11.5.09

As dores do pensamento


O pensamento, o labiríntico pensamento é o detonador das tempestades cerebrais, um lugar ermo quando o julgamos caução de todas as emancipações. Às vezes apetece viver imerso numa profunda, eterna letargia. Como se os sentidos nada sentissem e a inteligência não fosse a frágil armadura que se desfaz através das muitas brechas que a corroem.


É um terrível paradoxo, o pensamento. Dizem, a actividade que nobilita a humanidade. Mas uma camisa-de-forças que amordaça quem o exerce. É que o pensamento desagua nas lancinantes apóstrofes da vida, esbarra nas tremendas dores pulsadas pelo mundo. Pelos dedos do pensamento há tortuosos caminhos palmilhados, os caminhos pedregosos, cheios de curvas e declives, com vegetação espinhosa a tolher a passagem e um corpo marcado pelas feridas ao cabo do caminho percorrido. Pretende-se que é a tarefa maior e mais nobre sair vitorioso do desafio do pensamento. Exercê-lo, nem que dele não saiam páginas pintadas com as cristalinas palavras que empunham um pensamento nítido, é um triunfo em si.


Só que ao pensamento pertencem as dores do mundo inteiro. O raciocínio compõe-se num amontoado de frases que se julgam inteligíveis. Mas do pensamento assim esboçado revela-se a absurda faceta do mundo, a estranha seiva que dele brota. Dá-se o caso do pensamento se encerrar numa contradição de termos. Em vez de alisar a inteligibilidade das coisas, expõe-nas em toda a sua ininteligibilidade. É então que apetece aprisionar o pensamento em masmorras de onde não pudesse sair jamais. Haveria o mundo de ser um lugar mais apetecível, nem que resultasse sê-lo à custa do incêndio do pensamento.


O tempo consumido na introspecção perde-se em devaneios que alimentam o nada, ou um vazio que descerra a cortina de um céu onde só há escuridão. Não, o pensamento não aclara nada. É uma torturante estrada onde o corpo se atraiçoa quando se entrega nas prometidas maravilhas do pensamento. Desenganados os que acreditam na convencionada racionalidade povoada pelo acesso ao pensamento. O pensamento será a prova, a dolorosa prova, da irracionalidade. Ou então ficam à mostra todas as cores absurdas com o que o mundo é pintado. O pensamento limita-se a dar expressão à incongruência. Traz consigo um fardo pesado, as muitas e pungentes dores do mundo entoado na pauta onde se aglomeram as notas de uma desafinada melodia. Este pensamento dá existência ao caos organizado que é o mundo.


Não sei se o pensamento é um espelho que atraiçoa. Uma lente desfocada que povoa os sentidos do convencimento do que traz sentido. E, todavia, uma lente desfocada. Em vez de ecoar todos os sim só para dar sentido às coisas, o pensamento devia ser lido do lado de lá do espelho em que se encerra, interrogar todos os incómodos não que se sucedem. E vasculhar nas suas entranhas, estilhaçar o espelho se necessário for. Talvez as dores crescessem. Talvez o mundo se revelasse mais hediondo ainda. Não sei: se o pensamento que vinga, o pensamento que se gasta na combustão dos costumes, não é só o pensamento fácil que apascenta as contidas dores que se escondem do mundo encerrado num subterrâneo. Só para não emergir à superfície e desatar as desabridas dores que se asfixiam. O pensamento como espartilho das cores de que nos escondemos, por temor que sejam as cores verdadeiras, as cores de que fugimos por mercê de tornarem a existência insuportável.


O pensamento tece-se nos labirintos voláteis, cheios de armadilhas, encruzilhadas que escondem outros alçapões. Debate-se num amplexo de espelhos que se sobrepõem, nutriente de uma fantasiosa existência que se esconde em paralelas estradas que, todavia, não se alcançam à vista. O pensamento é um alfobre de todas as dores. Das dores do mundo e das consumições individuais. Uma doença irremissível.

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