14.8.09

O encanto dos mercados tradicionais


Empenho-me em contrariar os laivos de conservadorismo que sobem pelas veias. E, todavia, sempre que vou a um mercado tradicional não resisto ao encantamento apoderado. Ao início, como de costume preocupado com a essência das coisas – e que delas não goteje uma saliva apodrecida pela incoerência – debato-me: é congruente a recusa do conservadorismo com a atracção por mercados tradicionais?


Atalho resposta, que pouco interessam os meandros da semiótica. Se fosse importante desemaranhar a congruência que me consome na espúria filosofia das coisas, diria que o detalhe está na semântica: os mercados são tradicionais porque se dizem tradicionais. E, por aí, incongruência nenhuma. Levada a dor de cabeça que me consumiria através da frágil superfície das coisas, tempo para a sua essência, na sua profunda espessura.


Confirmando que somos hostis à terra onde vivemos, o enamoramento pelos mercados tradicionais reforça a ideia. Por cá, passam longas temporadas sem que visite um dos mercados tradicionais. Quando vou de visita a lugares novos, uma das paragens exigíveis é um mercado tradicional. Se for no estrangeiro a visita é mais demorada, com atenção aos imensos detalhes que a vista puder capturar. Perco-me na idiossincrasia regional – desde a arquitectura do edifício, aos produtos expostos – reveladores das características dos solos e do clima –, à têmpera das gentes. Um mercado é uma enciclopédia viva do lugar visitado.


Eis uma afirmação que cativa olhar de soslaio pelas elites intelectuais: nos lugares em visitação demoro mais tempo nos mercados locais do que em museus. Pode a afirmação expor um tacanho alheamento da cultura, da cultura embebida na sua expressão mais nobre – todo um património genético ali exposto em museus, o historial de um povo ou de uma arte. Advogo em minha defesa: perder-me num mercado local que fervilha a intensidade das idiossincrasias locais não é um testemunho de cultura? Com uma diferença determinante: num mercado entra pelos olhos a identidade de um povo na sua forma presente. Não, como em museus, no seu enquistamento passado, como se de lá viessem até ao presente os traços de uma identidade que se foi formando. Mas de uma identidade que revela o anacronismo das suas formas e cores e palavras.


O que me encanta nos mercados locais é tangente ao paleio dos detractores do capitalismo (o que pode ser surpreendente para um liberal assumido). É um pulsar popular na voz dos vendedores, na informalidade que combina um pouco de caos com o ingrediente da organização que é genético a qualquer mercado. E depois há uma paleta viva, a policromia dos vegetais e dos frutos. Que agora, mercê da fobia organizadora dos regulamentos sanitários da União Europeia, obedecem a uma organização metódica, todos alinhados, retirando um pouco da caótica organização que era privilégio dos mercados tradicionais antes de terem sucumbido à intrusão dos burocratas europeus.


Nas bancas de peixe desfila a numerosa fauna em camas de gelo para retardar o perecimento da sua frescura. Aqui e ali, uns atentados à fobia controladora dos burocratas que se aliaram aos sacerdotes do ambientalismo: espécies ainda em estado juvenil oferecem-se às carteiras dos clientes. Há a azáfama das varinas, enquanto mercam com os clientes e se dividem a limpar escamas e tripas aos peixes que acabam de negociar. Por todos os recantos dos mercados há sempre espaço à negociação – o emblema do mercado enquanto instituição. Não há fórmulas rígidas. Imperam os arredondamentos que favorecem sempre o cliente (nesta altura, viriam os apologistas da diabolização do "capital" apregoar a ingenuidade dos clientes que acreditam que os arredondamentos os favorecem, destilando elaboradas teorias que provariam que isso não passa de uma ilusão).


De repente, no âmago deste enamoramento pelos mercados tradicionais, dou conta que a incongruência não é a que me assustara ao início. Eu, que tenho a mania da repugnância de tudo que soe a "popular", afinal tão encantado pelos mercados tradicionais. Onde o pulsar do "povo" atinge um frémito singular. Não me parece que seja enamoramento por uma manifestação popular. Só pela organização espontânea alcançada na montagem de um mercado tradicional.

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