, as trevas abateram-se sobre o calendário. Como um tremendo apagão colectivo. Todos anoiteceram a vinte de três de Dezembro. Quando acordaram, nem deram conta que a folha do calendário havia sido mudada, por mistério, para o vigésimo sexto dia do mês. Sem danos para a felicidade dos juvenis. Nem estragos nas vísceras dos mais velhos, noutros anos abrasadas pelos exageros gastronómicos da quadra e pelo exagero do garfo. Nem sequer inquietação para os que cultivam o lado religioso, tão habituados a frequentar missas com assiduidade. Não chegou a haver um único levantamento popular.

Os economistas – e o governo – dariam conta da diferença. Os primeiros, anotando a quebra das vendas, pois afinal as trevas de quarenta e oito horas haviam sido meticulosamente instiladas sem que ninguém desse conta da dispensa das compras natalícias. O governo lamentava um Dezembro anómalo pela escassez de impostos cobrados devido à míngua consumista. Mas era uma força superior, inexplicável, uma força de que não se conhecia origem. Estranhamente, tirando os muito pedagógicos avisos dos economistas e as lágrimas oportunas carpidas pelo governo, o salto no calendário não foi por ninguém lamentado. Era só uma experiência. Para testar as gentes, a sua reacção perante a provisória diluição do natal.

Pela primeira vez, havia mesmo pensamento único. Não se penduraram instalações luminosas nas ruas (e os ecologistas aplaudiram). Não se montaram árvores de natal nas casas. Não houve a corrida ao bacalhau, no necessário encarecimento que não faz esquecer os mecanismos de mercado (os ecologistas também aplaudiram – e a dobrar). Não houve exílio maciço dentro de centros comerciais na demencial corrida às prendas que ficam sempre tardias. Nem reportagens feitas na Lapónia cheia de neve, com entrevistas a filisteus que se fazem passar por pai natal. As escolas tiveram que substituir as intermináveis festas de natal por outras actividades à escolha da criatividade de quem as dirige. Sem preparativos para festas natalícias, nem contos que antecipavam a quadra, ou aquelas músicas que emprenham os ouvidos sempre a partir de fins de Novembro, num convite à alienação estética. O coro de Santo Amaro de Oeiras ficou recolhido nos bastidores.

O natal tinha coalhado. E – surpresa! – ao vigésimo sexto dia de Dezembro, o planeta acordou tão feliz (ou infeliz, depende da perspectiva) como dantes. Soubera-se nesse dia: o natal tinha sido impugnado. Ainda se estava para descobrir quem o tinha banido do calendário e que juiz tão poderoso tinha dado seguimento à impugnação. Ou, melhor dizendo, quem tinha endossado dois dias de calendário às trevas, ditando uma inexplicável letargia colectiva, um longo sono de quarenta e oito horas.

Nesse ano, ao vigésimo sexto dia de Dezembro, o natal só por anamnese.

24.12.09

O que se aprende com os clérigos


Um bispo anglicano dizia, com a naturalidade de quem ensina o catecismo às criancinhas, que nestes tempos de crise profunda os pobres e desvalidos podem subtrair mantimentos do supermercado sem prejuízo do perdão divino. Um bispo lusitano, encafuado no vetusto conservadorismo da santa igreja católica, anunciava que o casamento entre homossexuais era um atentado à família. É por isso que, nas raras vezes que tenho que frequentar missas (funerais e missas de sétimo dia), fico muito atento à oratória dos curas. Aprende-se muito. Normalmente, aprendo a antítese das palavras ditas nas homilias.

Sobre a revolucionária ideia do bispo anglicano: é dramático o estado de necessidade das famílias a quem a crise degolou os já parcos rendimentos? Concordo. Esse é o pretexto para se branquearem furtos em supermercados, para que essas famílias possam saciar a fome? Discordo. Já que tanto se deifica o papel do Estado, de um Estado que muitos querem cada vez mais omnipresente, que a factura do assistencialismo seja endossada ao generoso Estado.

Admitir furtos ocasionais é uma perigosa ladeira descendente sem fim. O mal está em admitir um começo para as saídas sub-reptícias de supermercados sem se pagarem os víveres. Tudo começava com um punhado de bens essenciais. Um dia destes, vinho de primeira, chocolates opíparos, gelados gourmet, sabe-se lá mais o quê, seriam subtraídos às prateleiras dos supermercados sob pretexto da míngua de rendimentos por culpa da terrífica crise. Tudo começava com gente carenciada. Um dia destes, oportunistas falsamente necessitados estavam a sair à socapa dos supermercados com mantimentos roubados. E um dia destes, nada teria a protecção da propriedade garantida. Se uma pessoa necessitada quisesse viajar para longe, quem se podia opor a que ela não pagasse o bilhete de comboio ou, em última instância, pegasse num carro que não é seu para se deslocar até ao destino?

Eu sei que por estes dias em que os adoradores das heterodoxias económicas andam de peito inchado, convencidos que as suas profecias se realizaram com a crise em que estamos, defender o direito de propriedade é uma heresia. Mas corro o risco de ser bota-de-elástico. Prefiro a estabilidade dos direitos do que normas voláteis que apenas alimentariam o caos. E quem se pode livrar das adversidades do caos? Gostaria de saber a opinião dos esquerdistas radicais – e do bispo anglicano que teve a peregrina ideia – se alguém trespassasse a sua propriedade. Não vale a alegação de que não são endinheirados; o tempo das nacionalizações ficou enquistado na poeira do febril PREC e ser rico não é crime (não é, pois não?). Se tanto se enamoram da sacrossanta igualdade, como defendem que os ricos possam ser atropelados nos seus direitos de propriedade só por serem abastados?

Sobre o bispo viciado no habitual conservadorismo de sacristia da igreja católica: não adianta o diálogo de surdos com quem está aprisionado em quadros mentais muito estreitos. Ou, para ser condescendente, nos seus quadros mentais. Talvez estes preclaros clérigos pudessem perceber que a sua mundividência não é a única forma de olhar para as coisas. A batuta do tempo marca o novo compasso que exige a renovação da visão do mundo. E nem parece acertado cobrir a indignação com o manto da ciência quando invocam a antropologia para atestar o equívoco de admitir que dois homossexuais se possam casar e formar família. Primeiro, a antropologia não é imóvel perante as andanças do tempo. Segundo, se se querem agarrar à ciência como tábua de salvação da inércia dos seus dogmas, deviam incorporar outros estudos que mostram que a homossexualidade não é doença e que as crianças adoptadas por casais homossexuais são tão normais como as demais.

Que raio: custa admitir que outras pessoas tenham preferências sexuais diferentes das nossas? Podemos-lhes negar as mesmas regalias legais que sancionam a opção de duas pessoas serem uma família? E não venham com obtusos argumentos que são apenas uma ilustração da inércia do tempo, quando sugerem que desde tempos imemoriais o casamento é sinónimo da união de pessoas de sexos diferentes. É que a homossexualidade já foi diabolizada em tempos, criminalizada, vista como doença. Mas não hoje. Se dois homens ou duas mulheres vivem juntos e são família, por que não se podem casar? Os monopólios são percursos que levam a destinos fatais.

