9.10.09

Os génios descobrem-se durante as campanhas eleitorais


É o que eu digo: o que andei a perder, em eleições anteriores, por me fechar num casulo onde as notícias não entrassem. Acreditava que isso fazia bem à minha sanidade mental. Como estava equivocado! As campanhas eleitorais podem ser um interminável divertimento. Em ano de bebedeira de eleições, em que andámos quase metade do ano em campanha ou pré-campanha eleitoral, já começo a ter saudades do lado lúdico das campanhas eleitorais. E ainda estamos no último dia delas.

Anteontem, esse vulto da intelectualidade lusitana, o Professor Doutor Manuel Carvalho da Silva, foi apanhado com a boca na botija lá para os lados do Rossio. Que notável coincidência, foi aí que se encontrou "por acaso" com o candidato socialista à autarquia de Lisboa, que prosseguia a extenuante campanha eleitoral pelas ruas da cidade. Palavra puxa palavra, num ambiente muito cordial, ao terminar a bica o líder da central sindical comandada pelo PC desejou votos de vitória ao candidato socialista. Para gáudio da comunicação social, que aproveitou a deixa (ou a distracção verbal do intelectual ascensional), para abrir noticiários radiofónicos e televisivos com o episódio. Está-se mesmo a ver porquê: a imprensa especializou-se na arte de fazer sangue, ou de dar à audiência as notícias onde se vê muito sangue a jorrar.

Esta foi a sequência de acontecimentos que se precipitaram nas horas seguintes: Carvalho da Silva apanhou um valente puxão de orelhas do comité central do "partido" (dito com aquela entoação que os camaradas costumam empregar à palavra, com o "r" acentuado na partição entre a primeira e a segunda sílaba). O homem, coitado, não demorou nem duas horas a enviar um comunicado às redacções de jornais, rádios e televisões. Mandou dizer aos ofendidos camaradas  e a quem o quisesse ouvir que os votos de vitória endereçados ao candidato socialista não prejudicavam o seu apoio ao candidato do "partido".

A certa altura fiquei confuso, como se estivesse desorientado diante de uma encruzilhada. Isto de gente mediática dar uma no cravo e outra na ferradura é um hábito que se sedimentou com a mediocridade instalada. De repente, dei com a seguinte interrogação a pairar em cima da cabeça: será que o grande Manuel Carvalho da Silva (usando a expressão afamada pelo anterior presidente da república, uma "figura incontornável" da intelectualidade indígena) recebe dois boletins de voto quando vai votar? Só desse modo é que se entende que apoie dois candidatos à mesma eleição. Um caso patológico, a merecer estudo por politólogos e psiquiatras, este de esquizofrenia eleitoral.

No dia seguinte, como se não fosse suficiente o banzé que o desastrado Carvalho da Silva já tinha feito, atirou mais gasolina para a fogueira. Desafiado pelos teimosos jornalistas, que não perdem uma oportunidade para chafurdar na lama, admitiu que o desejo de sorte dedicado ao candidato socialista tinha sido feito na sua qualidade de cidadão. Lá está: temos muito a aprender com os vultos da intelectualidade. Vamos ver se todos percebemos a mensagem: enquanto cidadão, o Manuel gosta do Costa e quer que ele continue a ser o presidente da câmara de Lisboa; como líder da CGTP, o Carvalho da Silva (porventura o desdobramento de personalidade do Manuel) está ao lado do Rúben, o candidato que a férrea disciplina interna do "partido" manda apoiar.

O mal da gente simples é não conseguir alcançar o elevado raciocínio dos intelectuais. Por isso mantive a dúvida: no dia das eleições autárquicas, darão um voto ao Manuel e outro ao Carvalho da Silva? Assim como assim, os intelectuais (consagrados ou em ascensão) deviam ter direito a voto plural, tão distintas as suas qualidades exteriorizadas por um intelecto muito acima da média. Desenganei-me: isso contrariava a sagrada igualdade que intelectuais da gema do Carvalho da Silva propagam aos quatro ventos. Lá se ia a diáfana ideia do "voto universal".

Sobra a deliciosa dúvida: na intimidade da mesa de voto, onde ninguém – nem os camaradas – pode espreitar a sua mão trémula a escrever uma cruz no boletim de voto, qual o hemisfério que vingará? O Manuel, ou o Carvalho da Silva?

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