17.7.09

Enquanto houver fronteiras


Quase uma hora para entrar no Chile. De regresso a Madrid, outra demora para passar a fronteira. A passo de caracol, em filas obedientes, quando a paciência se aproxima dos limites. Para que polícias bem treinados e normalmente mal-encarados vasculhem o passaporte, digitem uns algarismos ou letras no computador, olhem para nós com ar terrivelmente desconfiado e, com ar contrafeito, carimbem o passaporte. É como se fossem eles a levantar a cancela que até então veda o acesso à terra onde queremos entrar. Muito ufanos da tremenda autoridade que repousa sobre os seus ombros.


As formalidades começam horas antes da fronteira. Ainda vamos sentados no avião e já temos que preencher papelada com os dados pessoais: nome, nacionalidade, data de nascimento, número de passaporte, morada no país que vamos visitar, e motivo de entrada no país. E se, de repente, alguém tresloucado contasse uma mentira e escrevesse, no lugar destinado às razões da visita, "terrorismo"?


É o mal da existência dos países – é a pueril conclusão a que o libertário chega. Reforça a ideia quando está na fila depois de desembarcar do avião, morto de cansaço, à espera que chegue a vez de mostrar o passaporte para ser admitido no outro lado da fronteira. Este é o zénite dos orgasmos intelectuais daqueles que têm a mente formatada para pensar o mundo como um aglomerado de países, territórios muito estanques divididos nas gavetas herméticas onde se cultiva a sacrossanta soberania. As fronteiras separam os países. Logo à entrada do país notamos a pesada nuvem da autoridade, para que nos habituemos que aquele é um país soberano e que a soberania exige muito respeito pelo comum dos mortais.


Os adoradores do soberanismo têm a ladainha na ponta da língua para contrapor os líricos desejos dos detractores de fronteiras. Dirão: não temos que tocar à campainha se queremos entrar na casa de alguém? Não é ao dono da casa que cabe abrir a porta se nos quiser acolher na sua residência? Até dirão, de peito cheio de orgulho soberanista: na comparação entre a porta de uma casa que se abre e a cancela virtual das fronteiras que se levanta à passagem dos visitantes, fecha-se mais vezes a porta da casa do que a cancela da fronteira. As fronteiras são mais liberais, rematarão, arrumando o assunto.


Talvez mais pueril do que a utopia de um mundo sem fronteiras é achar que a metáfora da porta da casa que se abre de acordo com os caprichos do proprietário arruma com os devaneios dos libertários. Um país não é uma entidade colectiva? E desde quando uma casa deixou de ser propriedade individual?


Posso ser acusado de egoísmo quando afronto a existência de fronteiras. Um país – qualquer país – goza do equivalente ao direito de admissão nos estabelecimentos comerciais. E agora que a insegurança é tão elevada, e que as ameaças fermentam do nada, os controlos de fronteiras são indispensáveis como nunca o foram. Que interessa se o viajante chega exausto de uma viagem transatlântica? Que interessa esse desconforto, se os meticulosos controlos à entrada da fronteira acabam por reverter em favor da sua própria segurança?


Não me comovo com a argumentação securitária. Já antes da ameaça terrorista indiscriminada havia controlos de fronteira. A diferença está na lupa mais zelosa que os polícias de fronteira agora usam. Até admito que me acusem de egoísmo. Prefiro chamar-lhe idealismo. Se abrirmos os olhos e tivermos discernimento para ver o que se passa no nosso umbigo – e o umbigo, aqui, é a União Europeia – não demoramos a ver que há idealismos que o deixaram de ser. Traduziram-se na realidade que passa diante dos olhos. Andamos de país para país da União Europeia e não temos que suportar fronteiras. E não nos sentimos melhor? Por não ter que suportar a antipatia arrogante de funcionários de fronteira? Por não perdermos tempo inútil com esperas demoradas para fazermos prova da identidade, e que essa identidade não é de uma criminosa figura em fuga (e por acaso algum criminoso procurado cometeria a imprudência de entrar por uma fronteira?)? Por sabermos que os países confiam uns nos outros, sinal de que as pessoas que vivem de ambos os lados da fronteira souberam cultivar um sentimento recíproco de confiança?


Este é o travo azedo das fronteiras: manifestam a eterna desconfiança que, cada vez mais me convenço (numa antítese da puerilidade libertária), é património genético da humanidade.


(Em Madrid, em trânsito)

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