3.7.09

Contrição da sobranceria


Eu digo, e amiudadas vezes: que nesta terra campeia a mediocridade, a mesquinhez, o oportunismo – e que outros vícios mais poderiam ser compulsados? Que esta é gente de fraca têmpera. E que, sem surpresa, a gente que tem andado com o leme na mão é da mesma igualha, ou não fosse um produto da consagrada democracia que dá um voto a cada indivíduo. E eu digo-te, a ti que tudo isso dizes, que transgrides por excesso de sobranceria. Interroga-te: por acaso adejas sobre a populaça medíocre, como se ungisses com dons especiais a tua também especial presciência?


Talvez seja apenas pesporrência. Um auto-convencimento grandiloquente. Como se fosses feito de massa diferente daqueles que são, como tu, o grupo a que pertences – por mais que essa pertença te afocinhe em epidérmicas reacções, por mais que grites a pulmões abertos a tua desidentificação. Tudo é ao contrário do que idealizas. És feito da mesma massa dos que em ti causam náuseas. Acaso será a sombria verve crítica um espelho do que recusas ver em ti mesmo, a tua doentia esquizofrenia?


Talvez nunca tenhas reparado na vaidosa postura de cada vez que sobes ao púlpito para, com esse ar doutoral, desfiares o rosário dos pecadilhos que fazem da turba um grupo pouco recomendável por ausência de virtudes. Esse narcisismo é outro passo em falso que se adiciona ao convencimento de serem diferentes as tuas credenciais. Talvez nunca tenhas percebido que não há autoridade nessa postura sobranceira: qual é a âncora da pretensa autoridade intelectual, ou outra, para que possas chamar a ti o julgamento dos outros, como se não fosses um entre eles?


E nunca, talvez nunca, te tenha passado pela cabeça que essa é uma incómoda posição aos olhos alheios. Que os outros questionam a origem da altivez com que te passeias. Da vaidade não escapas – e como te custa, no teu íntimo, saber que haja alguém que te aponte o pecadilho da vaidade. Às vezes, os actos levam-nos por caminhos diferentes dos que projectámos. Quando damos conta, já temos o corpo enterrado na viscosidade do pântano onde caímos sem querer. A teimosia no umbiguismo tem o condão de afundar o corpo no seu pântano. Sobra a cabeça de fora, para persistir na aleivosia de sempre, prendendo o corpo ao lodaçal que acama o pântano.


Tu, que escorregas para o papel de juiz dos comportamentos alheios, que insistes em chamar a ti o lacre da imensa qualidade desconhecida nos que julgas, talvez não consigas discernir a origem da suposta superioridade. Tamanha superioridade que a ti reivindicas soa mal. Qualquer um pode interrogar de que fonte brota essa superioridade. E qualquer um te pode dirigir a interrogação mais pungente de todas: e o que interessa se alguém se eleva a um patamar tão superior? Ou esta, ainda: e o que interessa perder tempo a ajuizar o que são os outros e as suas fraquezas, quando o exercício só serve para destacar a diferença de quem o faz, a tal sublime e desconfortável vaidade?


A contrição da sobranceria impõe-se. Uma espécie de introspecção com periodicidade incerta, soprada pelas dores que incendeiam as veias. A certa altura, o que incomoda já não é a mesquinhez dos outros, o leito de mediocridade onde medram alegremente. Incomoda que isso incomode e te deite numa infecta piscina de negras águas que empestas mais ainda com a evitável sobranceria.


É quando percebes: que te sobra, como única solução, o ensimesmamento. Terapêutica de dois sentidos. Para te poderes furtar à desconfortável acusação de sobranceria com que adejas sobre os demais. E um escapismo necessário para te anestesiares do que te cerca.

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