23.12.09

O que faz sentido (prontuário surrealista)


"Isso explica aquele curioso caso, tantas vezes ocorrido na história, de um homem que julgamos ninguém, apagado e nulo, nos surgir de repente mestre de uma geração ou senhor de um país." Fernando Pessoa, Quaresma, Decifrador

Na interminável procissão da indigência mental, o homem insiste na sua soberba irritante. Perante a complacência do séquito que se arrasta atrás de si, inebriado com a prosápia de um parlapatão que parece hipnotizar os crentes. As palavras saem todas ao contrário, ou como se fossem tiros que erram sempre no alvo. E aquela sobranceria que vem, a espaços, entrecortada por cínicos sorrisos triunfantes – como se a nota de humor rasteiro fosse a sentença que determina a derrota dos opositores –, resgata toda a pureza da sua indigência mental.

Dir-se-ia: nunca um sistema que escolhe os mandantes através do sufrágio dos representados foi tão lídima expressão de uma gente. Nunca tanta mediocridade junta representou o espelho de uma gente. Mandam as convenções, e o fair play democrático, que se aceitem os resultados sufragados. Que se aprenda a conviver com os mandantes assim escolhidos. Mas lá dizia o homem, a meio da dialéctica com os opositores que insistem em morder nas suas canelas, "ninguém está acima da crítica". Precisamente. Ninguém, a começar por ele. E como ele se põe a jeito da crítica!

Esta é a terra onde despontou timoneiro de tão fraca têmpera. Escorregando para o já habitual pessimismo (que, sei-o, não é alimento para ninguém), quase diria que só nesta terra tal possibilidade teria valimento. Como há pouco avisara, em favor desta terra a seguinte conclusão: a tradução da possibilidade é um espelho da gente comum. Haverá maneira mais nítida de retratar a democracia quando os escóis cedem lugar a um representante da mediocridade dominante? O que faz sentido não é estender a rubra passadeira à elite que se empoleira no púlpito, ostentando um estatuto quase divino, lá em cima, no altar inacessível ao comum dos mortais. Depois queixávamo-nos da fractura entre os mandantes e os representados.

Talvez ao contrário do que se sugere, estes não são tempos de protuberância surrealista. Lá está: quando a indigência mental que tomou conta do leme é a imagem fiel da indigência mental que por aí abunda, quem pode anuir no quadro surrealista que os detractores sugerem? Tudo isto faz sentido. Porventura, um terrível sentido, não fosse dar-se o caso de as grandes decisões pertencerem aos decisores europeus. Sem o sabermos, continuamos entretidos a dar protagonismo a actores secundários. A gente que, fossem os parâmetros outros que não os da mediocridade, nunca passaria de um figurante anónimo. Talvez esta seja a marca de água do surrealismo circundante: o povo que, ao contrário dos mandantes, é impossível de mudar.

Soará a sobranceria um juízo tão implacável. Admito que há uma certa altivez na pose de distanciamento, da superioridade intelectual que se reivindica e que não condiz com um estatuto de humildade, quando se cola o homem à interminável procissão de indigência mental. E quando se comete a ousadia de acusar a gente comum de ser serventuária da sufocante mediocridade. Registo uma diferença, contudo: é que eu admito mesmo, sem pestanejar nem reagir com a habitual arrogância do timoneiro, que ninguém está acima da crítica. Posso admitir que o mal seja meu, que a miopia de análise me impeça de ver as coisas como elas são. Até prova em contrário, e até que me convençam que padeço mesmo de miopia, compreendo o estado em que as coisas estão. É tudo isto que faz sentido, mesmo quando a majestade intelectual – ó tamanha sobranceria! – se afadiga em explicar que é tudo ao contrário, que nada disso faz sentido.

Tudo soçobra na sua (só aparente) simplicidade. No fundo, o surrealismo habita em mim.

22.12.09

Meticulosamente


Disciplina mental. Julga, uma mordaça necessária. Olha em redor e distingue-se a rebaldaria mental, um leito de desorganização, um vírus caótico. Amedronta-se diante de qualquer ressonância de caos. Não consegue caminhar entre a desarrumação de tudo. Por isso impõe a si mesmo as algemas da disciplina mental. Férrea disciplina mental. Um jugo irrecusável.

Por onde pisa, sempre vestígios da meticulosa forma de ser. Tudo pensado, como se fosse um arquitecto que não deixa o mínimo traço ao acaso. Não há nada que não seja planeado. As coisas movem-se dentro de um espartilho nascido no afã da meticulosa organização mental. Não deixa de ser um espartilho, pois liquida a espontaneidade, absorve a capacidade de reagir aos imponderáveis que assaltam a forma ordenada dos planos incapazes de lidar com imprevistos. Nem assim se demove. Joga com a lei das probabilidades, com a escassa probabilidade dos imprevistos, para teimar planos milimétricos. Dos planos que não se podem afastar um milímetro que seja das coordenadas fixadas, ou o caos irrompe com o seu macilento, doentio rosto.

Convive mal com a antítese da sua meticulosa peregrinação quotidiana. Incapaz de se dar com gente desorganizada. A falta de sintonia com quem leva vida errante fermenta alguma intolerância. Ou tudo se compõe conforme os seus esboços, ou o caos que se instala causa o desconforto de quem se sente desnorteado, como se tivesse perdido o mapa no meio de um lugar ermo e desconhecido, ou como se em noite de nevoeiro fechado ficasse desprovido de candeia.

Não importam os reptos que desafiem a monotonia. É cultor de todas as rotinas. São o seu oxigénio. A organização mental de que depende é uma rotina instalada. Tudo se passa como se houvesse caminhos mentais que devem ser percorridos todos os dias, numa sucessão organizada de passos que se repetem uns atrás dos outros. Na prisão de uma lógica que se emparelha nos meandros da mente. Se alguém propõe romper a rotina dos dias instalados, num convite à excepcionalidade do espartilho da tremenda organização interior, a espontaneidade tem por uma vez lugar. É essa espontaneidade que devolve resposta negativa ao aceno, não vá a meticulosidade implodir. E o que se seria de si, das suas pessoais exigências, se o endeusado altar da coerência abrisse uma brecha?

Meticulosamente, apanhado todavia numa prisão de si. Ela também meticulosa. Duplamente cárcere. Pela intolerância que desenvolve aos que vagueiam na desorganização mental, entregues ao laxismo, os baldas que não suporta. E cárcere pelas masmorras que cultiva dentro de si. Pelo que nega em si, só para honrar um inane compromisso fixado com a coerência que se impõe, meticulosa e asfixiante, totalitária, algoz da sua própria liberdade.

Pode haver quem faça o diagnóstico da doença. Ou haver quem se limite a respeitar a dependência da ditatorial coerência. Assim como assim, é de dentro de cada um que irrompe uma certa meticulosa forma de ser. Ainda que essa meticulosidade opte por uma militante desorganização mental. Incompreendida pelos cultores da exigência interior, que são incapazes de tolerar a indisciplina mental dos outros. Tudo se resume a saber se somos capazes de aceitar os outros como são. A maior tolerância é que mostramos quando não queremos mudar o que os outros são. De resto, há-de sobrar um vestígio, um vestígio que seja, para tornar compatíveis existências que o não parecem. Esse é o maior desafio: o da dança compassada entre corpos que se movem em direcções diferentes, com ritmos diferentes.

