3.8.09

Boémia


Como se fosse um ritual meticulosamente seguido. Responsabilidades? Palavra desconhecida. Compromisso, só com a estroinice que o trazia todos os dias por onde nunca andara. Temia a rotina sem nunca a experimentar. Se houvesse dois dias repetidos era como se um manicómio se abeirasse de si.


Por isso andava ao deus dará. Na pândega militante. Todos os vícios conhecidos já experimentados. De alguns, assíduo cliente. Arrostava o olhar de soslaio de quem reprovava a sua viciosa maneira de viver – e se eram muitos, esses outros. Mas não se importava. Quanto mais lhe soavam as censuras morais, quanto mais notava a peçonha que a sua simples existência causava nos demais, mais se motivava para a libertinagem de costumes. Os conselhos de amigo, agradecia-os; sempre os adiava até oportunidade conveniente – que seria o tempo em que da boémia sobrasse o cansaço, ou que do tempo já não sobrasse nada.


Maus hábitos – escutava a terrível combinação de palavras que, no julgamento dos mais chegados, ecoava como resplandecente trovão censório. Maus eram os seus fígados: pudera ser que assim tisnados mercê da bebida, das loquazes bebedeiras que traziam clarividência e inspiração para as artes; mas maus os fígados no que a expressão contém de sentido figurado: um intransigente espírito de contradição, o refúgio de todas as tentativas que soassem a condicionamento da liberdade. Queria ser apenas o que quisesse ser. Sem que as janelas se abrissem às interferências alheias.


Afastava-se dos outros. Daqueles que por alguma razão lhe teriam sido próximos. Notava o cansaço que causava neles. Não lhe perdoavam os devaneios reiterados. A militância na boémia era, a certa altura, um incompreendido sinal de leviandade gratuita. Outras vezes, uma recusa de amadurecimento. Como se nele houvesse a urgência em prolongar uma meninice onde se perdoam os lapsos de irresponsabilidade. O mais que contava era ignorar os preceitos que os outros debitavam sobre a sua vida. A sua vida, uma ilha que queria impenetrável.


O mal é que por mais inacessível que a tornasse, por mais alto que erguesse as ameias que protegiam o refúgio que era, mais se tornava translúcida aos demais. A excentricidade, e os excessos, evidentes. Uma agressão aos "bons costumes" estabelecidos. Os protectores sacerdotes dos "bons costumes" não podiam ficar indiferentes ao insulto às regras que fixavam as coordenadas da salutar convivência entre todos. Não fosse dar-se o caso de mais gente se tresmalhar do obediente rebanho. Por isso atacavam-no com ferocidade. E não hesitavam em querer condicionar aquilo em que se tornara.


Nisto, mais o seu isolamento se fizera notar. E mais viciosa a sua existência, mais o tempo que passava imerso na inconsciência de si. Agradava-lhe a letargia a que os vícios o levavam. Era uma doce anestesia do desagradável ambiente que o rodeava – sim, que ele era a ilha cercada por um mar de águas podres. Permanecia imperturbável diante do coro de reprovações que escutava todos os dias. Era uma suave melodia para os seus ouvidos. O melhor incentivo para partir em demanda de mais libertinagem, de experimentar o último grito dos vícios, esticar a corda da boémia até próximo do ponto em que haveria de partir.


As vozes carregadas de consciência, algumas amigas, advertiam: algum dia a existência chegaria a um fim. E nele, tão entregue nos braços da boémia excessiva, a meta seria precoce. Nos escassos e dolorosos instantes de lucidez (na definição corrente do termo), a experimentação da lucidez era pungente. Preferia a demorada imersão na anestesia do mundo. O remédio era a viciosa boémia de que se fizera ícone. Embaraçante – porventura para as almas certinhas, acantonadas na pequenez de um lugarejo que era o seu mundo. Mas não para ele. Que lhe interessava a repugnância que neles causava? Se a repugnância não se esmagava na sua cara quando o espelho, a uma hora qualquer, debitava a sua cara marcada pela acumulação da boémia.


(Em Tavira)


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