17.8.09

Enviesamentos


Há gente muito vesga. Como, pelos dias correntes, é abundante a indigência mental e a distracção das audiências, os enviesamentos aparecem com desfaçatez. Dizem-se as maiores barbaridades e a caravana continua a passar, impávida. Somos mesmo convencidos que uma mentira contada à exaustão se converte em verdade. Se, pelo caminho, fica um rasto colorido de desonestidade intelectual, há uns bombeiros de serviço que varrem os prejuízos. Atirando mais combustível para a fogueira dos enviesamentos.


Um dia destes, resplandeceram de esperança os olhos do grande líder (e, por arrastamento, do séquito): as últimas estatísticas anunciaram uma envergonhada recuperação da economia – uns míseros 0,3%, terá sido o aumento do PIB. Como estamos em vésperas de eleições, normal seria que quem se propõe a pedir a renovação do mandato quisesse demonstrar a bondade de quatro anos de governação. Com os amadores instalados no governo, o que conta é prometer um ror de coisas improváveis que adoçam a boca do eleitorado. Como se os últimos quatro anos não tivessem contado para nada. O que a trupe socialista pede é que se ponha a zero o conta-quilómetros parcial. A seita do PS dá o embalo necessário, a crer pelo que julgam ser o direito divino de se perpetuarem no governo.


O grande líder era contentamento pelos poros. Lavrou sua sentença: a crise está a terminar. Quis que lêssemos os dados estatísticos desta maneira: não fosse a magnífica política económica do governo e não seríamos dos poucos países europeus a registar um franzino crescimento económico. Errado estava o seu ministro das finanças. Ele dissera, há uns meses, quando a crise cavalgava todos os dias, que a política económica já se fazia pelas estrelas.


Só que não há coisas boas que sejam eternas. No dia seguinte o grande timoneiro acordou, todo contente, tão excelente primeiro-ministro se confirmava. Umas horas depois, outro dado estatístico, desta vez com um terrível sabor amargo: o desemprego continua a aumentar e trepou para lá da (na expressão de um sindicalista) "barreira mítica" dos quinhentos mil desempregados. Não há direito – terão exclamado o grande líder e demais corte. Nem vinte e quatro horas para se vangloriarem com o raquítico aumento do PIB e aterra uma péssima notícia. Tinham que preparar a retórica de expiação de culpa. Amadores como são, nem sequer foram ao baú da imaginação retorcida para iludir as gentes. Foi o primeiro argumento à mão de semear: o desemprego aumentou, mas aumentou menos do que nos outros países (acto número um); e aumentou por causa da tremenda crise internacional (acto número dois).


O amadorismo distorce o julgamento – ou o enviesamento é mostruário da indigência mental de quem o pratica. O número de desempregados já superou quinhentos mil? Pois, mas nos outros países europeus é ainda pior. O nosso mal é superado pelo mal ainda maior dos outros. Devíamos perguntar ao primeiro-ministro se também devemos festejar os números do desemprego. Depois, o grande líder sacudiu a água do capote: lamenta informar que o desemprego aumentou por motivos alheios à sua vontade. Foi a abominável crise que empurrou os números para além da tal "barreira mítica". A crise, a crise das costas largas.


Eis o enviesamento. Uma notícia boa é prova da excelente governação. Uma má notícia que se lhe segue é prova dos efeitos contagiosos da crise internacional, contra a qual nem um governo habilitado (o que não é caso) consegue remar. Tirando alguns que não comem tudo o que lhes tentam meter goela abaixo, a maralha ouve, come e cala, convencida. Que não me atraiçoe a memória: não foi bandeira eleitoral, há quatro anos, a promessa de "inventar" cento e cinquenta mil empregos? Então em que ficamos: a criação de emprego deve-se à política económica (assim virtuosa) e o desemprego deve-se à crise?

2 comentários:

Milu disse...

Além de escrever muito bem,tem um pensamento muito lúcido, por isso esperava mais de si. Talvez tenha as suas razões, que não serão as razões da grande maioria dos portugueses, seguramente. Quem deseja para o lugar de 1º ministro, afinal? Não me diga que no panorama nacional vê alternativa melhor! Só de pensar nas outras hipóteses só não me rio, porque o assunto é sério demais.É claro que reconheço as falhas de Sócrates, se todos falham... Mas aonde nos será permitido buscar a legitimidade para exigir iluminismos da parte de quem nos governa, se nós não estivermos imbuídos da vontade de contribuir para a construção de uma sociedade melhor, por isso mais justa? O que vejo, caro senhor, é cada um a viver a ansiedade de defender os seus próprios interesses, ainda que essa atitude possa redundar no prejuízo de uns tantos. Venha a mim e ao meu reino, é esta a lei!

PVM disse...

Quando alguém me assalta a inteligência, não consigo confiar nessa pessoa. Foi esta a razão deste texto.
Quem desejo para primeiro-ministro? Só sei quem não desejo: o actual inquilino. É a minha opinião (e por isso vale o que vale): este foi o pior primeiro-ministro desde 1974. Sobretudo pela indigência mental que carrega às costas.
Permita-me discordar da teoria do "mal menor". Não é por um mal ser menor que o aceito. Um mal é um mal. Não me interessa saber quem pode ser a alternativa. Só que o "quase engenheiro" não continue a ser primeiro-ministro. Se isso faz de mim votante do maior partido da oposição? Não. Para mim, existe uma impossibilidade genética de votar nos partidos do bloco central - esses gémeos falsos.
PVM