21.12.09

Alecrim e manjerona


Já cansam. Os arrufos entre suas excelências, o senhor presidente da república e o senhor primeiro-ministro. A comunicação social, como de costume sequiosa de episódios sanguíneos, puxa lustro aos galões da linguagem muito formal e chama-lhe "conflito institucional". Eu, mais terra a terra, prefiro retirar o arsenal cosmético da linguagem e chamar-lhe desvergonha.

Ontem, o gabinete do primeiro-ministro mandou o recado através da comunicação social, dando conta da irritação com a presidência da república. Consta que o presidente da república ficou aborrecido porque o primeiro-ministro faltou ao encontro semanal para estar presente nas jornadas parlamentares da seita socialista. Quem o manda ficar aborrecido? Se ficou abespinhado, que guarde para si o abespinhamento, só para não incomodar os intocáveis socialistas. Pelo caminho, Sérgio Sousa Pinto, aquela inefável personagem que foi líder da juventude socialista (o que assegura pergaminhos pouco recomendáveis), puxou as orelhas ao senhor presidente da república porque este teve o "desplante" de opinar que as suas prioridades do momento não são a legalização do casamento dos homossexuais. Vejam lá o topete do senhor presidente da república, que devia era estar bem caladinho. Ficamos sem saber o que a seita socialista pretende do senhor presidente da república: ora pedem para ele falar, para pôr a oposição em sentido, calando-a no parlamento; ora exigem que se cale. Se dúvidas houvesse da desorientação da seita socialista, ainda não habituada à ideia de que já não tem maioria absoluta, ficavam desfeitas. Habituem-se à ideia.

Esta gente não parece merecedora dos cargos que ocupa. Por isso, só faz sentido retirar o "senhor" que antecede as sinecuras respectivas. Não sei se será por sermos geneticamente atreitos ao circo – um povo com pão e circo que se basta a si mesmo –, temos um presidente da república desastrado que vai caindo nas ciladas do desnorteado primeiro-ministro. O exemplo de ontem: em vez de deixar o primeiro-ministro a falar sozinho nas suas lamentáveis queixinhas, divulgou um comunicado que respondia ao comunicado do outro gajo. Merecem-se um ao outro. E talvez se possa concluir que, por eles, somos nós, que em maioria os escolhemos, que nos merecemos mergulhados na nossa mediocridade.

Diante disto, renovo as juras interiores para me alhear das notícias. Só apetece um exílio sem de cá sair, o exílio que se descobre pelas portas e janelas que se encerram à comunicação social tão entusiasmada com estes abstrusos episódios de ciumeira entre iguais. É que estes arrufos são típicos de duas personalidades miméticas. Confirma-se, ainda, que a política se abastardou de vez. Não são os politólogos que têm protagonismo. Cederam perante os supostos gurus da comunicação, que alinhavam as tácticas ao sabor do momento. Pois é disso que se trata: um amontoado de tácticas esparsas, que não se podem confundir com uma estratégia com fio condutor ao longo do tempo. Esses gurus da comunicação e do marketing, que tentam embelezar a figura do primeiro-ministro, compõem o clima de guerrilha que, julgam, serve os propósitos do grande, querido líder que anda deprimido por já não poder governar sozinho, como quer, como gosta, na linha do "quero, posso e mando". O outro, desastrado, cai na esparrela e ensaboa-se na mesma lama de onde emerge o primeiro-ministro. Ao menos tivemos ensejo de ver o líder dos comunistas a defender um presidente da república "de direita", o que é tão raro como nevar na minha cidade.

A guerra de alecrim e manjerona devia terminar com um acesso de lucidez das duas personagens. Então lúcidos, combinariam apresentar a demissão. À cautela, o presidente da república só apresentava a demissão horas depois do primeiro-ministro o ter feito. É que este gajo não é de confiar.

18.12.09

Pruridos de linguagem (ou a obscenidade do palavrão)



Punhos de renda. À mesa, onde se sentam as pessoas muito bem comportadas. Não dizem palavrões. Para as donzelas ingénuas não ruborizarem. E para não incomodar os rapazes de província que raras vezes saem da sua torre de marfim. Nem os mais velhinhos, que não podem escutar palavras feias, palavras malditas que estão escondidas no armário para arremessar a familiares no segredo do lar, ou para serem ditas na tasca enquanto sorvem uns copos de três de verde tinto e jogam à sueca.

É disto que eu mais adoro: hipocrisia. Ai de quem solte indecências em público, que as orelhas dos ouvintes podem ficar derretidas pela inconveniência. Podemos proferir essas palavras sem freio na intimidade da família ou na convivência com os amigos. A linguagem escorreita, muito asséptica, não se compadece com palavras indecorosas. E agora que a utilização destas palavras já subiu à estratosfera, eduquem-se os mais novos censurando obscenidades ditas pelas bocas destravadas de artistas rebeldes. Faz todo o sentido: como sabemos, os adolescentes deixarão de entoar constantemente "fuck", "mother fucker", "shit" e quejandos se deixarem de as ouvir na televisão. Há quem acredite no pai natal, ou que os bebés são trazidos por cegonhas que descolam de Paris.

A BBC, ainda muito vitoriana nos costumes, põe a mordaça nos artistas que escorregam para o chinelo. Quem põe a mordaça, lá nos estúdios – podemos apostar com a convicção de não perdermos o dinheiro – nunca, nunca na vida, disse "fuck". Ponto da situação: eles podem soletrar a palavra até à exaustão porque o fazem em privado; quem ouse pronunciar a palavra obscena em público arrisca-se a ter um açaime sob a forma de indiscreto silenciamento.

Os idosos (não se pode dizer velhinhos para Helena Matos não acusar de discriminação social) têm o direito de se manifestar ruidosamente contra as sucessivas grosserias de linguagem que emprenhavam os ouvidos naquela peça de teatro? Os velhinhos (perdão, os idosos) são incapazes de escorregar para a obscenidade semântica, como sabemos. Santa boca, imaculadamente virgem de palavrões tão feios. Ah, já entendi, no teatro – como em muitas ocasiões ditas solenes, onde a responsabilidade deve imperar – não se dizem palavrões. Ninguém obriga os idosos de curtas vistas culturais a saberem que há páginas e páginas de literatura, de poesia, carregadas de linguagem indecente, sem que deixem de ser arte.

Helena Matos pôs os óculos errados ao sugerir que os velhinhos se limitaram a ser partes intervenientes (através da pateada) na peça de teatro. O mal não é o da "intervenção indevida" do público amotinado. O mal é de alguém que não tem sensibilidade para entender que as artes têm diferentes manifestações (incluindo o calão na linguagem), ou de alguém que ficou com a sensibilidade ferida (hipocritamente ferida) e se esqueceu de ser educado. Helena Matos está enganada: malcriados não são os actores que ilustraram a peça com profusão de palavreado indecente; malcriado foi o público idoso ali levado pelo INATEL que, talvez por ser tão boçal, tão cavalar, pateou a peça. A mim ensinaram-me que quando não gosto do que vejo, dou corda às pernas em direcção da porta da saída. Em silêncio.

Quando a Helena Matos assobia o seu vetusto conservadorismo, que às vezes a leva a olhar as coisas com a miopia própria das conveniências, sinto uma pulsão para abjurar as muitas costelas de direita. E para me convencer que esta direita tacanha, conservadora, é o melhor elixir para a existência das esquerdas. De resto, só me apetece dizer isto: que se fodam todos os moralistas da linguagem muito decente.

