12.3.09

Sai um quilo de sal para a malta que se preocupa tanto com a nossa saúde


A última saga, a última de muitas dos proponentes do higienismo à força, é o sal no pão. O pão que tem sal a mais, bem entendido. Um excesso alimenta o outro: do sal à hipertensão, um salto apenas. Depois há gente a morrer de ataque cardíaco. Mudem-se os hábitos alimentares: os padeiros convencidos, à força da lei e sob o jugo de pesadas coimas, a adicionar uns escassos gramas de sal na massa do pão. Para não entornar o sal e não incomodar os arautos da irrepreensível saúde pública.


Somos ingratos, os que desafinam do coro que aceita as prescrições obrigatórias do bando de engenheiros sociais de braço dado com cuidadosos médicos. Preocupam-se tanto com a saúde pública e nós desatamos a criticá-los "só porque" gostamos de pão com sabor a pão. O nosso problema, além da desagradável ingratidão, é não sabermos que os hábitos se reinventam. Como podemos demolir todos os conservadorismos quando somos, lá no fundo, conservadores de sabores e hábitos alimentares que provocam dano na saúde?


Da tremenda contradição devia resultar um cautelar silenciamento. Os que desalinham dos códigos entronizados e desaprovam as causas alinhadas na pauta oficial deviam ser condenados ao degredo de opinião. Por imperativo da saúde pública, que é assunto indiscutível. O problema maior é a campanha dos engenheiros sociais e diligentes médicos ser incompreendida. Pertence ao domínio das injustiças que muito magoam quem tanto oferece à causa pública. Não devia ser suficiente para deixar proscritos os adversários desta causa pública?


Debato-me com a consciência. É como se tivesse dois hemisférios em perene combate. Um dos lados agradece, mas declina, a presciência da causa pública. O outro lado aponta os cânones da moral do momento, a ingratidão a dourar a injustiça dos cultores do higienismo não serem reconhecidos pelo inestimável serviço público. É o primeiro hemisfério que vinga, todavia. Deplora as constantes intervenções de figuras tutelares que ostentam autoridade e redesenham hábitos pela batuta da lei e com o lastro da autoridade médica. Quem somos nós, comuns mortais e néscios de medicina, para questionar a autoridade médica?


O zelo dos médicos ultrapassa a minha compreensão. Se formos todos bem comportados, se ninguém pisar o risco da alimentação indevida, quem vão os médicos tratar? Estarei errado se adivinhar dias sombrios à classe médica se algum dia fosse possível cumprir o sonho de uma saúde pública exemplar? Enquanto não chega o mirífico cenário, agigantam-se nos tamancos da autoridade científica e assustam-nos com fantasmas hediondos. Quem quer morrer de enfarte de miocárdio? É só continuar a embuchar pão carregado de sal.


A militância dos médicos serve de alavanca para o activismo de engenheiros sociais, sempre carentes da reengenharia social de onde sai o esboço do novo e perfeito homem novo. É gente insossa. A continuar a este ritmo, um dia destes não há leis que cheguem para proibir o que quer que seja, nem polícia e tribunais que sobrem para passar as coimas aos teimosos da infracção. Só ainda faltou convencerem os grandes chefes de cozinha a reinventarem a gastronomia. As feijoadas e os sarrabulhos e outras iguarias que tais, então todas assépticas. E depois convencer uma turba de fiéis militantes socialistas a rumar aos restaurantes assépticos. Para não se esgotar a fonte inventiva e a longa mão sapiente que acautela a nossa saúde, quem sabe se as intrusões se estenderiam à cama onde dormimos e onde nos emprestamos à devassidão. Ainda haveremos de ver um Kamasutra reinventado pelos cânones da gente insossa, um manual detalhado da arte – que seja, uma resma de páginas carregadas de proibições. Pois alguma alma caridosa descobrirá que a luxúria faz mal ao coração.


O tal hemisfério rebelde insinua todas as infracções ao observar o enlevo, o generoso empenho, a assertividade das certezas, a ostentação de autoridade dos videirinhos da imaculada saúde pública. É quando apetece ser fumador, não o sendo. Alcoólatra, apesar de abstémio. Ter vida sedentária, apesar do exercício físico de agora. E uma alimentação desregrada, com muitos fritos e comida ensopada em sal. Podia ser que do sal em excesso respingassem uns vestígios para estes insossos actores do higienismo, que por dele andarem arredios abusam das intrusões em vida alheia. Talvez então percebessem que não lhes deram mandato para serem zeladores da saúde dos outros. E não venham com a diatribe do muito dinheiro consumido ao serviço nacional de saúde por causa da negligência de gente descuidada com a sua saúde: é gente pagadora de impostos. Que tenham utilidade esses impostos. Para curar doentes em vez de manter um bando de higienistas.

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