19.5.09

Era a cultura popular, era


À maneira elitista: eu não acredito em cultura popular. Juntar numa expressão "cultura" e "popular" é uma contradição de termos, a negação do seu próprio enunciado. Também sei que fica mal, muito mal nestes tempos de rejeição dos elitismos, semelhante pronunciamento. Seja-me permitida a franqueza, ao menos, que abomino frustes expressões de diplomacia retórica só para não ofender os padrões estabelecidos. Que caiam todos os opróbrios sobre o que profere tamanha aleivosia.


Saiam os antropólogos em defesa da consagração popular, dos usos e costumes, das tradições com um lastro ancestral, o que se sedimenta até ganhar a espessura das convenções e entrar no panteão da "cultura popular". Sagrem-se as romarias, o paganismo que mistura crenças com irracionais misticismos, de braço dado com superstições que denegam a espiritualidade que os curas cultivam junto de tementes massas. Há artistas ditos populares: tornam-se populares com melodias fáceis de entrar no ouvido; ou pregões baratos que, por terminarem em rimas primárias, se acham dignos de pertencer aos cânones da poesia.


Perplexo fico quando vejo alguns meirinhos a reivindicarem um altar para a cultura que pertence ao povo quando o povo é tão insensível à cultura. A sagração da forma popular de cultura tem diferentes origens, numa insólita parelha: os adoradores da igualdade que entronizam o povo no lugar cimeiro da soberania, como se ainda sonhassem com utópicas ditaduras proletárias onde seriam inspiradores e ditadores-mor; e os cultores da raiz pátria, com muito nacionalismo a rodos, vasculhando nos baús da memória os sedimentos que expõem a pertença comum.


Sei que me desengano ao adornar um pensamento que renega a existência da cultura popular. Ela, ou o que se julgam as suas manifestações, passeia-se diante dos olhos, insinua-se no estio quando o povaréu se liberta da longa e penosa invernia e vem celebrar os deuses e santos em festanças regadas a tinto de jarrete e com os ouvidos emprenhados por xaroposas melodias entoadas por primários cançonetistas. As procissões, lugares muita devoção, lugares de peregrinação obrigatória no dealbar da festa da aldeia, onde fala tão alto a voz democrática do povo na sua expressão conventual.


Não sei se será mais um sinal de desidentificação com tudo isto que me envolve. Se isto é cultura popular, e se isto traz consigo o lastro das raízes do que somos, lavro daqui um diagnóstico repulsivo. Não logro alcançar o espírito de comunhão de cantares populares. Execro o folclore, os poetas populares que assassinam a poesia e todo um povo que se alinhava pela pungente mediocridade. É-me superior o entendimento de que a cultura avança com o estudo das tradições populares, seja a azáfama dos pescadores a desembarcarem o peixe capturado com a ajuda de uma junta de bois, ou os mesmos bois, em selvagem estado, selvaticamente toureados numa arena diante do alarve aplauso dos aficionados. Sei-o bem: o lugar errado pertence-me. Nesta sanha herética de negar valimento à expressão mais pura do sentir popular.


E os sublimes momentos de genuína cultura, os poetas maiores e os pintores desconhecidos do vasto público adulador da "cultura popular", os músicos que fazem avançar a música, os que trazem o pulsar das veias de gente comum e incomum para o teatro onde valsam as emoções – toda esta gente pertence à mesma cultura de onde vem a dita "cultura popular"? Dirão: de uma forma diferente de cultura, a erudita cultura que escapa à compreensão das massas, a cultura que se emancipa do "popular" porque não é feita para o entendimento popular. Impõe-se uma diferença de grau, diria, uma diferença de conceitos: pois considerar a "cultura popular" uma forma de cultura é banalizar a cultura que não entra naquele rótulo.


Cultura e popular andam em descompasso. A perfeita antítese da cultura. Como é possível chamar-se-lhe cultura? Só porque o povo é a expressão mais nobre – assim o asseguram os padrões estabelecidos – da democracia? Se assim for, proponho: que se rejeite a palavra "cultura" nas populares expressões que a querem açambarcar; e que se decrete, de vez, a elíptica anti-democrática da cultura genuína. Os desiguais não se compadecem com gratuitas comparações que enaltecem a arraia-miúda e desprestigiam o que merece ser vangloriado.


Não há cultura popular. Há qualquer outra coisa, chame-se-lhe o que se quiser, popular.

1 comentário:

Milu disse...

Julgo que compreendi a sua ideia, no entanto, penso que a cultura é todo o conhecimento ou saber que o Homem pode adquirir, já a cultura popular, entendo-a como o saber que advém do quotidiano de determinado meio, que, por vezes, se transforma numa tradição. No fundo é um conhecimento empírico. Posto isto, não me faz confusão considerar cultura até o saber mais comezinho.