17.12.09

Burgueses, somos


Sedução pelo bem-estar, apenas, uma atracção pelos bens materiais que é impossível de rebater? Ah, nem os ideais, os febris ideais da juventude, sobram de pé. Rendidos diante das maravilhas do materialismo. Seguidores do consumismo outrora diabolizado. Tinham razão: o vil metal é mesmo aviltante. Sabem-no por experiência própria estes revolucionários de tempos idos.

A burguesia é uma condição inata aos que conseguiram singrar e hoje têm proventos razoáveis. E é a aspiração dos mais jovens, ainda nos primeiros passos profissionais, ainda muito trémulos, sem saberem se o futuro lhes vai sorrir. Por enquanto, ainda bisonhos, tecem-se nos sonhos em que desfilam muitas aspirações de ordem material. Porventura, este é um retrato em que todos nos revemos – ora no presente em que nos debatemos, ora no passado de que fomos testemunhas vivas.

Por exemplo: por que teimo em tentar a sorte no jogo da Santa Casa da Misericórdia que promete a miragem de uns fartos milhões de euros no primeiro prémio quando se acumulam jokers de semana para semana? A resposta só pode ser uma: há sonhos por cumprir. Inevitavelmente, sonhos materiais. Não vou ao ponto de acreditar em líricos retratos tangentes à historieta de "um amor e uma cabana", ou de escorregar para uma ingenuidade que não é deste tempo se aderisse a uma monástica forma de vida desprendida das virtudes dos bens materiais. Contudo, teimar na mirífica sorte ao jogo (nos míseros euros semanais que salpicam de distante esperança a tentativa de marcar encontro com a sorte), não é a confissão da entrega a uma burguesa forma de vida?

Não sei: é como se estivesse diante de uma daquelas encruzilhadas sem sinais que identificam os destinos a que levam as várias estradas que dali saem para lugares diferentes. É tão fácil ser espectador da futilidade aburguesada que se nota nos sinais que exteriorizam uma certa forma de viver dos outros. Se ao menos fosse possível sairmos de nós e sermos espectadores exteriores de nós mesmos, talvez torcêssemos menos o nariz aos tiques aburguesados dos outros que em nós semeiam alguma repugnância. No fim de contas, esbarramos no mesmo dilema: as teorias que se edificam, muito belas e muito bem conseguidas, desmoronam-se quando as pomos em prática só nos outros. A incapacidade para em nós reproduzir as teorias é a dolorosa sentença de incoerência que as desfaz em nada. Reserva-se-lhes o único lugar merecedor: não teoria, mas um espartilho que, estávamos convencidos, era uma teoria tão à prova de bala.

E, contudo, as contradições não deixam de esbarrar com estrépito, como se fossem nuvens de cargas eléctricas opostas que, em rota de colisão, produzem feérica trovoada. Há trejeitos burgueses que soam nauseabundos. Talvez sem dar conta – porque o espelho de nós mesmos não é perene – também deslizo para os mesmos trejeitos que nos outros causam náuseas. É esta burguesia esquizofrénica, um doentio aburguesar, que atormenta. Pelo mar encapelado de contradições internas que desfazem em nada as teorizações que julgávamos elaboradas. E porque parece que vivemos aprisionados num mundo de dicotomias, como se houvesse apenas preto e branco, isto e o seu contrário, as janelas todas encerradas a formas diferentes de encarar as coisas. Se tudo for assim tão bipolar, como se não houvesse um largo terreiro a separar as duas extremidades – e talvez seja esse largo terreiro um infindável mar de oportunidades por descobrir – o que é o contrário da viciosa burguesia? Sermos burgueses é a prisão pessoal onde se encerra a nossa futilidade. Mas, e depois, estamos preparados para não sair de um convento e dos sacrifícios auto-impostos? Estamos preparados para uma existência toda espiritual e desligada dos vícios materiais?

Parece que a imperturbável insatisfação de tudo é a água fervente que escalda a carne que somos. Nunca estamos contentes com o que temos?

16.12.09

As Valquírias



(Contém alguma linguagem "inapropriada")

Há-as de duas categorias. As solteironas inadiáveis. E as divorciadas em lamentável carpideira pública da desgraça que as abraçou. Pulam, em saltinhos histéricos, cheias de energia. As primeiras, como se vagueassem numa eterna juventude que promete o até agora inalcançável. As segundas, farejando qualquer possibilidade de retomarem o que deixaram de ter porque os antigos consortes decidiram debicar noutro galinheiro.

Não param quietas. Desmultiplicam-se em actividades, o sono adiado para os dias em que, por fim, o sossego de espírito e a acalmia dos prazeres tiverem ancoradouro (se esse dia não for uma miragem). Aquilo é um covil onde as hormonas ardem, numa incandescência que se nota à vista desarmada. Quando era mais jovem (mais jovem do que o sou hoje, bem entendido) e tinha paciência para ocasionalmente meter um pé na vida nocturna, havia um sítio da preferência dos meus amigos onde todas as valquírias marcavam encontro: o "Buffalo's", em Matosinhos.

Era impossível estar sossegado. Ir sozinho ao bar era uma aventura. Enquanto esperava pela bebida, não demorava um minuto, um minuto sequer, e aparecia uma trintona ou umas quarenta invariavelmente voluptuosas – e, por vezes, até acontecia aparecer uma de cada lado. À espera que metesse conversa, que elas podem estar esfaimadas mas nisto mantêm-se arreigadas aos costumes de antanho: são os varões que metem conversa. Na esperança, sobretudo delas, que mais tarde se meta outra coisa. Não sei se seria do meu bom aspecto (momento José Mourinho), mas estar momentaneamente desacompanhado na ida ao bar garantia célere companhia de uma qualquer valquíria sequiosa dos meus potencialmente excelentes serviços. Apercebi-me então do efeito revertido do que sentem as donzelas quando são comidas com os olhos pela homenzarrada por que passam: carne para canhão. E se muitas eram autênticos canhões!

As incursões junto do bar eram um exercício curioso, a tal ponto que comecei a fazer apostas com os amigos que me acompanhavam. À custa destas apostas ganhei algumas bebidas de graça (e mais não posso dizer). E eu, que não sou paneleiro – bem pelo contrário – era assaltado por sensações paradoxais. Se aquilo fazia bem ao ego, por outro lado notava a intimidação pelo assédio sempre silencioso das valquírias que se acercavam. Foi então que descobri, tardiamente, uma ingenuidade que não é destes tempos.

Deixei de ser visita da vida nocturna. Perdi o rasto à militância das valquírias com hormonas aos saltos (para não dizer outra coisa). Às vezes, dou de caras com tias prometidas ao celibato e outras que, carpindo mágoas de divórcios mal digeridos, acreditam que o tempo recuou e que retomaram uma pós-adolescência perdida nas ilusões do matrimónio com o que julgavam ser o seu príncipe perfeito (entretanto alcandorado ao estatuto de fariseu da pior espécie). As circunstâncias influenciam os momentos: já não as vejo trajando vestidos justos, na ostensiva saliência das carnes pouco cuidadas, daqueles vestidos que oferecem regaço a amplos decotes que sugeriam à masculina caça onde podiam mergulhar a sua libido. À luz do dia, paramentos mais discretos. Mas cheira, na mesma e à distância, a hormonas aos saltos. Irrequietas, parecem pular em cima de uma inesgotável bola de energia. A espécie mais notória é a das valquírias extrovertidas, as que multiplicam amizades no exacto minuto em que conhecem um estranho por quem imediatamente se encantam. Vão daqui para ali, sempre desejosas de conhecer mais e mais gente. A lei das probabilidades estatísticas explica o aumento das possibilidades de sucesso quando se amplia a amostra (de conhecimentos).

