18.12.09

Pruridos de linguagem (ou a obscenidade do palavrão)



Punhos de renda. À mesa, onde se sentam as pessoas muito bem comportadas. Não dizem palavrões. Para as donzelas ingénuas não ruborizarem. E para não incomodar os rapazes de província que raras vezes saem da sua torre de marfim. Nem os mais velhinhos, que não podem escutar palavras feias, palavras malditas que estão escondidas no armário para arremessar a familiares no segredo do lar, ou para serem ditas na tasca enquanto sorvem uns copos de três de verde tinto e jogam à sueca.

É disto que eu mais adoro: hipocrisia. Ai de quem solte indecências em público, que as orelhas dos ouvintes podem ficar derretidas pela inconveniência. Podemos proferir essas palavras sem freio na intimidade da família ou na convivência com os amigos. A linguagem escorreita, muito asséptica, não se compadece com palavras indecorosas. E agora que a utilização destas palavras já subiu à estratosfera, eduquem-se os mais novos censurando obscenidades ditas pelas bocas destravadas de artistas rebeldes. Faz todo o sentido: como sabemos, os adolescentes deixarão de entoar constantemente "fuck", "mother fucker", "shit" e quejandos se deixarem de as ouvir na televisão. Há quem acredite no pai natal, ou que os bebés são trazidos por cegonhas que descolam de Paris.

A BBC, ainda muito vitoriana nos costumes, põe a mordaça nos artistas que escorregam para o chinelo. Quem põe a mordaça, lá nos estúdios – podemos apostar com a convicção de não perdermos o dinheiro – nunca, nunca na vida, disse "fuck". Ponto da situação: eles podem soletrar a palavra até à exaustão porque o fazem em privado; quem ouse pronunciar a palavra obscena em público arrisca-se a ter um açaime sob a forma de indiscreto silenciamento.

Os idosos (não se pode dizer velhinhos para Helena Matos não acusar de discriminação social) têm o direito de se manifestar ruidosamente contra as sucessivas grosserias de linguagem que emprenhavam os ouvidos naquela peça de teatro? Os velhinhos (perdão, os idosos) são incapazes de escorregar para a obscenidade semântica, como sabemos. Santa boca, imaculadamente virgem de palavrões tão feios. Ah, já entendi, no teatro – como em muitas ocasiões ditas solenes, onde a responsabilidade deve imperar – não se dizem palavrões. Ninguém obriga os idosos de curtas vistas culturais a saberem que há páginas e páginas de literatura, de poesia, carregadas de linguagem indecente, sem que deixem de ser arte.

Helena Matos pôs os óculos errados ao sugerir que os velhinhos se limitaram a ser partes intervenientes (através da pateada) na peça de teatro. O mal não é o da "intervenção indevida" do público amotinado. O mal é de alguém que não tem sensibilidade para entender que as artes têm diferentes manifestações (incluindo o calão na linguagem), ou de alguém que ficou com a sensibilidade ferida (hipocritamente ferida) e se esqueceu de ser educado. Helena Matos está enganada: malcriados não são os actores que ilustraram a peça com profusão de palavreado indecente; malcriado foi o público idoso ali levado pelo INATEL que, talvez por ser tão boçal, tão cavalar, pateou a peça. A mim ensinaram-me que quando não gosto do que vejo, dou corda às pernas em direcção da porta da saída. Em silêncio.

Quando a Helena Matos assobia o seu vetusto conservadorismo, que às vezes a leva a olhar as coisas com a miopia própria das conveniências, sinto uma pulsão para abjurar as muitas costelas de direita. E para me convencer que esta direita tacanha, conservadora, é o melhor elixir para a existência das esquerdas. De resto, só me apetece dizer isto: que se fodam todos os moralistas da linguagem muito decente.

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