4.3.09

A multidão esfaimada


As ruas que percorria eram as ruas desertas. Onde só as pedras da calçada se faziam escutar à medida que os passos atropelavam as pedras desarranjadas. Sempre pela noite fora, já densa. Errante, pelas vielas apertadas ao sabor de pensamentos desalinhados. O sossego, encontrava-o na grande cidade onde os dias espalmam um ruído insuportável, um corrupio de gente que se cruza na indiferença recíproca, a gente de onde irradiavam os seus fantasmas.


Era do dia que tinha medo, era da gente em magotes que se refugiava. Tinha um pesadelo recorrente. Com a gente que andava pelas ruas. Era perseguido por uma turba furiosa. Alguém o reconhecera, sinaleiro das marés erradas, onde o turbilhão das águas dá voltas ao contrário da maré dominante. Por mais que andasse nos passos transversais, por mais que se refugiasse dentro de agasalhos que deixavam pouco de si à mostra, sempre o imponderável de ser conhecido por alguém.


Quem lhe mandara ser rebelde contra as causas trazidas pela maré plácida? As palavras proferidas eram agora a sua consumição. Mas teimava em não ser exilado das suas convicções. Não seria por coragem física, que a não tinha. A coragem, se é que nele habitava, era a coragem das ideias que perfuravam tudo o que tinha sido entronizado pela silenciosa maioria. Pagava o preço de ser temerário. Duplamente temerário. Não eram só as ideias inconvenientes aos padrões estabelecidos. Ideias que punham alguns que patrulhavam ordem e costumes a indagar, distraidamente, se os dogmas de que eram zeladores tinham razão de ser, dogmas. Também temerário por recusar o pacato exílio que lhe acenavam, ora como ameaça, ora como desafio, ora como envenenado presente. Diante das patrulhas que não queriam o ruído dos inconvenientes, podia tropeçar numa armadilha fatal.


Mas teimava em ficar no lugar onde uma multidão, se pudesse, lhe devorava os ossos até. Já pouco mais contava do que a decência das ideias que acolhia em seu regaço. A certa altura, até ele desconfiava das suas ideias. Contudo, seguia-as com uma religiosidade que censurava nos outros. A teimosia tinha uma razão: incomodava-o ver a multidão conduzida à acefalia. Ficava perplexo com a pacatez da muita gente que consumia um feixe de ideias e apascentava usos. Da multidão que, nem por um minuto que fosse, se recusava a interrogar ideias e usos sacralizados. Parecia que os pontos de interrogação tinham sido banidos do pensamento. A certa altura, a teimosia só tinha esta razão: a rebeldia contra a legitimidade estabelecida, por se impor à multidão despojada de espírito crítico.


Mas a teimosia tinha uma consequência: a insidiosa perseguição, em pezinhos de lã, sem ameaças físicas, só conselhos de mudança, ou ao menos de silêncio, para evitar percalços no que sobrava ainda do tempo. Depois, pairavam os pesadelos de que acordava sobressaltado, como se os pesadelos tivessem a marca de água da realidade. Nem os pesadelos reiterados convidavam ao exílio para lugar distante. Se fugisse para onde não o perseguissem traía-se a si mesmo. Mal por mal, que algum acontecesse como se fosse soldado caído em combate. Apesar da física covardia.


Nos pesadelos, as horas nunca mais terminavam. Nessas horas, corria desenfreadamente pelas ruas e avenidas e vielas da grande cidade. Sempre a fugir de um exército de enfurecidos meirinhos da ordem que desafiara. Às vezes, espreitava para os becos onde outras patrulhas se amontoavam sobre uma vítima que sucumbira. No instante fugaz era-lhe dado a ver apenas o amontoado da patrulha a partilhar os despojos da vítima. Como se fosse uma caçada na selva, o caçador esfomeado a grunhir em jeito animalesco, saciando-se alarvemente na carcaça da vítima que jazeu sob a força das suas garras.


Aqueles instantes em que conseguia olhar de soslaio para o macabro quadro pareciam uma eternidade – ou era como se um fragmento do tempo, o fragmento mais doloroso, se enquistasse na memória. Sentia o cheiro intenso do sangue quente que golfava do corpo inerte e quase cadáver a ser devorado pela patrulha. E corria, corria sem parar. Até os perseguidores ficarem extenuados e se refugiar num esconderijo soturno onde a imundície era salvífica.

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