16.11.09

O paradoxo do jovem “ideólogo” do governo



Já não é segredo para ninguém: quando procuramos defender uma causa de que somos militantes seguidores, o discernimento coalha. Acontece com todos. Conseguimos ser imparciais quando desempenhamos o papel de árbitro numa querela em que um dos envolvidos nos é chegado? Manda o bom senso que se tenha o pudor de, no fundo, não julgar em causa própria – pois a defesa de honra é de alguém que nos é chegado.

Pedro Adão e Silva é, ao que consta, a rising star do momento no PS. Uma espécie de ideólogo. Fica discretamente nos bastidores a dar a táctica. Em seu abono, a reputação académica. Mas é um pau de dois bicos: quando um académico se serve da suposta credibilidade intelectual para emprestar autoridade às posições que assume em defesa do partido em que gravita. Eu julgava que isto era exclusivo do partido da extrema-esquerda chique, onde gente com grande autoridade universitária ocupa lugares de destaque. O PS sentiu a necessidade de copiar a ideia. Com uma nuance, porém: depois do tremendo erro de casting do cabeça de lista para as eleições europeias, a gente com reputação académica fica na sombra. Estes intelectuais são sempre necessários. Caucionam a autoridade intelectual da táctica seguida. E são a compensação da gente que (só) tem perfil político.

Acho enternecedor que Adão e Silva, naquele seu jeito muito suave de contar verdades lapidares, de mansinho exculpe o chefe de mais um escândalo em que se vê metido. Concordo em muito com a frase que serve de mote para este texto: lamentável que a investigação policial abuse de escutas telefónicas, muito lamentável que haja fugas de informação dos tribunais para a imprensa. Todavia, não lhe fica bem o papel de virgem ofendida porque o adorado chefe anda aflito com a insidiosa cabala. Eu gostava que Adão e Silva se tivesse insurgido contra o exagero de escutas telefónicas e contra a intimidade entre tribunais e a imprensa noutras circunstâncias. Fazê-lo agora e neste assunto soa-me a desculpa de mau pagador, a um oportunismo que não condiz com a aura intelectual do jovem ideólogo do PS.

Depois vem a pérola maior: a ideia de "espionagem política". Foi no dia anterior que o zarolho ministro da economia disse, em entrevista radiofónica, que o primeiro-ministro estava a ser vítima de espionagem política. Como a prédica de Adão e Silva foi publicada no sábado, deve ter sido escrita (pelo menos) na sexta-feira. Justamente no dia em que o ministro inventou a fantasiosa "espionagem política". Quando li que o ministro tinha dito isto, admiti que ele tivesse passado da conta no vinho ao almoço, ou que apenas estivesse a exibir a sua indigência mental. Agora desconfio que a ideia lhe terá sido sussurrada pelo jovem ideólogo, que tinha acabado de descobrir o conceito (e de acreditar nele, o que é ainda pior) ao acabar de redigir o texto que seria publicado no dia seguinte. E a procissão continua, impávida e serena, enquanto os cães ladram estas aleivosias. Daqui uma sugestão: decretar por lei a intocabilidade do PS (ou acabar de vez com a independência dos tribunais).

O desespero retira discernimento. É tanta a urgência em limpar a imagem do chefe – o que dizer quando o ministério público encontrou "indícios da prática de um crime de atentado ao Estado de Direito"? – que se alinhavam argumentos em negação do próprio catecismo ideológico. Julgando que joga no tabuleiro da coacção psicológica como um mestre de xadrez, Adão e Silva adverte que "deitámos fora princípios sacrossantos para uma vida em comum numa sociedade decente: o direito à privacidade e a importância das garantias consagradas no processo penal, designadamente a presunção de inocência". E agita com o fantasma do "recuo civilizacional". É pena que a mesma pessoa aceite a intrusão na privacidade e a inversão do ónus de prova quando o Estado se transforma num agente de terrorismo fiscal. Como aí o querido líder não é beliscado, já não se trata de um recuo civilizacional.

O surf tem destas coisas: a muita água do mar que entra pelos ouvidos, terá o condão de alterar o discernimento?

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