Todavia, esta lei matemática defronta-se com um obstáculo, dir-se-ia, um insondável imponderável: quanto mais perseveram, e quanto mais as hormonas aquecem junto ao ponto de fervura, menos lhes acontece aquilo que tanto desejam. É como se funcionasse uma lei repulsiva: de tanto ostentarem a lascívia impraticável, mais afastam os potenciais caçados. Um azar tremendo. Que deixa as desgraçadas das hormonas a pular, e muito, mas entregues à sua solidão.

15.12.09

Berlusconi apanha nas trombas e nós aplaudimos?



Isto foi escrito. Encimando as imagens de Berlusconi ensanguentado depois de ter sido covardemente agredido por um tresloucado qualquer. Só estava escrito isto: "o que a democracia não resolve o povo tem de resolver". Poucas palavras. Só um título e, todavia, um título que fala mais alto do que mil palavras. Todo um pensamento ali encerrado, todo um comportamento.

Berlusconi é um equívoco? De acordo. Berlusconi nunca devia ter sido primeiro-ministro? Não me pronuncio; não voto em Itália. Prefiro respeitar as preferências dos eleitores italianos, ou arrisco-me a que os cidadãos de outros países façam análises pouco simpáticas sobre as opções da maioria do eleitorado lusitano. Continuo a acreditar naquela máxima que ensina que em casa alheia é melhor não mexer palha, nem sequer opinar acerca das opções de decoração.

Considero Berlusconi uma besta (como educadamente muitas esquerdas enfatizam). Mesmo sendo de direita – mas de uma direita que não se revê naquela direita pirosa, arcaica, que cultiva uma personalidade daquele calibre, aquela personagem verbalmente incontinente que tenta fintar a andropausa ostentando feitos carnais com voluptuosas mulheres e cândidas adolescentes. É daquelas personagens que envergonham "a direita" (mesmo que "a direita", assim, unidimensional, não exista). A semântica dá uma ajuda aos esquerdistas que andam de cabelos em pé porque a Itália, vá-se lá saber porquê, teima em escolher esta aberração para primeiro-ministro: o seu nome tem fonética semelhante a "burlesco".

Vou regressar às interrogações: se me tivesse calhado em sorte ter nascido italiano, depositava o voto em semelhante aberração? Jamais. Mas, por mais que lhes custe a admitir, ao menos leiam isto: Berlusconi é uma criatura criada pelas esquerdas italianas. Pela sua inesgotável capacidade autofágica. Elas que não chorem lágrimas de crocodilo. Muitos votam Berlusconi porque se assustam com a ineptidão do mosaico das esquerdas; nem sequer para se entenderem servem. Tenho a impressão que em mais nenhum lado como em Itália funciona o voto com os pés. E não é para enxotar Berlusconi, a cavalgadura, do poder.

Sobra a possibilidade do povo italiano ser burro. É uma hipótese em que muitos esquerdistas gostam de assentar as suas prestigiadas análises. Em sonhos, imaginam a repetição de eleições quando a maioria do povo (portanto, a parte ignara dele) não vota "como deve ser", já que mudar o povo é uma tarefa mais difícil. Se não vai através do voto, soube-o ontem ao ler aquela preciosidade de um tal Ricardo Teixeira, vai pelos punhos não rendados do "povo".

Primeira perplexidade: e por acaso aquele senhor, o senhor agressor, representa "o povo"? Esta é outra adorável faceta destas esquerdas que professam toda a sua intolerância (apesar de se verem como as campeãs da democracia – talvez daquela democracia em que o número de partidos admitidos a concurso eleitoral é ímpar e inferior a três…): esgotados os argumentos da lógica eleitoral, ora se inventam pretextos, ora se convoca a sublevação popular através da barbárie. No primeiro caso, inventando teorias conspirativas que insultam a inteligência dos italianos, pois eles são controlados através do império de comunicação social detido por Berlusconi.

O segundo caso traz-me à segunda perplexidade: as portas escancaradas à barbárie, a um crime que o seria se a vítima fosse uma pessoa comum e que, na cabeça iluminada do tal Renato Teixeira, deixa de o ser crime só porque o figurão estava mesmo a pedi-las. O que deixa o Sr. Teixeira sossegado é que vive numa terra e num sistema político que deixa os Srs. Teixeiras deste jaez vomitarem todas alarvidades mentais sem temerem pela segurança física. Que às vezes apetece dar a esta gente a provar do mesmo veneno, ah lá isso apetece.

(E nisto lembrei-me de um aluno já sexagenário, camarada dos sete costados, que lamentando a queda do muro de Berlim e a derrocada do comunismo, perguntava em público se tanto tinha valido a pena "apenas" – a ênfase é minha – pelas liberdades pessoais que foram conquistadas.)

14.12.09

Somos parte interessada no adultério dos outros?



Muita gente escandalizada porque o golfista mais famoso do mundo tinha (ou tem – e o que é que isso interessa?) um harém. Até ouvi um senhor, por sinal com ar pouco recomendável, sentenciar que as imensas actividades lascivas do campeão são inadmissíveis porque ele é um homem de família, casado e com filhos.

Diria que os Estados Unidos têm uma tendência inata para o moralismo. E que o moralismo tem as suas próprias mordaças e alçapões muito perigosos. Todavia, os palpites sobre as questiúnculas conjugais de Tiger Woods preenchem páginas de jornais pelo mundo fora; o mal é global, já que a globalização está tão na moda. Vi ontem uma reportagem que dava conta da proliferação de talk shows e programas onde são chamados prestigiados opinadores para se pronunciarem sobre as perdições hormonais do golfista. Do que fui lendo e ouvindo, o tom geral é de reprovação do adultério sistemático cometido por Woods. Há muita gente de dedo em riste apontado à sua cara, como se este clamor popular fosse uma reprimenda colectiva. Logo Tiger Woods, em exemplo, a deixar-se perder por uns rabos de saia.

Talvez se diga que as figuras públicas, por o serem, têm a vida privada exposta ao escrutínio dos outros. Àqueles que escorregarem para esta condescendência aterradora, só isto: uma vida privada é uma vida privada, seja de uma "estrela" ou de um anónimo; e convinha aprenderem o significado do verbo "devassar". Se tanto se apregoa que "entre marido e mulher não se mete a colher" (imagino que lá nos States deve haver uma variante do adágio), deixamos de ser coerentes com o ditado se formos rudes em relação às facadinhas no matrimónio cometidas por alguém, só porque esse alguém é uma figura pública e – este é o pior dos pecados de Tiger Woods – é um modelo de virtudes. Ora, ao molhar sistematicamente o pincel em mulheres diferentes da consorte, o tigre terá defraudado a confiança que as gentes nele depositavam. Um modelo deve sempre dar o exemplo. Um "modelo social" que escapa frequentemente para as camas das amantes não está a dar um exemplo de decência. A solução é óbvia: crucifique-se em público o já não "modelo social".

