24.3.09

Gurus


Sacerdotes. Guias espirituais. Conselheiros. Guardadores de rebanhos. Líderes de massas. Qualquer que seja o nome que se lhes dê, os gurus prendem os seguidores num acrítico culto. São seguidos, em transe, quase como se a turba que lhes devota admiração estivesse presa por um mágico hipnotismo que lhe retira o sentido das proporções.


É curioso como há pessoas que precisam de gurus. Trata-se de um sucedâneo de religiosidade. Enquanto nas religiões tudo conflui numa celebrada entidade divina, o zénite onde se busca inspiração para a bonomia do mundo, com os gurus dir-se-ia haver uma deificação em forma de homem, ou a terraplanagem das divindades que passam a viver entre nós, literalmente. São deuses de carne e osso, que falam e se fazem ouvir, com prédicas audíveis e não apenas imagináveis.


Os gurus são um refúgio onde aportam os carentes de explicações para mistérios ininteligíveis. Procuram nos gurus um mapa que decifre esses mistérios. Estas pobres almas bebem aconselhamento que as retire da desorientação doentia. É como se estivessem perdidas no meio de um imenso deserto, só areia a toda a volta, a morrerem de sede e de fome e, de repente, do nada surgisse um oásis em forma de guru com tudo aquilo de que precisavam – uma palavra de conforto e o caminho por onde seguir na encruzilhada por diante. Só não sei se as pobres almas em demanda de conselhos tornam verdadeira qualquer patranha que lhes impingem gurus que sabem da poda. Os gurus perspicazes que sabem ler as fraquezas do rebanho que apascentam e cativam a sua fidelidade. Sem a canina fidelidade, esfrangalhavam-se em vestígios de gurus. Desmistificados, enfim.


São traiçoeiras, as generalizações. Haverá gurus genuínos, descomprometidos na entrega aos que os seguem. Haverá gurus que se empenham em ajudar os outros e não tresandam a gabarolice de serem arquitectos a redesenhar almas. Mas o que vejo em redor é a antítese. Gurus que soam a trapaça. Gurus engalanados com a soberba do narcisismo, enfeitados com uma prosápia risível, arrivistas a quem calhou em sorte um séquito que os endeusou incompreensivelmente. Gente manipuladora que se aproveita de frágil gente manipulável.


Existirem gurus será diagnóstico da fragilidade da espécie (ia arriscar dizer pequenez da espécie, mas recuei). Os problemas de alguém são endossados a um guru com o encargo de trazer soluções. É quando entram em cena gurus com dotes especiais, investidos de uma presciência só ao alcance dos sobredotados. Eis toda a fragilidade da espécie: na incapacidade para se regerem por si mesmas, as pessoas partem em demanda de vendedores de sonhos feitos de ar e vento, da gente dotada de uma varinha mágica que, com um toque de Midas, transforma ruínas num arejado e límpido compartimento onde a vida passa a ter lugar. Depois sobra a gratidão. Que alimenta a dependência e espalha a rede que cultiva os pastores de espíritos.


Não sei se será fraqueza, ou apenas desespero, quando as lancinantes pedras da vida dilaceram ensanguentados pés de gente imersa em vida sofrida. Dizem que gente desapossada de bússola se entrega nas mãos de gurus nutridos com especial sentido de orientação. Na ausência de bússola, a gente sedenta de saber por onde ir empenha-se nas mãos de um sábio guru. Não lhe pede a bússola emprestada – e nem o guru, por mais altruísta que fosse (contradição de termos?), emprestaria a sua bússola. É mais cómodo destinar a alguém a interiorização das suas dores de parto, esperando que o guru lhe ofereça em bandeja cintilante a mágica solução para obliterar as coisas pungentes de outrora. De repente, é como se o plúmbeo céu se desvanecesse e desse lugar aos dias soalheiros que dão gosto viver.


Alguém estranha que gente empenhada em gurus os entronize num deificado altar? Se as soluções vêm de fora de si, quando dantes viviam espartilhados num labirinto indecifrável, sobra-lhes o humilde reconhecimento da sua fragilidade (ou diria pequenez?). E o culto que consagra gurus. Ao menos isso: a espécie humana não é apenas um infindável rosário de vícios e defeitos. A humildade é um dom só ao alcance de uns quantos. Pena é que lá se chegue com a transfiguração do ser que se entrega, mais alma do que corpo, nas mãos de curandeiros misteriosos.


(Em Roma)

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