24.2.09

Os esqueletos e o armário


Dizias: todos temos um armário com esqueletos. Os fantasmas que adejam na lúcida memória. Uns, com armários pejados de esqueletos. Outros com sapiência para amealhar um punhado apenas. Insistias, sem revelar os teus pessoais esqueletos – nem disso curava de saber –, em cavar nas profundezas do armário que teimavas em me atribuir. Em vez de matar à nascença a intrusão, dei folga ao exercício. Só para caucionar a ousadia.


Teorizavas com os esqueletos que descobriras nos esconsos armários de outros. Que deixaram de ser esconsos depois da diligente inspecção que fizeras. Era um tonitruante garbo, essa prosápia de detective privado a patinhar nas costas da vida dos outros. Eras detective por lúdica deriva, detective para auto-comprazimento. Ainda por cima, os outros não eram outros quaisquer. Eram-te queridos. A traição maior era quereres açambarcar os outros que foram vítimas às mãos da tua curiosidade doentia.


Ao que dizes, só apanhaste gente fraca. Gente que dava o flanco quando entravas nos seus armários sem pedir licença. Nem sei se era gente fraca, ou apenas gente boquiaberta pela ousadia da invasão, gente sem sequer conseguir esboçar uma reacção que fosse. Enquanto se detinham nessa inércia, colonizavas a sua vontade. Colonizavas a sua vida no trajecto que nunca te poderia pertencer (se é que algum dia uma vida transborda para a posse de outrem). À minha pergunta ("não te incomodava a intrusão em fragmentos da intimidade que não eram teus") retorquias: que só eras capaz de te entregar se conhecesses a outra pessoa e os segredos que o deixariam de ser.


Comecei a discordar do método e fui adiando as respostas ao interrogatório que sondava os meus fantasmas não segredáveis. Foi quando as águas se soltaram do leito. Ao início só espumavam impaciência. Depois galgaram para além da impaciência, numa fúria assustadora. Sentias que queria resguardar os meus fantasmas lá no sítio onde os tinha escondido. Nem quando transpiravas alguma raiva por veres trancadas as portas dos meus armários me sobressaltei. Queria ver até onde levava a sórdida curiosidade.


Consegui domar o palco das interrogações. Terás entendido as minhas perguntas como a oportunidade para descair numa aparente fraqueza. Como se fosse imperativo ir lá a baixo para, sem contar, disparares o golpe certeiro quando menos esperasse, para então as rédeas serem tuas outra vez. Quis saber o que fizeram os outros ao darem conta que os seus fantasmas deixaram de ser coutada individual, quando, de tanto porfiar, conseguiste entrar no armário e violar o dever de reserva. Não percebeste a intenção. Entregaste-te a palavras que só eram uma dilação da resposta que, a ser dada, ia saciar a minha curiosidade. Era como se os papéis se invertessem. Sem querer ser penhor dos esqueletos do teu passado. Não queria saber dos teus armários nem se eles sepultavam esqueletos.


Tudo o que queria era saber da reacção de quem pereceu vítima aos pés da maquinal curiosidade que te guiou até ao escondido local dos seus esqueletos. Tinham ficado enraivecidos com o azedume da traição? Ou ficaram atónitos, perplexos na inerte reacção, como se a revelação dos esqueletos fizesse cair a cortina que resguardava a sua intimidade? Ou inertes por temor, por saberem que os segredos que pertenciam à intimidade eram doravante património comum? Tementes de ti, por se saberem agora teus reféns?


A tua perícia desenganou-me. Nunca o soube, porque nunca quiseste responder às perguntas que te fazia. Perdias-te em rodeios, ladeavas a minha terapêutica bisbilhotice. Porventura a tua imensa inteligência sussurrava ao ouvido: se me desses as respostas que queria, soçobravas na armadilha que tinha colocado só para ti. Foram as perguntas que nunca tiveram resposta.


O mais que me disseste? Ao tomares conhecimento dos esqueletos dos outros, deixaram de ser-te queridos. De mim nunca terias esse desgosto.

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