É curioso: acabo por escrever sobre o adultério do campeão de golfe, afinal fazendo o contrário do que apregoo. Em meu favor, alguma condescendência, porém. O que seria um "não assunto" tornou-se numa procissão em que muitas virgens pudicas aproveitam para exibir um moralismo enfadonho. Só se tornou assunto por causa das intromissões na esfera privada de Tiger Woods. O que me traz à segunda incoerência: eu, que me recuso a aceitar qualquer moralismo quando se impõe de fora para dentro, acabo por me enredar num contra-moralismo que me interrogo se não é também um moralismo.

Enterneço-me a ver o cortejo de sumidades do moralismo alheio. Tão seguras das suas sentenças. É nestas alturas que me apetecia ser uma formiga e ter um mágico dom da ubiquidade. Só para saber se estes juízes do adultério alheio nunca deram a sua pessoal facadinha no matrimónio. Ou se não se trata de gente assoberbada com a possibilidade de sentir crescer na testa uma vistosa cornadura. Ah, como é encantador ser-se penhor da moral dos outros, sobretudo quando a deles e delas possa ser um antro pouco recomendável para servir como paradigma do que quer que seja. Não que eu tenha algo a ver com isso; só me incomoda que a avaliação dos outros (o que nem devia acontecer) seja feita por padrões muito mais exigentes do que a avaliação que os sacerdotes da moralidade fazem de si próprios.

Se não é a "censura social" (outra doença contemporânea) que se abate sobre Tiger Woods, é o escárnio. Folhear páginas dos jornais e ler insinuações de que Woods tem testosterona a mais sugere-me uma de duas possibilidades: ou se trata do mesmo moralismo numa versão encapotada, ou da mais pura das invejas.

11.12.09

É preciso decoro no parlamento?


Abriu telejornais: dois deputados tiveram uma pega verbal. Terra de brandos costumes, estamos mal habituados quando a confrontação verbal atinge tamanha intensidade que os mais puritanos asseguram ter "passado dos limites". Desta vez a pega verbal meteu insultos. E se nem sequer chegou a haver baderna de tasca, pois os vitupérios que a senhora deputada do PSD dirigiu ao senhor deputado do PS, mais a defesa de honra deste, não entraram pelo enxovalho do calão que faria os puritanos corarem de vergonha, o episódio serviu para abrir telejornais.

Eu continuo a teimar que os brandos costumes não são virtude: é o dos maiores defeitos em que maceramos. Porque, em tudo, nos ficamos pela metade. Entramos cheios de entusiasmo, mas a meio metemos marcha atrás e o entusiasmo no esquecimento. Somos falinhas mansas e os malditos consensos que distribuem vitórias por todos os que entram numa contenda, evitando que as posições se demarquem. O zénite desta covarde maneira de ser é a insistência de que não se deve usar certo tipo de linguagem em determinados locais por respeito "institucional".

O parlamento é um bom exemplo. É a casa da democracia. A linguagem rasteira, mais própria das tascas e das varinas, deve ser combatida. É como no tempo em que havia a mania do cavalheirismo: podiam as más palavras ecoar em pensamentos, mas imperativos de decoro evitavam que elas se soltassem da língua. A língua não era aferroada para não enlamear o nome prestigiado do parlamento. Os tempos mudam. Com a mudança da agulha do tempo, reinventam-se comportamentos. Querem-nos fazer crer que uma troca de insultos entre dois deputados avilta o parlamento e faz corar de vergonha a nação inteira. Eu prefiro dois deputados que libertem a língua e digam o que vai na alma. Prefiro a frontalidade à fina capa de verniz da decência institucional que asfixia um vendaval de maus pensamentos sobre o deputado adversário.

Chego a esta conclusão através de um método que parece esquecido: a analogia. Emprenham-nos os ouvidos com a semântica parlamentar. No parlamento estão os nossos representantes. Devem estar à altura de um órgão de soberania, que ainda por cima é um esteio (e o principal) da sacrossanta democracia. Os puristas esclarecem que os deputados devem dar o exemplo aos que representam. Os representados devem encontrar nos deputados um espelho de boas condutas, recato oratório e respeito pelos adversários. Sem nunca, mas mesmo nunca, escorregarem para o chinelo e dispararem insultos para um deputado que esteja noutro quadrante.

Reverto o método da analogia para contestar o que está convencionado pelos puristas. Pois se os deputados representam o "povo", e se o povo se farta de distribuir insultos e impropérios por conhecidos e desconhecidos, os deputados devem ser uma imagem do "povo" que os colocou na sinecura parlamentar. Defender o contrário e esconder o rosto detrás do incómodo das duras palavras trocadas entre a deputada do PSD que, vinda da "linha de Cascais" (nas palavras do "ofendido"), não resistiu a chamar palhaço ao deputado socialista que a incomodava (o deputado "rural", nas palavras do próprio), é só fazer de conta que o parlamento é um lugar de miragens. O parlamento deve ser um laboratório vivo da sociedade que representa. Exigir que os deputados sejam gente afastada das palavras grosseiras e dos insultos a adversários é desumanizar suas excelências – ou ingloriamente deificá-las em barro. É exigir de mais. Torna o parlamento num equívoco cheio de artificialidades.

O parlamento era mais vivo e humano se os deputados pudessem chamar filhos da puta uns aos outros. Com decência. Diria, sem elevar a voz, "se me permite, vossa excelência é um notável filho da puta". E o outro, em defesa da honra, puxava do microfone e suavemente disparava, sem perder o sorriso discreto, "com a anuência do senhor presidente da Assembleia, puta é quem assim trata a santa da minha mãezinha".

Lamentável é noticiar-se o episódio como coisa pouco edificante. Pelos vistos, é preferível escondermo-nos detrás das máscaras e insistir em fazer de conta. Muito, fazer muito de conta.

9.12.09

Há diferenças entre os meninos guerreiros em África e jovens de doze anos metidos nos tumultos em Atenas?



Há tempos vi um filme sobre diamantes de sangue em África. Mostrava – não sei se romanceando os factos – como crianças nos alvores da adolescência são retiradas às famílias por sanguinários guerrilheiros que controlam a extracção e o tráfico de diamantes. As crianças eram subtraídas às famílias para receberem treino militar. O enredo sugeria que eram expostas a formatação mental sob o efeito de psicotrópicos e alucinogénios. Quando estavam preparadas para o combate, punham-lhes nas mãos metralhadoras que disparavam mecanicamente. Estavam, enfim, educadas para matar.

Os diamantes de sangue são assim chamados, entre outras razões, por causa da indignidade que é liquidar a infância e a adolescência de miúdos que, a certa altura, só sabem conjugar o verbo matar, talvez até morrerem precocemente. São a carne para canhão atirada para suicidárias missões de combate. Se morrerem, ninguém dá pela sua falta. As famílias, que perderam o rasto e já só tinham a desesperança da as encontrar, não são convocadas para os funerais. O ocidente, tão zeloso da sua superioridade civilizacional, condena os diamantes de sangue e indispõe-se (acertadamente) contra a privação da adolescência destes guerreiros à força.

