16.7.09

A América Latina é latino-americana?


Está certo que foi apenas um cheirinho de América Latina. Santiago do Chile e uma curta viagem até à costa do Pacífico. Meia dúzia de dias. É pouco. Mas Santiago tem quase seis milhões de habitantes (mais de sessenta por cento da população do Chile); não será – e por que não usar o jargão dos politólogos que aqui se reuniram – uma "amostra representativa" da América Latina? Não chega para testar os estereótipos que dela temos?


Piora o diagnóstico quando pela lupa passaram somente duas cidades – e uma delas (Valparaíso) em meia dúzia de horas. Isto será pouco para ver o que é a América Latina, pois há muitas Américas Latinas espalhadas num continente tão grande, tão heterogéneo na sua geografia e na cultura dos povos. Mas temos ideias preconcebidas – quem as não tem? Vamos a elas.


Terei escolhido mal o laboratório para testar as impressões preconcebidas da América Latina. O Chile é dos países latino-americanos mais desenvolvidos. Santiago é uma cidade moderna, uma grande metrópole que, pelo tipo de edifícios que crescem ao alto no centro, podia ser uma cidade algures no continente norte-americano. Estranhamente, escasseiam os edifícios históricos. E digo estranhamente porque alguns (o museu de Santiago e a Catedral, por exemplo) datam de meados do século XVI. Parece que a memória histórica foi pouco preservada. Coincide com um dos estereótipos da América Latina?


Há traços da tal idiossincrasia latino-americana, ainda que ela se deva muito aos esforços da mente distorcida por imagens parcelares que nos entram pelos olhos. Há a sujidade, a muita sujidade de braço dado com a escassez de sítios onde depositar o lixo. Há aquela desorganização que povoa o imaginário, mas uma desorganização silenciosa, não tão desorganizada como idealizamos. Santiago não é uma cidade caótica onde nidifica o ruído ensurdecedor composto numa sinfonia de trânsito medonho e gente barulhenta. O metro, em hora de ponta, anda apinhado. Às vezes é difícil sair na estação que era a nossa, tal a lata de sardinhas em que as carruagens vão transformadas. Mas o metro vai estranhamente silencioso.


Os chilenos e as chilenas são muito friorentos. Aqui é inverno. De manhã, a temperatura quase chega ao ponto de congelação, convocando um bom agasalho. Mas à tarde, nos dias em que o sol rompia, punha-se uma temperatura primaveril. Mesmo assim os nativos andavam enfiados em quilos de roupa grossa, com cachecóis amarrados ao pescoço quando o termómetro visitava quase os vinte graus. Talvez seja psicológico: na sua cabeça, estão no pino do inverno. Quando andei em mangas de camisa, numa tarde ensolarada, reparei nas reacções de estranheza em algumas pessoas que se cruzavam comigo.


Por aqui há muitos "cães vadios" – é esta a expressão convencionada, não é? Suspeito que alguns tinham sido abandonados, pois vi cães de raça a vaguear em demanda de alimento. Mais nas zonas turísticas, talvez porque estão habituados a encontrar nesses lugares mão amiga que lhes sacia a fome. Às vezes cães sarnentos, quase sem pelo, só com as chagas à mostra na pele carcomida, sempre numa coçadeira aflitiva. Perante a indiferença dos transeuntes. Diria: uma convivência que me pareceu pacífica. Cães e habitantes de Santiago parecem saber ocupar os seus lugares; nestes dias não vi um só "cão vadio" a ser maltratado. Pela abundância de bichos espalhados pelas ruas do centro, que não tem comparação com o que estamos habituados, seríamos capazes de registo semelhante? Aqui está um estereótipo desfeito: por tantos cães vaguearem pelas ruas, será que não existe um sistema municipal de captura de cães? A confirmar-se, eis como um país latino-americano consegue ser mais civilizado.


O caos, o caos que pespegamos à América Latina, fui-o encontrar no gigantesco mercado de Santiago. Um labirinto, com corredores estreitos onde as pessoas se atropelam, onde se vende tudo. Não consigo descrever as condições para explicar como a higiene se ausentou daquele lugar. Se fiquei chocado? Antes pelo contrário: a higiene é conceito muito relativo. Molda-se perante as circunstâncias e os lugares que visitamos. Se aquele lugar não tivesse higiene – perguntei-me –, as autoridades já não o tinham encerrado? Este mercado seria um paraíso para a acção musculada da nossa ASAE. Aliás, desconfio que nem mil ASAE resolviam o assunto.


Para fim de conversa: os estereótipos são uma grande armadilha.


(Em Santiago do Chile)

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