10.7.09

No insólito está o ganho: o Papa quer um “governo mundial”


Mete-me impressão. A igreja que teima em interferir nos assuntos terrenos, metendo o bedelho nas artes da governação. Por sinal, a modernidade manda dizer que nos tempos que lhe pertencem se convencionou dessacralizar a política. Sacristães, curas, bispos e demais prelados, que se entretenham com as dores espirituais do seu rebanho. Esse devia ser o seu universo particular. A insistência em mandar palpites sobre assuntos que cobrem toda a gente, até os que não reconhecem à igreja católica autoridade para o fazer, amarrota a igreja com o odor bafiento de uma entidade anacrónica. Já agora, a igreja não se sentiria desconfortável se um ateu perorasse sobre a organização eclesiástica?


Desta vez o papa Bento XVI lavrou encíclica que disserta sobre as dores do mundo a meio de uma profunda crise que, dizem muitos, abanou os alicerces do que conhecemos. Desconte-se algum exagero na afirmação que se segue: a encíclica podia ter saído do punho de um cultor da alter-globalização que não se notava muito a diferença. O papa embarca nas verdades que somos obrigados a reconhecer sob pena de levarmos com o rótulo de ignorantes: os mercados falharam, os governos foram forçados a admitir que deram muita rédea solta aos mercados (a agora execrável "desregulamentação"), abundou uma anti-ética dos negócios que empurrou muita gente para excessos de ganância que deram no que se vê.


Bento XVI preconiza: para grandes males há os grandes remédios. Retoma a retórica da subsidiariedade, já teorizada numa encíclica de um antecessor. De acordo com a lógica da subsidiariedade, quando os níveis inferiores de governação não oferecem soluções para os problemas que surgem pela frente, a decisão passa para os níveis superiores. A novidade não está em retomar a lógica da subsidiariedade. Está na identificação do nível desejado para oferecer as respostas eficazes para a dimensão dos problemas que sentimos: um governo mundial.


O papa não teve a ousadia de elaborar sobre os detalhes do governo mundial. O que seria o governo mundial, foi pergunta que ficou sem resposta. Porventura porque "sua santidade" não quis mexer com as sensibilidades muito encrespadas que suas excelências os países exibem no teatro das relações internacionais. O decoro da diplomacia terá impedido o papa de concretizar a ideia do "governo mundial". Mas a ideia está semeada, à espera que outros – os que detêm o poder terreno – tenham vontade de a frutificar.


Para um libertário, propostas que defendam mais governo são vistas com desconfiança. O libertário considera que já temos intervenção excessiva das autoridades públicas. Inventar um escalão superior de governação seria reforçar, e numa dimensão gigantesca, o intervencionismo público. Como a ideia vem do papa, tão dado às matérias metafísicas, não é de estranhar que a proposta tenha o remetente que teve: assim como assim, a crença na intervenção milagrosa da mão do Estado para corrigir a desordenada mão do mercado é isso mesmo, uma crença. Tão racional como a crença numa qualquer religião.


É enternecedor ver o topo da hierarquia eclesiástica de braço dado com os mentores da extrema-esquerda – esses mesmos, os que não se cansam de apregoar os malefícios do "capitalismo" e da "globalização selvagem". É comovente ver a igreja rivalizar com a extrema-esquerda chique na pretensão de deitar a mão aos gananciosos capitalistas que só pensam no lucro. Fico comovido com as preocupações sociais da igreja. Já andou mais longe o cenário em que a igreja abandona as franjas da "direita", para desgosto dos Rui Tavares deste mundo que, por conveniência pessoal, sempre gostaram de situar a igreja à "direita".


É isto que o mundo que é nosso tem de adorável: as cambalhotas que alguns dão, perfumando o mundo com um travo insólito.

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