12.2.09

Second best


A ideia do desassossego. Diziam-lhe constantemente que a perfeição pertence aos deuses. Entidades invisíveis, mas adoradas porventura por serem invisíveis, aspirações ideais do que a humanidade nunca chegaria a ser. Aos homens, a humilde resignação da sua abundante imperfeição.


Interrogava-se, a meio do alvoroço: por que se flagela o homem com o rosário de imperfeições que o persegue? Erra por convicção? Ou só para se reencontrar com o humilde arrependimento, ali ajoelhado na sua infinita pequenez para obter o perdão de uma das entidades divinas a quem se presta culto? Incomodavam-no as teorias correntes da imperfeição humana. Não via nelas a grandiosidade eloquente dos actos humildes. Era todo um manifesto de aviltamento das pessoas, condenadas a inclinar-se diante da suma perfeição divina.


Olhava em redor à procura de fragmentos em negação da teoria dominante. Obras-primas, nas artes, na arquitectura, onde quer que povoassem a magnífica têmpera humana: as obras-primas, monumentos à grandiosidade do homem, nesses projectos a edificação de uma gesta a levitar acima da insignificante pequenez das gentes perseguidas pelos escolhos dos passos trocados. Era tudo ao contrário: houvera pessoas ungidas com as cores da perfeição, pessoas capazes de compor músicas perfeitas, de pintar quadros retumbantes, de compor poemas devastadores pela melodiosa coreografia de palavras magicamente sucessivas. Homens a esboçarem-se arquitectos divinos mercê das obras que domavam a natureza que se julgava fora da mão humana. A todos estes intérpretes da perfeição, dir-se-ia que beijavam os pés dos deuses por terem sancionado a perfeição das suas obras. Outra maneira de desmerecer a intervenção humana, apenas.


Era isso que o deixava sem entendimento: sempre pretextos para amesquinhar a acção dos homens. Tudo o que fizessem, por mais aplausos que recebesse, ia desaguar à etérea influência dos agentes desconhecidos. Em tudo havia mão de deus, os homens remetidos à irrecusável pequenez. Era como se todos os actos, todos os pensamentos, todos os gestos, omissões, hesitações, avanços e recuos, tudo fosse determinado por uma mão que ninguém via mas todos deviam sentir. Uma fracção de segundo antes, os actos, os pensamentos, gestos, omissões, hesitações, avanços e recuos fermentados na esmagadora presença divina. E nós, mortais ao contrário dos adorados deuses, compensados pelo dom da humilde resignação da pequenez a que nos víamos remetidos.


Uma lei, invisível por não escrita, uma lei fora de todos os códigos, mandava o obediente rebanho não perturbar com inúteis interrogações a ordem estabelecida e a harmonia. Nem quando as coisas, na sua ociosidade, começavam a perder sentido e a ganhar uma absurda espessura. A fé, a inamovível fé, fornecia a resposta acertada no tempo certo. Ao homem restava saber que não se podia libertar da sua infinita imperfeição. Uma condição que era superior a toda a vontade que o homem conseguisse arrebanhar. Nem mil gritos, nem um oceano tumultuoso de lágrimas remoendo a sua revolta, ou as obras mais encantadoras à superfície do planeta, chegariam para desmentir a harmonia fixada no dogmático saber. A inquietação dos dissidentes era o pasto da sua consumição. As ondas tempestuosas onde todas as ideias esbarravam na sua breve finitude. A impaciência fermentava o desassossego, mas um estéril desassossego. Era como se pairasse sempre uma afiada espada à espera da desatenção dos sentidos. Só para provar a esmagadora imperfeição dos que soçobrassem ao golpe seco do algoz. Nem que o algoz fosse um qualquer bondoso deus, ali com a maldade a transfigurar-se em indulgência.


Todavia, nem a avassaladora força de todos os deuses lhe torcia a vontade. Ou os deuses estavam escondidos, na covardia da sua invisibilidade, ou eram fantasmagóricas entidades inventadas para convencimento da finita aspereza dos homens, mergulhados no poço da sua infinita imperfeição. Quando lhe diziam que só podíamos aspirar ao segundo óptimo, desconfiava da diligente encenação da semântica. Um óptimo nunca é segundo de coisa alguma. É óptimo – primeiro, por definição das convenções linguísticas. A menos que por aí houvesse divinas entidades a reinventar a língua. Tal como foram habilitadas a convencer um numeroso exército de seguidores da rasa campa por onde vegetam as suas insignificantes existências.


Tudo ao contrário: havia perfeição ungida pelas mãos dos mortais. Todos os dias. Cedesse às convenções úteis, dir-se-ia que é quando os mortais levitam para o altar onde só os deuses têm lugar. Fazê-lo seria rejeitar a indivisa natureza dos homens: só homens, visíveis e existentes, e nunca deuses de coisa alguma.

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