6.2.09

É proibido ser céptico?


Arre, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanta besta já é muito pouca gente!

Arre, que o Portugal que se vê é só isto!

Deixem ver o Portugal que não nos deixam ver!

Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!

Ponto.


Agora começa o Manifesto:

Arre!

Arre!

Oiçam bem:

ARRRRRE!

Álvaro de Campos, Poesia.


Andam por aí alguns polícias do pensamento a repreender críticos que só o sabem ser, críticos. Revoltam-se contra o muito fel que destilam os que só têm fel para destilar. Desafiam: não fiquem pelas críticas, aventurem-se nas alternativas. Protestam contra a cómoda poltrona onde se sentam os cépticos que só o sabem ser, cépticos. Acusam: nestes críticos não há nada de construtivo. É só um rosário de injúrias que tudo destrói de cima a baixo.


Gosto de ler a argumentação escandalizada dos que navegam por águas optimistas. Nuns, descomprometido optimismo. Cansam-se da monotonia do cepticismo dos que só o sabem ser. É uma posição respeitável. Tão respeitável como a posição dos que são criticados por serem profissionais da crítica, por sinal. Noutros, diligente retórica talhada para enaltecer as aptidões dos que seguram o leme nas mãos. A esses, desconte-se o compromisso da causa para perceber a intolerância com os que se deixam vencer por um derrotismo que avança, assíduo. São advogados em causa própria; não lhes convém, dói-lhes muito, o espesso manto de pessimismo de quem não consegue ser indulgente com os que querem manter o leme entre seus dedos.


Não fosse ultrajante, e seria apenas delicioso assistir à desorientação dos apaniguados do poder perante as milhentas exibições de cepticismo. Custa-lhes admitir que há quem sinta um odor diferente na atmosfera, e que esse direito à diferença tem sido por eles ultimamente ultrajado. Mas é um aprazível quadro vê-los, que nem baratas tontas, tremendamente ofendidos por haver quem não reconhece as acertadas águas que a nau sulca (se é que não navega por estima, ou até à deriva). É quando por mim sobe um irrefreável impulso para cerrar fileiras no pétreo cepticismo, a crítica sempre na ponta da espada dos argumentos. Talvez até faça a vontade destas virgens ofendidas: andam à cata de críticos que o são só por serem, críticos, cépticos sem razão outra que não essa, a de serem cépticos. Estou-me nas tintas para as suas tácticas, nas tintas para a desesperada via-sacra para convencerem a multidão das incontáveis virtudes do timoneiro que não se desapega do leme.


Há a racionalidade e as emoções. Há muitos que se refugiaram no lado contrário da barricada por razões notórias, que se prontificam a identificar caso seja preciso. Era o que faltava proibir-se a crítica só para não incomodar a maravilhosa condução da nau nem irritar o timoneiro que, arrogantemente, mal convive com os que ousam divergir. É aqui que germina um cepticismo emocional: aquele que transcende das suas razões – certas ou erradas, não vem ao caso – e entra no terreno dos princípios. Quando vejo um zeloso pastor da ordem a tentar cercear a liberdade de pensamento, do pensamento incómodo, desligo-me da matéria racional: aí fala a emoção fundeada no imperativo da defesa de princípios e logo figuro do outro lado da barricada.


Este ruído, insuportável ruído, faz parte do momento. Não deixa de ser insuportável só por nascer das manobras em que as vésperas de eleições são férteis. É a insidiosa doença da democracia, daqueles putativos democratas que se engalfinham na lama da partidarite e cegam a democracia com os seus piores vícios. Que paradoxal cenário, este: os que se ofendem com a crítica metódica e o cepticismo irrecusável nem percebem que são os principais nutrientes do cepticismo e da crítica que tanto os incomoda.


Mal dos seus pecados: enquanto esta for uma terra onde, por muito que lhes custe, vinga a tolerância das ideias, limitam-se a apanhar o restolho do desconforto semeado pelos que figuram entre a ralé dos críticos. Nunca me soube tão bem saber que pertenço a uma ralé. Prefiro esta ralé aos actores muito pequeninos que se julgam habitar numa auréola intelectual, a auréola de onde esmagam os que têm a ousadia de ser adversários de ideias. Essa gente mesquinha, carne para canhão dos figurões da mesma igualha, à uma mestres no amadorismo de todas as coisas, a gente que irradia a ominosa intolerância com os que pensam diferente.


A salazarenta forma de ser que atravessa muito mesquinha gente é o ponto de Arquimedes para a indeclinável crítica, para o aprisionamento no doloroso cepticismo.


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