De ontem: imagens de tumultos em Atenas. Os jovens (e menos jovens) anarquistas decidiram espalhar o caos por ocasião do aniversário dos motins do ano passado. Podemos celebrar tudo e mais alguma coisa. Se a malta quer festejar os desacatos do ano passado com mais desordem, faça-se-lhes a vontade. Desde que estejam a par do risco de apanharem umas bordoadas da polícia, desde que estejam cientes que podem dar com os ossos numa esquadra e enfrentar o mau humor de uns agentes policiais, seja-lhes garantido o direito ao tumulto. Quando vejo desordem gratuita – o caos pelo caos –, com desprezo pela segurança dos outros e pela propriedade alheia, é o único caso em que tolero violência policial. Digo-o a contragosto, anarquista dos sete costados, mas de linhagem diferente.

Estava embevecido com o código de conduta ateniense que impede a polícia de entrar nas instalações de universidades para perseguir os anarquistas desordeiros. Só com autorização dos reitores podem os polícias pisar terreno que assim é sagrado para quem espalha a confusão. As universidades como se fossem embaixadas em cujo território existe imunidade e a polícia não pode entrar – uma espécie de ilha dentro do Estado de direito. Soube então que agora os anarquistas têm poderosos aliados: "jovens de doze e treze anos", parafraseando quem enviava informações desde Atenas.

Deve-se tratar de jovenzinhos que só são intelectualmente imberbes no bilhete de identidade. De resto, devem estar na posse de uma extemporânea (por antecipação) doutrinação política. Leram os livros todos de Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Enfim doutrinados, andam nas ruas à pedrada aos polícias, a estilhaçar montras de lojas, a infernizar quem quer sossego, a vandalizar automóveis, quem sabe se de gente que até tem simpatia pela sua causa. São os muito jovens guerreiros que engrossam a maré anarquista. Não andam de armas na mão, nem devem passar pelos horrores da doutrinação pela violência como sucede com os meninos guerrilheiros em África. Tirando estas diferenças, onde está a diferença entre os meninos guerrilheiros em África e os meninos desordeiros em Atenas? E o mesmo ocidente que condena os diamantes de sangue e se indispõe contra a privação da adolescência destes guerreiros à força, deita-se num revelador silêncio ao ver como jovenzinhos atenienses de tão tenra idade já são guerrilheiros urbanos. Dois pesos, duas medidas.

Diante deste anarquismo violento, um anarquista de outra linhagem sugere aos anarquistas de Atenas – e aos admiravelmente doutrinados "jovens de doze e treze anos" – que leiam Leon Tolstoi, um anarquista que ensina que o anarquismo não é violência.

8.12.09

Gutter Twins, "Idle Hands"



"Confrontacional"

(Um desnudamento da alma)

Um neologismo, com origem no étimo "confrontação", só para interrogar a necessidade de confrontar, por vezes provocar, reacções nos outros que podem ser reacções hostis. Será pelo desconforto da acomodação típica dos que pensam todos da mesma maneira. Ou uma erupção de mau feitio, o terrível espírito de contradição que não se consegue derrotar.

Não é forma simpática de ser. Grangeia antipatias, por vezes; outras vezes, anticorpos que demora a ultrapassar. Porque a confrontação é recebida como uma áspera manifestação de oposição. Manchada pelo tom agreste das palavras que provocam a reacção adversa, sentida, por vezes ofendida. O que leva a fermentar este desejo irreprimível de encostar às cordas os que são mais ou menos próximos, só para desafiar as suas ideias, ou através das ideias ou das palavras de pessoas com que se identificam indirectamente os desafiar?

Eu gosto de acreditar que a responsável pela desagradável forma de ser é uma tempestade intelectual que não há maneira de me largar. Gosto de acreditar que o desafio dos outros não é desconsideração pessoal. Como poderia honrar as pessoas que assim provoco ou confronto se elas me dizem desde algo a muito? Às vezes digo-lhes, em tom meio confessional, que sou como sou, irrecuperável nesta desagradável maneira de confrontar sobretudo quem me diz algo. Que interessa rebater quem me seja estranho se não há possibilidade de entrar em discussão? Digo-lhes, para apaziguar tensões, que não é por maldade; que adoro uma bela refrega de ideias, a troca fervilhante de palavras reproduzidas em argumentos.

Algumas vezes, o recurso à provocação esfarela a coerência que julgo dominar-me. É quando esmago nos outros palavras que são a negação do que já dissera ou defendera outrora. Ainda bem: a coerência é um garrote que liquida a espontaneidade, adultera a genuinidade do ser, o bom selvagem suprimido por temor às convenções. Esta coerência, sinto-a doentia. Um pesar que se aclimatou só para tornar tudo mais fácil nas dicotomias que desfazem os muitos nós da complexidade em redor. Pergunto-me se a inclinação para a confrontação não reveste a necessidade de expor as pessoais incoerências – que invulgar exibicionismo! Assim seria, contudo, se de todas as ocasiões em que as palavras provocatórias se soltam elas viessem embebidas em flagrantes contradições internas. E nem sempre assim é.

Há critério na selecção dos "alvos"? As munições soltam-se aleatórias, ou são dirigidas com precisão, as letras bem contadas quando se encavalitam nas palavras entoadas através de frases assassinas? Em retrospectiva, não distingo um critério que seja. A confrontação é errática, persegue o que momentaneamente povoa o espírito. Não costumam as provocações ser planeadas. São um típico produto de actos espontâneos. Tenho a impressão que são confrontações terapêuticas. Ao que mais não seja, desmoronam o denso manto racional que asfixia outros olhares, ou outras formas de olhar. Só fica por pedir desculpa aos que se sentiram atingidos. Por serem cobaias de um experimentalismo a que são alheios.

Não estou em acto de contrição. Nem que este desnudamento da alma seja um flanco aberto. A retórica e o retorcimento de argumentos (defeito de formação; da formação que renego) compõem o cenário quando ele escorrega para um lodaçal que me seja desaprazível. Ainda assim, indeclinável o desnudamento da alma. E um flanco aberto. Até à próxima, e porventura totalmente gratuita, confrontação.

7.12.09

“Islamofobia”?



Há dias, um referendo na Suíça ditou que não haverá mais minaretes. As ondas de choque vieram a seguir. Há vários países europeus onde estão instaladas comunidades islâmicas. O que se segue? Um efeito dominó, uma certa histeria anti-islâmica propagada pelo resultado do referendo na Suíça? Desabone-se a possibilidade, pelo menos se o instrumento para lá chegar for o mesmo que os suíços utilizaram. A Suíça é a campeã da democracia directa, não estando os referendos vulgarizados (para assuntos desta natureza) em mais nenhum país europeu.

Em todo o caso, a discussão está montada. Será sensato proibir este símbolo da religiosidade muçulmana? Honramos a tradição de liberdade quando lançamos este impedimento sobre os muçulmanos? A discussão é exacerbada por sentimentos que escorregam, com facilidade, para o radicalismo. Quer de quem se opõe à discriminação dos muçulmanos, quer dos que aplaudem com entusiasmo a medida aprovada no referendo suíço.

Quanto a estes, não compreendo a hostilidade contra a comunidade islâmica. Na maior parte dos casos, não há conhecimento de suspeitos de actividades terroristas nestas comunidades. Será preconceito puro? Ou receio de que o continuado crescimento da comunidade islâmica seja uma ameaça para a segurança da Europa? É que já escutei alguém insinuar que a silenciosa "invasão verde" (se pudermos tomar o verde como cor simbólica do islamismo) é uma espécie de cruzada árabe para conquistar a Europa. O alarmismo é a melhor manifestação da irracionalidade.

