1.4.09

Quando um dos “nossos” apetece ser dos “outros”


Embirrações pessoais. Duplamente pessoais. Têm a ver comigo, porventura defeito interior de não conseguir suportar determinadas características que outros carregam consigo. E pessoais, ainda, pois são nutridas pela existência alheia. Há embirrações destas que custam mais a digerir. São as embirrações que ganham solenidade porque se dirigem a alguém que consideramos um dos "nossos". Elas fermentam-se com mais facilidade quando povoam campos adversários. Por mais que acreditemos na tolerância em relação aos que pensam diferente, os hemisférios discordantes que habitamos são a alavanca para as irritações pessoais. Nesses casos, não é tanto a pessoa que irrita; é aquilo que ela diz, ou pensa – e, sobretudo, a forma assertiva com que o faz.


Diferentes são as embirrações com alguém que coincide connosco. São solenes porque não há o vasto oceano das diferenças a separar-nos. Tudo se resume aos atributos da pessoa. Ela transporta consigo uma forma de ser e de estar que nos revolve as entranhas. Perdoa-se-lhes menos os atributos que nos colocam à distância de léguas; a certa altura, só para nos sabermos nos antípodas da personagem, apetece engrossar as fileiras a que jurámos nunca pertencer. Só para habitar um lugar diferente da figura que atinge o púlpito dos odiozinhos de estimação.


Estas são as embirrações pessoais mais custosas. Chegam a insinuar um convite para sermos dos "outros" em vez de amesendarmos com os "nossos". A certa altura, parece que já nem sequer fazemos parte da confraria. As solenes embirrações chegam a revolver tanto as entranhas que dissolvem a identificação com os "nossos". Damos conta de um afastamento motivado pelas aves de arribação que provocam urticária. O que não lhes perdoamos – para além da irreprimível tentação de serem figuras públicas à custa da confraria – é serem alvo de troça alheia, responsáveis pelo achincalhamento dos "nossos", pela degradação de uma imagem que os "nossos" tinham.


Quando via o muito mediático Rogério Alves, na qualidade de bastonário dos advogados, a perorar naquela língua de trapos tão típica dos brilhantes causídicos da nossa praça, dissipava de vez as dúvidas (caso ainda as guardasse comigo): eis por que não me fiz advogado. Agora que perdeu a sinecura e passou a ser presidente da assembleia-geral do Sporting, e a aparecer vezes sem conta embebendo a mesma langue de bois, tenho uma súbita pulsão para deixar de ser adepto deste clube.


(Um parêntesis necessário: não consigo explicar por que ainda sou adepto do Sporting. Não anda o futebol pelas ruas da amargura? Não está o Sporting às portas da falência? Não é o futebol um sintoma da pequenez que nos consome? Descontando as influências familiares, que nisto da filiação clubista têm sempre o seu peso, que racionalidade existe quando alguém se diz adepto de um clube? Para um racionalista, tudo isto é um inexplicável paradoxo.)


Andou por aí a correr a notícia – decerto instigada pelo próprio, com tamanha sede de protagonismo que o assalta – que Rogério Alves podia ser o próximo presidente do Sporting. Jurei que se isso acontecesse, deixaria de ver futebol (que é sinónimo de "ver os jogos do Sporting"), incapaz que seria de aguentar aquela pose cabotina, toda feita de uma gelatinosa postura, aquele linguajar cheio de sintaxe rebuscada que, aposto, às vezes nem o próprio Rogério Alves consegue perceber as palavras que saem da sua boca. Há pouca gente que provoca este devastador efeito de rejeição em mim. Olho para Rogério Alves e só me apetece ser exactamente o seu contrário.


Isto também acontece com o eterno presidente da federação portuguesa de futebol (FPF). O agora platinado Madaíl já anda a prometer há um ror de anos que abandona a dourada sinecura. Ano após ano, há sempre mais uma missão no horizonte a reclamar a permanência de Madaíl, o imprescindível, à frente da FPF. Longe de nós, os que andamos longe de lhe cultivar a imagem, de julgar que se trata de um caso doentio de apego ao poder.


De cada vez que a pateticamente apelidada "selecção de todos nós" entristece a turba com uma derrota e depois aparece Madaíl a choramingar (que as derrotas são sempre injustas e depressa reconvertidas na especialidade indígena: vitória morais), é um súbito acesso de felicidade pela derrota dos "nossos" que se apodera de mim. Foi assim que fui arrebanhando a vontade de ser apátrida. Pois quando vejo Gilberto Madaíl apetece-me, também, ser todo o seu contrário.

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