13.3.09

Ofendidas, as pitonisas sentenciaram: um deputado não pode escorregar para a linguagem de caserna


É espantosa a capacidade para o entretenimento geral com o acessório, parecendo adormecido o que importa, convenientemente adormecido. Um dia destes deu brado o palavrão de um deputado proferido em pleno parlamento. De repente, o resto deixou de contar.


O homem não falava para o microfone, logo o sistema de captura de som não registou a palavra audível. As imagens das televisões passaram à exaustão a exaltação do deputado quando reagia à fina ironia de um colega de outra bancada. Parecia que estavam a dissecar um polémico penalty. Só faltavam as imagens em câmara lenta e a opinião de especialistas – neste caso, peritos de linguagem gestual, habituados a ler os lábios – para afiançar que o deputado tinha cometido suprema aleivosia. Éramos convidados a ler os lábios de sua excelência. Pudemos observar uma palavra obscena a sair da sua boca.


Se não foi notícia de abertura, se não foi parar à capa de periódicos penhores da seriedade, andou lá perto. As pessoas quase todas ofendidas com a má educação do senhor deputado. Entaramelando meia dose de boa moral acompanhada pela indignação geral, o estafado argumento: há lugares tão solenes que não se prestam à linguagem do povo rasteiro. É o argumento do numeroso coro de gente ofendida, a gente que no dia seguinte apanhou o deputado a jeito e o encostou às cordas. Exigia-se retractação pública, se possível com abundante dose de humilhação, o deputado de rastos a penitenciar-se pelo desbragamento verbal.


Ainda bem que este é o raciocínio oferecido pela gente tão ofendida com a audácia verbal do parlamentar. Se dizem que a linguagem é própria do povo que habita as caves esconsas onde a linguagem não obedece a tratos de polé, que se lhes relembre que os deputados são representantes desse povaréu. Vamos agora descer a inclinada ladeira da desigualdade e exigir aos deputados o que não se exige ao povaréu sem tento na língua? Assim como assim, os senhores e senhoras com lugar na Assembleia da República são a imagem do povo que os escolhe. E se o povo é pródigo em palavrão frequente, por que se não consente o registo aos que o representam?


Somos uma gente paradoxal. Gente latina, todavia escondida do informalismo que abunda nos demais latinos. Nestas coisas das instituições e das solenidades que lhes adjazem, impera uma seriedade, dir-se-ia, um apurado "sentido de Estado" (como adoro esta expressão!) que faz de nós gente sisuda. Insistir que as pessoas importantes têm responsabilidades acima da média, o que delas exige contenção verbal e forma de vida compatível, é uma entorse à igualdade por aí tão apregoada. Será a factura de serem famosos, ou de terem visibilidade pública, ou de terem o poder entre mãos? É-lhes permitido em privado o que não se lhes consente em institucional pose?


Eu propunha: que aos deputados fosse autorizada a arruaça. A elegante arruaça, sem insultuosa agressão física. Quem lhes pode cercear o direito ao turpilóquio, se quem os escolhe deita uma perninha amiúde na turpilóquia linguagem? Quem lhes pode travar a língua quando o achincalho os cobre, se para os seus botões espumam o catálogo de impropérios conhecidos? O parlamento parece uma casa assombrada, muita gente acabrunhada, como se estivessem metidos dentro de um espartilho, obrigados a mostrar boa educação que porventura não lhes é inata. Não está certo meter os deputados nesta vara de sete paus. O que o povaréu gosta é de diversão. Talvez se cultivasse a proximidade entre eleitos e eleitores se aos primeiros fosse dado o direito, uma vez por outra, quando lhes doesse o calo, de escorregarem para a linguagem de chinelo.


Como é insuportável a hipocrisia dominante, o faz de conta interminável só porque a solenidade das instituições exige decoro. Obriga-se as pessoas a rebaixarem-se às instituições, tão sérias e sacralizadas as instituições que o uso de linguagem torpe pode agredir a sua sensibilidade. Houvesse quem me garantisse que "as instituições" têm vida própria e ainda dava de barato que a compostura imperasse. Mas o que são as instituições senão a imagem de uma população que se enquista na abstracção das instituições? Quem entroniza uma pudica condição nas instituições abraça-se a um equívoco: se não são gente, como podem ter ouvidos e olhos e sentidos e ficarem ofendidas quando a linguagem desce ao nível da caserna?


O deputado, José Eduardo Martins de seu nome, devia receber o prémio do deputado da legislatura. Por uma vez, enfim, um deputado à imagem de gente, de carne e osso e não feito de gelatinosa compostura. Uma compostura que é uma impostura.

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