Do lado contrário também há excessos. Pela voz a quem sugere que os muçulmanos são vítimas de perseguições – directas ou através da desconfiança que os ostraciza – como o foram os judeus em meados do século XX. Essas vozes são as mesmas que alimentam especiosas teorias da conspiração em que, invariavelmente, os maus do costume (a "América" e os judeus) cozinham pratos envenenados para o bem comum. Usam um novo vocábulo para despertar consciências: "islamofobia".

Entristece-me ver gente respeitável a embarcar num soez sectarismo contra os muçulmanos. Não faz jus à sua inteligência (aos demais, aos apedeutas que são contra os árabes por puro preconceito, nem vale a pena contrariar). Primeiro, e acima de tudo, porque se consideram tutores das liberdades e, noutros quadrantes (que não o do espúrio confronto das religiões), pregam pela tolerância. Esquecem-se dela quando negam direitos de culto aos muçulmanos que para aqui vieram viver.

Segundo, o argumento mais indigno é o da intolerância dos muçulmanos. Começam por decair para uma generalização que é, como todas as generalizações, perigosa. Tudo piora quando se percebe onde querem chegar com este raciocínio: impõe-se a intolerância com os que são intolerantes connosco. É uma questão de sobrevivência. Para além do catastrofismo que fica por provar (é o mal de antecipar o futuro que ainda não aconteceu), enredam-se nos mesmos males de comportamento que dizem combater. Só se distinguem dos fundamentalistas muçulmanos por não aceitarem a violência estúpida como arma de arremesso. Mas a proibição de minaretes, ou qualquer outra manifestação de gratuita discriminação em razão do credo, não será uma forma de violência?

Daqui a assegurar que sitiámos os muçulmanos no espartilho da "islamofobia" parece-me exagerado. Trata-se de uma modalidade oposta de catastrofismo, outro decaimento numa generalização improvável (no sentido de não se poder provar). Se houvesse "islamofobia", já tínhamos proibido os muçulmanos de cá entrar. Tínhamos destruído mesquitas. Não lhes dávamos emprego. Proibimos os seus filhos de frequentar escolas. Admito intolerância da parte de pessoas que desconfiam dos muçulmanos. Mas pode-se converter essa intolerância em sentimento generalizado?

A complexidade do assunto aumenta quando medimos o pulso à seguinte interpretação de quem rejeita o que foi aprovado no referendo suíço: aconselham que não é sensato hostilizar os muçulmanos por acendermos o rastilho de um barril de pólvora. Essa condenação é, diria, oportunista e ensimesmada. Não parece preocupada com o que devia preocupar – o atentado aos valores que nos orgulhamos de ter, principalmente os valores da liberdade e da tolerância. Aquela condenação só parece preocupada com o nosso bem-estar. Dando a entender que atropelar o direito de culto dos muçulmanos é, em si, secundário.

A liberdade está penhorada pelas religiões.

4.12.09

Ele há coisas do diabo: o Machado fez uma lipoaspiração e caiu em coma



A ditadura da estética. Agiganta-se, de mão dada com a modernidade que avança com o tempo e a tecnologia que cavalga em cada manhã que desponta. Dir-se-ia que somos cada vez mais apenas o papel de embrulho que o nosso corpo é. Diríamos, se fôssemos todos de um lirismo desarmante, que só interessa cuidar do aspecto exterior. Por ser um espelho do que buscamos nos outros: a sua exterioridade, o fino verniz que esconde o resto, uma sombria devastação do nada que habita na imensa maioria de nós. Nesta altura, descerrava-se a lápide com o obituário das cirurgias estéticas. Por serem penhores da batota que transforma os corpos em santuários de artificialidade, talvez o retrato fiel de quem se mete nesses corpos transformados.

Não quero exibir, outra vez, o pretensiosismo de um direito à diferença, como se tivesse apenas um prazer contestatário e gratuito de dissidir. Nem quero as alcáçovas da sobranceria por mostrar que não pertenço à imensa maioria, nem me considero acantonado no rebanho dos líricos. Descontando: não consigo dar para o peditório muito moralista que se assanha contra a doença da modernidade que é colocar a afoita tecnologia ao serviço de corpos que se transformam pelos bisturis de especialistas (e charlatães, a acreditar na advertência da ordem dos médicos).

Fez-se notícia porque uma figura pública se deitou na marquesa para uma lipoaspiração e, uns dias mais tarde, uma infecção generalizada atirou-o para coma. Não se deseja o mal a ninguém – de dedo em riste, moralistas de serviço já adivinham o resto do raciocínio: eu só digo que incidentes pós-operatórios destes devem acontecer ocasionalmente com figuras públicas. O mercado fica mais transparente. Ficamos conscientes dos riscos, da probabilidade da sua ocorrência. Não vamos ao engano para a sala de operações. Nem ficamos admirados se houver complicações que nos atirem para um estado semi-vegetativo. Era o que se passava se estas coisas só acontecessem a pessoas anónimas. Os problemas e os riscos também não saíam do anonimato.

De regresso à recusa do moralismo que povoa a reprovação das cirurgias estéticas. Somos todos catedráticos quando mandamos palpites sobre a vida dos outros. Que elevada proficiência de análise quando peroramos sobre os tropeções dos outros. Que mania de julgar os outros pelo que fazem, ou dizem, ou são, sempre que tudo isso remete às muito individuais opções que só pertencem à esfera íntima de cada um. Eu fazia uma operação estética? Não. E não é por ser dispendioso e encontrar outras utilidades mais compensadoras para o meu dinheiro. É porque estou bem dentro do corpo que trago. Admito que haja gente, muita gente, que se sente terrivelmente desconfortável dentro dos seus corpos. E se são inventados medicamentos para mascarar sintomas sem curar doenças, é porque a tecnologia que cavalga nas manhãs que despontam também é serviçal do hedonismo dominante. Por maioria de razão, por que não podem as pessoas retocar o corpo se as plásticas caucionam as pazes com os corpos desajustados?

Está na moda (ou na contra-moda, depende da perspectiva) desaprovar as cirurgias plásticas por serem coisas vãs. Vejo-os, nesta altura, ao saberem do que aconteceu a Manuel Machado (um treinador de futebol), esfregando as mãos de contentamento e debitando a sentença certeira que se socorre do lugar-comum: "quem anda à chuva, molha-se". Eu digo que isso é tão certo quanto estes empenhados moralistas só saírem à rua em dias soalheiros.

Esses dogmas ajuízam as modificações estéticas dos corpos como uma batota que contraria a natureza. Este é o mas que daqui atiro: a história da humanidade não é uma constante peleja para domar as forças da natureza? As doenças que deixaram de ser mortais; os medicamentos que suavizam sofrimento; a esperança de vida que se alonga; a imensa dignidade da menor mortalidade infantil; podíamos mudar a agulha: as barragens que domesticam rios selvagens; para atalhar, a parafernália de invenções que tornam a vida mais fácil, com mais bem-estar, mais hedonista. Tudo, mas tudo, é a emergência dos segredos que a humanidade conquista à natureza. Que perde o seu virginal estatuto.

Fazer retoques na estética do corpo não é batota. É uma necessidade para quem a sente.