20.2.09

O beijo proibido


Não são os afectos o derradeiro vestígio a impedir a mecanização das pessoas? Não há, num beijo, num singelo beijo que seja, um sentimento transmitido numa fracção de segundos, que palavra alguma conseguiria sintetizar no mesmo lapso de tempo?


Numa muito movimentada estação de comboios, Warrington Bank Quay, em Cheshire (Inglaterra), os viajantes estão proibidos de se demorarem em lânguidas despedidas com troca de beijos. O burocrata de serviço que selou a medida que congela os afectos tratou de arranjar um pretexto. Os utentes habituados a vagarosas despedidas, aqueles que trocam um e mais outro beijo como se estivessem a adivinhar que jamais o fariam, incomodavam o funcionamento da estação ferroviária. Ficavam ali, inertes até ao penúltimo segundo antes de o comboio iniciar a marcha, agarrados um ao outro, na consumição antecipada das saudades que os iriam moer até às entranhas, alheios ao bulício da estação. Perturbando os outros passageiros, os que não estavam ali para inúteis despedidas. A agitada estação não se compadece com as angústias dos que vão ficar apartados da pessoa amada.


Altura para o pessoal preconceito contra a insidiosa internacional socialista que se insinua a cada dia que passa, estendendo o cobertor das proibições até à ridicularia. Para que todos percebamos que a figura tutelar do Estado por eles comandada não perde de vista a regulação até do ar que respiramos, caso seja necessário. Gabam-se, os socialistas do mundo inteiro, de serem os penhores maiores dos valores sociais, de serem zelosos guardiães da ideologia com o rosto mais humano de todas as ideologias. A presunção só qualifica quem dela exagera. Que interessa rebater, com ideias, a auto-reivindicação vaidosa da internacional socialista? Os factos estão aí, gritam bem alto a negação do catecismo que os ilusionistas do socialismo tentam vender aos incautos.


Esta é a sublime incoerência: o que dizer do "socialismo de rosto humano", do socialismo campeão das políticas humanizadas, quando um pequenino beleguim da internacional socialista tirou da cartola da mesquinhez a proibição de um acto tão singelo e tão significativo como um ósculo de despedida? Onde está o rosto humano de quem decreta a proibição dos afectos? O poder inebria. Fazendo vingar um tecnocrático argumento: vale mais a fluidez das plataformas da estação ferroviária do que os beijos dos amantes em pungente despedida. Um burocrata sem freio a matar qualquer esboço de beijo de despedida é gente desqualificada. Imagino a criatura a passear-se pelo espaço da estação, altiva, toda contente ao ver como as pessoas circulam sem o estorvo dos que se demoravam em beijos de adeus.


Dirão alguns que são os sinais de um tempo novo. Que temos que nos acostumar às novas melodias compostas pelos engenheiros sociais que transformam, com a sua mágica batuta, o percurso do tempo. Estes gratuitos exercícios de poder, que em nada se distinguem do abominável autoritarismo, espalham o cansaço do mundo. Depois, há remendos que só pioram o estado comatoso de tudo isto: num acesso de lucidez, o burocrata lembrou-se de criar uma área fora da estação onde os viajantes já em plena consumição das saudades podem trocar os beijos que quiserem, o tempo que quiserem, até perderem os comboios que não esperam pela consumação dos beijos. Faz lembrar os espaços para fumadores. Jaulas onde se envenenam de nicotina, para gáudio da turba que os observa do exterior, tal como se estivessem a ver feras enjauladas num jardim zoológico. Teremos, em Warrington Bank Quay, um cortejo de voyeurs a saciar-se com os beijos dos viajantes acantonados na área destinada aos beijos?


Ainda por cima, tudo isto se passa numa terra que cultiva a frieza do trato. Parece que as pessoas têm peçonha. No dia-a-dia, os cumprimentos restringem-se ao modo verbal. Sem apertos de mão, muito menos beijos em senhoras, que isso é uma ultrajante invasão da intimidade. Não era suficiente o gélido trato a que estão habituados, aparece agora um diligente socialista a colocar mais gelo no que já atravessava negativas temperaturas.


Que novas proibições doravante, só para os sacerdotes da nova moralidade rangerem os dentes de prazer? Quando chegará o dia em que regulamentos ou leis entram nas nossas casas a vasculhar os hábitos mais íntimos, a domá-los, a dizer o que se pode e não pode fazer? Nem que deixe o metódico pessimismo em temporário descanso, só consigo pressagiar que se trata de uma questão de tempo. Os tratantes socialistas terão o prazer de inventar essas, e quantas mais se imaginem, proibições.

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