23.4.09

Os senhores polícias estão dispensados de cumprir as leis como nós?


A autoridade faz jus ao nome quando faz tábua rasa das regras que quer que nós, os que não somos autoridade, cumpramos? Ou, só por ser autoridade, desliga-se por predicados divinos do respeito das leis que nós, os que não somos polícias nem temos o poder nas mãos, devemos respeitar para não vermos o inclemente braço punitivo cair sobre nós?


Há tempos, reparei como um mediático inspector da polícia judiciária (que entretanto deixou de o ser) saiu de tribunal, entrou no seu desportivo veículo e arrancou a toda a velocidade. Esquecendo-se de apertar o cinto de segurança. Só pode ter sido isso, esquecimento. Que dos agentes da autoridade não se esperam escorregadelas tão ostensivas. Naquela altura, uma pergunta tomou conta do meu pensamento: e se fosse interpelado por uma brigada de trânsito e me tivesse esquecido de colocar o cinto de segurança, qual seria o valor da multa? E esta outra: as imagens da televisão mostrando o ostensivo atropelo ao código da estrada seriam suficientes para levar o senhor inspector a sentar o cóccix no banco dos réus?


Depois, na semana passada, passei numa movimentada rua da cidade onde está situado o sindicato dos polícias. Devia haver uma reunião, uma muito importante reunião, a atestar pela nunca dantes vista aglomeração de automóveis estacionados nas imediações. Notei que quase todos estavam estacionados com as duas rodas do lado direito em cima do passeio. Alguns estavam, pareceu-me, a invadir o espaço reservado a uma paragem de autocarro. E alguns estavam parados num sítio que tinha uma linha amarela pintada no chão – ao que me lembro, sinal indicativo de proibição de estacionamento. Os que pararam com duas rodas a invadir o espaço dos transeuntes não podem ser acusados de insensibilidade: fizeram-no para não prejudicar o trânsito automóvel. É desta consciência que eu gosto, nem que ela faça vista grossa às regras que os senhores agentes fiscalizam com tanto zelo.


Deitei-me a adivinhar: se calhar, a força policial estava toda reunida no sindicato, pois pela amostra de rebaldaria ao código da estrada não havia polícias disponíveis para aplicar as multas por estacionamento proibido. Se a teoria colhesse, a gatunagem potencial tinha naquele dia uma ocasião ideal para a função. Mas o cenário não podia ser assim tão tenebroso. Podiam lá os senhores polícias, só por causa de uma tão crucial reunião no sindicato, hipotecar a segurança pública? Lá como há serviços mínimos a cumprir nas greves que afectam serviços essenciais para a população, com certeza que aquela reunião sindical não fora frequentada pela força policial em massa.


Sobra uma hipótese pouco simpática. Na concorrida artéria terão passado polícias, daqueles que andam em trio em patrulhas transportadas de automóvel, ou das patrulhas solitárias em motociclos nada potentes. E ninguém terá parado para distribuir multas. A hipótese que vinga é esta: os polícias dispensados da reunião do sindicato mostraram uma notável solidariedade corporativa. Podiam lá eles multar os seus colegas destacados para tão importante conciliábulo? É desta solidariedade que se devia ensinar nas escolas.


Mas também sobra outra lição. Desenganem-se os cândidos crentes da sacrossanta igualdade. É uma miragem. Há quem seja mais igual do que os demais. Os polícias, sobretudo se estiverem em valiosa missão de defesa da classe, têm a passadeira estendida para fazerem aquilo que não deixam, aos que não envergamos a farda da autoridade, fazer. Não consegui resistir à imagem de umas dezenas de polícias que perseguem ferozmente os ensandecidos ou apenas negligentes automobilistas que pisam os limites do código da estrada. Como eles adoram passar multas, com a pose inflexível de quem não pode, nem deve, sucumbir às ladainhas dos infractores que clamam por piedade. Esses mesmos que, para não chegarem atrasados à urgente reunião do sindicato, ou apenas porque não quiseram ter o incómodo de dar às pernas umas duas centenas de metros, espalharam os seus automóveis num prolongado cortejo de infracções ao código da estrada.


E depois imaginei um quadro sublime: pela calada, sem que nenhum dos sindicalizados desse conta, espalharia multas de fancaria nos pára-brisas daqueles automóveis todos mal estacionados. Simbólicas multas. Não as tinham que pagar. Lá vem um adágio: "no melhor pano cai a nódoa". Neste caso, tenho que corrigir o adágio. A "fazenda" não é assim de tão elevado calibre como se supõe.

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