24.11.09

O leste que há em nós



Os estereótipos que se esbarram na nossa incredulidade. Porventura são os estreitos canais mentais por onde vagueia, distraído, o pensamento distraído, são esses canais que constroem os estereótipos. Depois, chega uma interrupção na distracção para entendermos o erro de perspectiva. É como se passássemos em revista uma imagem usando as lentes erradas. Que desfocam a imagem observada.

Há anos, entrei na Polónia de comboio vindo de Berlim. Ainda a Europa de leste era um infante na União Europeia: nem dez dias tinham passado desde a entrada de dez países de leste na União Europeia. A distância entre a cosmopolita e avançada Berlim e a fronteira onde começa a Polónia percorre-se de comboio em pouco mais de uma hora. Naquela altura, quando saí do comboio alemão e cruzei a fronteira, do outro lado estava outro mundo. Foi quando o pensamento distraído se entreteve nos estereótipos tão fáceis: a Europa muito atrasada neófita na União Europeia que, ufana, se olha ao umbigo como paradigma de desenvolvimento. As duas Europas artificialmente misturadas numa só?

De repente, muitas imagens retiradas de filmes de leste percorreram a tela desfiada diante da mente. As imagens de desleixo em que as coisas públicas caíram. A imensa sujidade pelas ruas, edifícios degradados, encardidos pela passagem do tempo e pelo descuido das gentes. Um testemunho da desesperança que encontrara residência naquelas terras. E pessoas envelhecidas; parecia que tinha ido desaguar a um lugar tomado pela velhice. Também os velhos eram gente encardida, as mãos imersas em sujidade, as unhas sem trato como armazém dos vestígios dos trabalhos duros a que se entregaram durante anos e anos sem fim (e ainda teriam essas incumbências, agora que aparentavam idade suficiente para estarem na reforma?). Olhavam-me de cima a baixo. Não me senti incomodado. Aquela reacção, que parecia desconfiada, entendia-a como apetite pela curiosidade. O único homem jovem que ali apareceu, uns minutos antes da partida do comboio para Gorzow Wielkopolski, tinha outro arejamento mental: meteu-se à conversa comigo, atalhando logo para o inglês. Foi ele que deu as indicações que mais ninguém soubera dar (ou que eu não soubera entender naquele atabalhoado esforço de linguagem gestual) sobre o pedaço final da viagem.

Os estereótipos continuavam, incessantes, a povoar a febril decomposição do imaginário de leste. O comboio decadente e lento. Desconfortável e imundo. Retive o cheio nauseabundo (e logo eu, já nessa altura em decaimento das propriedades olfactivas). Uma hora depois de ter entrado na Polónia, chegava a Gorzow Wielkopolski. Uma cidade pequena, mas alindada, verdejante. Ainda com muito lixo a esvoaçar pelas ruas, ainda com os mesmos rostos cerrados, os mais velhos com rugas profundas como se fossem sinais de um passado desperdiçado. Queria acreditar, por conveniência ideológica: desperdiçado o passado no absurdo totalitarismo comunista. Por causa do absurdo totalitarismo comunista.

Os mais jovens eram tão diferentes. Espíritos abertos, uma fervilhante vontade de conhecimento. Sobretudo do conhecimento dos vestígios que lhes trouxessem o contacto distante com sítios diferentes. Era tão estranho, porém, aquela plateia de estudantes sedenta de me ouvir falar, aqueles alunos que só pararam de fazer perguntas quando a responsável pela universidade anunciou com voz firme que tínhamos ultrapassado, e muito, o tempo previsto para a aula. Era estranho: sentia-me a pessoa que chegava da civilização, ou pelo menos a pessoa que vinha de um lugar que conhecia a prosperidade.

Hoje, à distância de cinco anos, quando estas recordações ecoaram, consegui combater o pensamento distraído que evoca estereótipos. Todas aquelas imagens da Polónia repetiam-se na cabeça. E logo outras, muito parecidas, se intercalavam: as da ruralidade impregnada que é o património genético da portugalidade profunda. Se fosse possível colocar as imagens lado a lado, como se faz em reportagens cuidadas, digo que se não notariam grandes diferenças entre aquele cheiro de Polónia encostada à rica Alemanha e o Portugal ruralmente profundo. Afinal, onde é o leste?

Cinco anos depois, a Polónia está quase a passar à nossa frente no ranking que hierarquiza os países da União Europeia pelo (falível) PIB. Afinal, onde é o leste? Será no leste que temos dentro de nós?

Sem comentários: