30.10.09

Outra vez, beautiful people



Desafinado do modismo da publicidade continuo: é só gente bonita, como se houvesse um laboratório dos padrões de beleza que fogem da média da pessoa comum. Convenço-me que os publicitários estão convencidos que a beleza vende mercadorias. Talvez seja essa a explicação para que na publicidade desfile gente tão bela e só gente que arvora a beleza rara. Das duas, uma: ou andamos todos enganados quando líricos ensinam que é a beleza interior que conta; ou a publicidade é um mostruário ideal que só existe nas fantasias de muita gente que gostava de ter sido agraciada com uns pós de beleza.

Da beleza física diz-se que nos entra pelos olhos. E também se diz que a apreciação da beleza pertence ao subjectivo. Não digo que seja possível franzir o sobrolho às pessoas bonitas; elas não causam indiferença, deixam um rasto que se incendeia com a pulcritude que passeiam. A fealdade, quando é um emblema, deixa-nos atónitos. Aliás, a dicotomia belo-feio é expressiva da propensão inata para desviar o olhar para o que o fere (quando o racional seria que os olhos se desviassem do que os fere). Aos que se julgam feios, a fealdade dos outros é oportuna. No altar da relativização dos olhares, há quem ostente feiura maior. Nessa altura, até os menos feios irrompem com a sua beleza discreta.

As imagens da beautiful people tão esplendorosa, tão sorridente, numa suave insinuação da vida cheia de uma invejável leveza, são imagens aterradoras para quem não é insensível à beleza. Porque não há tanta fecundidade de beleza por metro quadrado. Andamos nas ruas e os olhos não vão vendados. Se algum retrato fidedigno é tirado, não é através da miragem da publicidade. É quando passam imagens mentais de alguma filmografia italiana – Visconti, Fellini, Pasolini, Antonioni. Filmes pontuados por uma impressionante carga de realismo. As pessoas vêm carregadas de feiura. Mostram uma rudeza rural. Mesmo quando os filmes são passados na cidade, onde se acreditaria que o civismo desse lugar à cortesia no trato. Aliás, os modos rudes, a antipatia com que o estranho é recebido, os rostos fechados em ausentes sorrisos, esfíngicos nos silêncios que se demoram na tela – tudo agrava a lavoura de fealdade desses filmes. Dir-se-ia que as pessoas se tornam mais feias pela repulsa das personagens que encarnam.

Há tempos andava distraído pelos canais da televisão quando parei, por instantes, num desses programas que, acreditam alguns, transporta a essência da democracia: uma espécie de reality show em que gente feia, mal amanhada e disforme sofre uma reciclagem aturada. Aquela gente tão sequiosa de contemplar alguma beleza no espelho quando nele se fita era transformada, pela intervenção de dedicados especialistas de coisa vã, em sereias apetitosas. Operavam-se verdadeiros milagres, se bem percebi a patranha e se não havia exageros nas fotografias dos candidatos ao belo quando ainda pastoreavam nos desagradáveis caminhos do feio. Dei comigo a pensar que seria mais fácil a alguém tornar-se numa desprezável, andrajosa figura. O desmazelo, o fermento da transformação. Seria atingida em menos tempo do necessário para operar o milagre da metamorfose de um feio num belo. Ah, como apetece resvalar para a feiura, quando por todo o lado o mediatismo totalitário nos encharca com aquela gente repleta de uma beleza imaculada, de uma beleza que soa a artificial. O mal é que o costume se enraizou e se cultiva a beleza que se inveja nos que se alçaram ao mais elevado altar da pulcritude merecedora de holofotes. Quando se desperta da anestesia, sobra a ingrata sensação de um espelho que não mente.

Para que interessa a beleza e a fealdade? Quando a primeira passa, enjoativamente, em anúncios de publicidade que salpicam a vida ilusória com um glamour digno dos cânones da sedução, apetece consagrar a fealdade. Em homenagem à gente comum que passa em esmagador contingente enquanto calcorreamos as ruas da cidade. Um desafio aos especialistas da publicidade: e se servissem apenas gente feia num anúncio publicitário, ressentiam-se as vendas da mercadoria? Se esse fosse o caso, capitulava, enfim: no imaginário, ambicionamos a beleza. A beleza como é retratada na publicidade. Essa é a beleza que, nem que seja pela inércia, deificamos. A mim quero chamar a beleza da feiura.

29.10.09

Teen spirit



A maturidade traz-nos distanciamento das desbarbadas manifestações da juventude. Olhamo-las com desdém – e um pouco de reprimida inveja, que se admita. A propensão para o diálogo de surdos entre as gerações é congénita. É como se, com o tempo que sedimenta a madura idade, as memórias pessoais se varressem. Só para podermos desprezar do que julgamos ser a imbecilidade dos mais novos.

Talvez seja um truque para o convencimento de que não nos calhou em sorte sermos imbecis na tenra idade. Alguns admitem que tiveram os seus devaneios adolescentes. Logo a seguir rectificam os temperos: as parvoíces de agora parecem-se pueris com as que tivemos quando foi a nossa adolescência. As gerações que chegam à idade em que todas as loucuras são auto-permitidas merecem a reprovação dos que por lá andaram. É por isso que eu digo que uma pitada de inveja não se apaga do diagnóstico impiedoso dos mais velhos.

Por mais absurdos que sejam os modismos, por mais insuportáveis que sejam certos actos juvenis, não os considero assim. Entretenho-me a apreciar a volatilidade das modas. E a criatividade das gerações que andam pela adolescência, só para perceber o rasgo inventivo que delas se apodera quando nos mostram uma particular dose de loucura juvenil. O que me aborrece é a sobranceria dos mais velhos quando apoucam os adolescentes empenhados na imbecilidade.

A loucura que toma conta da madura idade é a inércia, a acomodação, a verberação dos actos dos imberbes que nos soam a disparate pegado, as cólicas mentais quando os mais novos desfilam embebidos em patetice (ou pelo que julgamos serem patéticas figuras). Quando isso acontece, começou a curva descendente. Ela até pode ter desembainhado o seu lugar; o que não consigo admitir é que o seu declive seja mais acentuado porque nos prestamos à modorra. Um sinal visível deste diagnóstico é aquela expressão que mistura reprovação com comiseração quando nos passam à frente dos olhos adolescentes em – julgamos – "tristes figuras". Aconselho o seguinte (para impedir que a curva descendente empine perigosamente): quando soar a tentação de flagelar os ensandecidos adolescentes, reprima-se a vontade; puxemos, então, pela memória. Só para compulsar episódios em que a nossa adolescência regurgitou o que hoje julgaríamos ser impossível fazer ou dizer.

Quem não fez asneiras impensadas, tão próprias da ligeireza típica da adolescente idade? Não trouxeram divertimento? O divertimento cerceia o amadurecimento? Esse terrível amadurecimento que os anos imparáveis trazem e, ele sim, indispõe para a diversão. Ainda hoje não consigo reprimir uma gargalhada quando recordo o que fizemos, metidos na vara da adolescência, naquele dia em que assomou a frustração porque a bola com que jogávamos foi para a estrada e rebentou atropelada por um carro. A saudável frustração deu-nos para meter um paralelepípedo dentro da bola. Simulámos que alguém tinha acabado de a chutar para bem longe, junto da paragem do autocarro. À espera da primeira vítima que saísse do autocarro e quisesse ser simpático, devolvendo a bola. Azar nosso: foi um dos velhotes vizinhos mais simpáticos que por lá havia. Ficámos sem voz quando o vimos, entusiasmado, a ganhar lanço para pontapear a bola. Já só tivemos tempo de ouvir o grito de dor. E de fugir depressa. O homem só ficou com um hematoma no pé. Uns dias depois já nem se lembrava da tropelia que não era para ele mas que o vitimou. E nós? Rimo-nos como loucos.

A melhor travessura de que me recordo via-a num filme italiano da década de setenta. Uma maldade tipicamente juvenil, mas praticada por um grupo de amigos já entrados na madura idade. Iam para a estação de comboio, à espera que a composição partisse do cais. Só para esbofetearem os passageiros que, saudosos pela partida do comboio, espreitavam pela janela enquanto o comboio abalava.

É desta adolescência mergulhada na madura idade que precisamos.

28.10.09

O estranho caso do padre septuagenário que guardava um arsenal dentro da igreja



Numa terrinha perdida no remoto Trás-os-Montes (Covas do Barroso) havia de tudo no refúgio da igreja. Desde artilharia pesada a explosivos. Uma quadrilha foi "desmontada" por uma competente brigada policial. O padre foi ouvido pelo tribunal. À saída, soube-se que vai esperar pelo julgamento em liberdade. Não me parece que esta justiça seja justa: e se em vez do padre fosse uma pessoa comum a dar guarida ao fartote de armas, em sua casa ou num esconderijo, ficaria solta até ao julgamento? Esperemos pelo comentário de Saramago.

As notícias sobre o curioso episódio são omissas quanto à serventia das armas – já lá vamos, que tenho uma teoria. Da maneira como andam as relações entre o Nobel da literatura e a igreja católica, não ficava surpreendido se alguns ratos de sacristia andassem entretidos a organizar milícias para tirar a tosse ao escritor. Para que se aprenda, de uma vez por todas, que ninguém brinca nem muito menos ofende a santa igreja. O pároco septuagenário, com idade para não andar a brincar aos salteadores da arca perdida, pertencia a uma milícia destas?

Já ouvi católicos (tão assoberbados pela virulenta campanha de Saramago contra a bíblia e deus), do alto da sua oportuna ingenuidade, a darem por assente a inocência do sacerdote. Dizem: é lá possível um septuagenário andar metido nestas andanças. Reforçam a convicção: um padre é comandado pelos mandamentos bíblicos. "Não matarás", é um dos mandamentos sagrados que os sacerdotes ensinam aos crentes; é ilógico que um servo de deus faça o contrário do que anda a pregar? Só pode ser uma cilada, um qualquer inimigo do padre que colocou as armas na igreja para o incriminar. Só pode ser, repetem os crentes incrédulos.

Outro ângulo da teoria (agora pela lente dos crentes incrédulos): se calhar, aquelas armas eram apenas para ir caçar javalis. São bichos coriáceos. Uma vez feridos, ficam possuídos por uma fúria letal. Que o padre tivesse artilharia pesada tem lógica: o javali atingido não só fica morto à primeira (e, portanto, não anda por aí a espalhar sustos nos bravos caçadores) como se dispensa a cansativa tarefa do esquartejamento do bácoro gigantesco. Só não percebo para que servem os explosivos. Não seria para limpar o sebo a Saramago?

Compreende-se a incredulidade dos católicos. Primeiro, a solidariedade corporativa (ou, em rigor, solidariedade de fé) impede de crucificar o padre sem provas inequívocas da culpa do homem. Sim, já sabemos que até prova em contrário não há culpados de crimes. E também sabemos que as provas têm que ser levadas a tribunal. Mas não se desorientem, ó católicos: não vale fazer generalizações, pois elas são sempre perigosas quando tropeçamos nas suas excepções. De que serve apontar as credenciais de um padre como porta-voz da palavra divina, se um padre é tão homem como qualquer um de nós?

Já que vão por aí, duas perguntas para contrariar a oportunista generalização em abono do homem da sotaina. Primeira: não há, pelo menos no mercado dos rumores populares, numerosas histórias de padres que vão espalhando a sua prole? E não há, lá para a América Latina, onde o esplendor da "teologia da libertação" viu a luz do dia, sacerdotes que dizem missa com imagens de guerrilheiros marxistas empunhando armas em pano de fundo, as armas que serão instrumentos da justiça poética que faz a improvável síntese entre Marx e Cristo?

Agora percebo as convulsões de Saramago com o cristianismo. Ainda não teve força para dizer ao que vem: padres desta terra, olhem para o exemplo da América Latina onde se prega a bondosa e, sem dúvida, pacífica teologia da libertação. Será o tal deus bondoso que povoa o imaginário do falso ateu Saramago? Já percebi: o deus da bíblia é maldoso porque recusa a violência; o deus pregado pelos teólogos da libertação é que é bondoso pois pega em armas para defender os desvalidos. A violência é boa se for divina e se vier tingida por uma causa – como dizê-lo? – "justa".

Será o padre de Covas do Barroso um discípulo de Leonardo Boff? Não sei se é apenas coincidência, mas o nome de família do padre é Guerra.

27.10.09

Deus é mau (versão Saramago), ou deus nem sequer existe (versão do ateu)?



Tinha jurado que não escrevia uma palavra sobre esta polémica abstrusa. Mas ao ver a recrudescência das hostilidades entre o escritor e os que do lado cristão ficaram ofendidos, não tive como reprimir as palavras que iam e vinham na minha cabeça. Parto desta interrogação: se um ateu é ateu, como pode garantir que deus é uma malévola entidade? Não se trata da negação do principal enunciado de um ateu?

Já muitos iluminados descobriram que o azedume de Saramago não será genuíno. É um azedume oportuno agora que o escritor publicou um novo livro. Dizem os iluminados, lambendo os beiços de satisfação, tal como se tivessem alambazado uma iguaria rara: o comunista que tanto se insurge contra o capitalismo, agora rendido às maravilhas e, sobretudo, às grotescas técnicas de publicidade barata que são apanágio do odioso capitalismo. Não contesto os iluminados, mas já há muitos anos que aprendi a conviver com comunistas que mantêm uma relação afectuosa, diria incestuosa, com o vil metal. Conheço alguns que amaldiçoam o capitalismo mas exibem sinais de riqueza que não coincidem com as inflamadas prédicas que o renegam.

Por falar em prédicas, as de Saramago contra a bíblia, o cristianismo e os cristãos que insistam numa leitura bondosa da bíblia são rançosas. Os assuntos mal resolvidos entre o escritor e o cristianismo não são novidade. Ressurgem à superfície quando um novo livro entra no mercado editorial. Só consigo encontrar duas explicações para a maneira assanhada como Saramago se atira aos cristãos e a deus: ou se trata apenas de uma manhosa estratégia de marketing para atrair os incréus ao livro, ou é uma camisa de sete varas que aprisiona o escritor num passado mal resolvido com a igreja.

No primeiro caso, é um lamentável equívoco de Saramago e da editora: mau sinal se precisam de detonar uma polémica parasita só para atirar as vendas para a estratosfera. Pode-se inferir que a editora e o escritor não estavam convencidos da qualidade da obra e suspeitavam que ela podia ser um fracasso? Ora, pensava que qualquer coisa que fosse escrita por Saramago tinha à partida a chancela da qualidade, independentemente de se olhar de forma descomprometida para o conteúdo da obra. Consta que a editora e Saramago não acreditaram nesse predicado mágico das obras com a assinatura de quem foi Nobel da literatura.

Levanta-se a segunda hipótese – assuntos mal resolvidos com a religião – e entramos no terreno da metafísica, um terreno minado. É aqui que um ateu se sente incomodado com a abordagem desastrada de Saramago. Interessa debater deus, se para um ateu deus não existe? Quando li que Saramago notificou más recomendações sobre deus, compreendi que afinal não é ateu; está decepcionado com deus, gostaria que deus fosse diferente (provavelmente, comunista). Este é o desconforto para o ateu: é uma discussão inútil em que um ateu dá trunfos aos crentes. Daqui não hesito em o afirmar: mau grado a posição intelectual que estimula a discussão aberta com quem tenha ideias diferentes, o terreno da metafísica é um lodaçal onde os ateus se afogam sem indulgência. Por acaso, os cristãos (com os católicos à cabeça) reagiram de forma desabrida. A histeria tornou-os algozes do trunfo que Saramago tinha oferecido em bandeja de ouro.

O que sobra desta polémica insignificante (para além de outro best seller no currículo do escritor)? Isto: ateus fundamentalistas do anti-clericalismo e crentes de deus sem capacidade de encaixe para a crítica merecem-se uns aos outros.

Afinal caí na ratoeira. Ou quase: não embarquei na manobra de marketing do escritor e da editora, pois o estilo não cativa. Não serei daqueles que se atiram furiosamente ao novo livro sem o ter lido, mas não darei o meu contributo para os fartos réditos de Saramago. Todavia, fui apanhado numa tempestade que queria evitar: afinal, se a polémica era abstrusa, de uma inutilidade circundante, por que motivo acabei por escrever sobre ela? Talvez para terminar com esta sedição contra os falsos ateus: para um ateu, deus não existe. Não é nem mau nem bom, não tem características. Não existe.

26.10.09

New Order, "Dreams Never End"

Os sonhos nunca acabam

De uma folha em branco começam. São os seus próprios arquitectos, só com umas pinceladas de realidade a servir de mote. Tecem-se em sua total autonomia. Tomam de assalto o sono. Somos conduzidos pela sua mão, como passageiros de um avião na impotência de alterar o rumo que o voo leva. Sonos que se deitam no proveito de sonhos bons. E sonos tumultuosos, absorvidos por pesadelos que sobressaltam. Talvez os especialistas que estudam os labirintos em que se tece a mente hajam encontrado explicações para os sonhos. Como desconfio da proficiência de quem decifra os sinais enviados pela complexa mente dos outros, o onírico faz rima com insondável.

Os peritos que dissecam a mente terão forma de explicar por que sonhamos com isto ou aquilo. Há sonhos óbvios: pessoas que fazem parte do passado, pessoas que coabitam com o presente, acontecimentos marcantes, outros sem significado mas que povoam o subconsciente, temores que caldeiam acontecimentos que terão impressão digital em dias vindouros. Mas há sonhos impensáveis. Improváveis conjugações de pessoas e de cenários, palavras que jamais se julgara poderem ser proferidas. É nos sonhos que a dimensão surreal ganha espessura. Até que os olhos se abrem e o sonho insólito se evapora diante da forquilha do que tem autenticidade. Aos sonhos que têm contacto com a existência, os peritos asseguram tratar-se da mente em fervilhante actividade, mesmo quando o corpo repousa no sono. Mas o que dirão dos sonhos improváveis, esquadrinhados pelo seu paroxismo?

Pouco me importam as deambulações dos que curam da intensa, vulcânica actividade cerebral. Prefiro consagrar a fonte inesgotável que os sonhos são. Não dos que retomam pessoas conhecidas ou páginas da existência onde a poeira do passado já assentou. É nos sonhos inverosímeis que reside a copiosa fonte criativa. Mesmo quando dormimos, a mente continua acordada. Febril na sua actividade imaginativa. Conseguimos ser dois hemisférios separados: cabeça e corpo. O corpo dominado pela mente.

Os sonhos incandescentes, os sonhos paradoxais, são de uma incerteza atroz. Tanto podemos tê-los agradáveis, como acordar embebidos em suor pelo desassossego de um pesadelo pavoroso. Não digo que os sonhos, bons ou maus, tenham que comandar o dia que se segue. Mas quem nunca teve um dia adulterado depois de uma noite assaltada por um pesadelo que merecia entrar para o manual de estilo do surrealismo? Porém, na noite que se segue, quando a cabeça repousa na almofada à espera da caução do sono, a letargia confunde-se ainda com uma interrogação que aterra com o sono que chega: como serão os sonhos da noite que vem?

Os sonhos são a impressão digital da nossa esquizofrenia. Quando semeiam a improbabilidade dos cenários, das pessoas, das palavras que se montam como se tratasse de uma ficção do autêntico. Há neles um desdobramento de nós e das nossas circunstâncias. Ora somos actores em réplica do que já se passou, revisitando os acontecimentos de outrora registados na sua intensidade; ora nos trazem à condição de actores em interpretação de um papel numa existência desconhecida, com pessoas estranhas, na improbabilidade de actos e palavras. Nesses insólitos sonhos, assistimos de fora ao desempenho enquanto actores do sonho. Num jogo de espelhos que se amplia pela lente desfocada do sonho que vai consumindo a noite.

Regresso aos peritos, aos que souberam descobrir que nem sempre resguardamos a memória dos sonhos. Se estiverem certos na sua ciência, há sonhos incógnitos. Aqueles que não derrotaram uma qualquer barreira mental. Como se não tivessem conseguido emergir à superfície, sempre imersos nas águas profundas onde a escuridão impede de os resgatar. Não dizem os peritos qual a frequência dos sonhos imperceptíveis. Esclarecem que é impossível fixar uma regra, pois somos muito diferentes na auscultação onírica.

Do que é possível lembrar dos sonhos que romperam a barreira mental que arremete em sua asfixia, deles sobra uma matéria inesgotável. São a grande musa inspiradora, ou um fantasma aterrador que amedronta o sono. Agridoces, na sua matéria contemplativa que ora impõe um desanuviado dia por diante, ora instala um aspecto carrancudo quando um pesadelo se queria evitável.

23.10.09

Maradona para "tento na língua"

Tento na língua?

O treinador da equipa argentina, Maradona, dirigiu umas palavras consideradas ultrajantes aos jornalistas no fim de um jogo de futebol: "que la chupen, que la chupen toda". Estava revoltado porque os jornalistas tinham sido impiedosos quando a equipa perdera uns jogos. Agora, os senhores que governam o futebol querem punir Maradona com severidade por ter sido desbocado, rude, mal-educado. Por acaso discordo: o homem pediu desculpa às senhoras que estavam presentes e orientou o convite para os varões.

Fiquei apreensivo com Maradona. A menos que tenha entendido mal o repto aos jornalistas, tenho a impressão que não se estava a referir a sorvetes. Ora – e aqui vai o meu incómodo – o treinador argentino só incluiu os jornalistas machos no exercício de degustação. Homossexualidade reprimida? Logo de um dos maiores astros de sempre da bola, que também deixou atrás de si um rasto de conquistas femininas? Já nem menciono a oclusão mental dos jornalistas a quem as palavras iradas de Maradona se dirigiam: calados, estavam ali em cachos e só lhes faltava empunhar a bandeira multi-colorida da comunidade gay. Que se saiba, não houve um único jornalista que viesse defender a honra (e a masculinidade, por sinal) ofendida. Podem não ter chupado nada, mas comeram e calaram.

Os engravatados que mandam no futebol querem mão pesada por causa do desbragamento verbal da celebridade argentina. De tudo isto, uma pergunta atirada ao calhas: faz bem a este mundo teimar em ser um lugar repleto de cenários engalanados pelo "faz-de-conta"? Dir-me-ão: há palavras que se dizem na intimidade de um grupo de amigos, jamais em público. Contraponho: por que somos educados no tento na língua se, escondidos pelo invólucro do à-vontade, nos é permitida a incontinência verbal? Admito a verberação dos institucionalistas do costume: de cabeça a acenar em tom de reprovação, dizendo que a socialização das pessoas – ah, a bendita socialização – nos obriga ao decoro.

Desconfio que um dia destes ainda inventam uma polícia de costumes para patrulhar o que dizemos na intimidade. Microfones semeados pelos compartimentos todos da casa e um chip subcutâneo que faculta aos zeladores um registo integral de todas as palavras que se nos soltarem da boca. Só por precaução, só para não treinarmos o hábito de sermos desbocados. Como caução de que não proferimos palavras malditas, palavras inconvenientes, palavras brejeiras quando uma numerosa audiência estiver de olhos e ouvidos em nós. 

Regresso ao futebol: os aprendizes de tiranetes que ensaiam carreira política no dirigismo do futebol ainda não se lembraram de passar a pente fino o que sai da boca dos intérpretes do jogo enquanto ele decorre. Nem era preciso instalar potentes microfones: chegavam os peritos que conseguem ler nos lábios. As grosserias e obscenidades ditas por jogadores e treinadores enquanto estão imersos na emoção do jogo são tão frequentes que, pela bitola da possível condenação a Maradona, os "pecadores" que enxameiam a boca com palavrões que não se recomendam às criancinhas também deviam levar punições pela medida grande.

Isto tudo é tão patético que – li algures – uma mente iluminada entre os aprumadinhos dirigentes chegou a propor a retirada do troféu de melhor jogador do mundo que Maradona embolsou nos seus tempos áureos. Tenho a impressão que Maradona fez um convite antes do tempo e não se devia dirigir só aos jornalistas que lhe andaram a morder nos calcanhares: saberia lá ele que o convite para a degustação fálica cairia que nem uma luva nas virgens pudicas que dirigem o futebol mundial? 

O episódio sugere um fluxo voraz de sensações. Imagino a desfeita sentida pelos marialvas das Pampas, aqueles que consagraram a arte da sedução feminina pelo passo doble do tango: aquilo que Maradona estava disposto a dar aos seus queridos inimigos jornalistas não é coisa que um homem, um homem valente e conquistador de damas, queira fazer com outro homem. É por isso que estranho a passividade do lobby gay, que silenciou um excitado aplauso ao treinador da Argentina. E, de caminho, também estranho o mutismo das feministas frígidas, que perderam uma oportunidade para denunciar a bestialidade do macho alfa que confunde sexo com humilhação.

Maradona, continuas a dar cartas e já não tens uma bola nos pés!

22.10.09

O (não) exemplo



Há quem viva para isto: ser tutor de uma longa fila de gente que se diz sua admiradora. São os que escutam elogios como se fossem música entoada por celestiais violinos. Como se andassem demoradamente com um olho em cada vidraça onde a sua imagem se espelha, só para se enlevarem com a silhueta, a silhueta que seja, reproduzida pela vidraça. Aduzem a sua fúlgida existência para se convencerem que são arquétipos para um numeroso exército de admiradores. Assim como assim, até foram os outros que construíram toda a aura que a agora narcísica personagem ostenta.

Alardeiam superioridade moral (e nem aceitam que a expressão venha antecedida por um prudente vocábulo: "suposta"). Exalam moral por todos os poros. Ensinam-na aos tresmalhados e aos hesitantes que reparam no seu maravilhoso exemplo. Desdenham dos que não aceitam a objectividade da moral; atiram-se furiosamente aos que recusam qualquer ensaio de moralidade que se imponha do exterior ao interior de cada indivíduo; acusam de insanidade os que desmentem a existência de moralidade. Como exemplos a seguir, sentam-se num trono inacessível ao comum dos mortais, o trono de onde julgam os outros. O seu insaciável trono. Fazem-se soberanos mercê da contemplação que um séquito lhes dedica.

Que inveja desta gente tão certinha, tão cheia de virtudes. E tão carente de lhaneza da humanidade que se inquieta com as incapacidades em que tropeça vezes e vezes. Invejo-os, pois cultivam a vidinha com uma impressionante perfeição e ainda sobra tempo para terem a generosidade de dar palpites sobre os desgraçados que andam tão arredios da imaculada têmpera com que adejam sobre os demais. É por mim que falo ao destapar esta inveja dos profícuos fazedores de almas perfeitas: do tempo que há, não sobeja fracção visível para descobrir os elixires ambicionados, quanto mais para abraçar o fútil sentenciar dos passos que os outros deram.

Às vezes, de maneira tímida, este estigma pousa à minha porta. Detesto que o façam. Incomoda-me, profundamente. Não se trata de falsas modéstias. Do que se trata é de repugnar a ideia de que alguém possa ser um exemplo na vida de outros. Era como se fosse possível, por artes de magia, replicar os predicados pessoais de um suposto herói nos seus seguidores. Da parte destes, uma tremenda indignidade que em si impõem. A confissão das pessoais fragilidades – o que não causa objecção a quem se lembre do que é ser-se humano – é o pretexto para soltar o doloroso anzol na íris da auto-estima: só há terapêutica se os olhos filtrarem um exemplo, um exemplo qualquer que ao som da ventania que sopra o destino pousou, aleatório, no regaço de um desgraçado qualquer.

Os supostos arquétipos têm os seus fantasmas escondidos em armários que, por sua vez, estão diligentemente escondidos da curiosidade pública. Não vá dar-se o caso de segredos inconfessáveis treparem à superfície, manchando o que outrora fora o imaculado paramento a cobrir o indivíduo dantes endeusado. Com outra agravante: a depressão colectiva a que seriam levados os outrora admiradores, por extinção da referência que marcava o compasso da sua própria existência.

Quem não tem um lado escuro, um recanto de que se envergonharia caso deixasse de estar resguardado no baú dos segredos íntimos? Os arquétipos que se colocam no pedestal decerto soltam como resposta contundente "não, não no meu caso". Já vi deuses com pés de barro a esbotenar, o passo inicial para a decadência que só terminava com os pés de barro feitos em cacos, deixando uma legião inteira de seguidores na orfandade. Oxalá aprendêssemos a conviver com as fragilidades. Oxalá recusássemos olhar para outros como o mirante de onde se alcança um nirvana qualquer. Os heróis têm a espessura de uma fantasia. São ingredientes de um conto de fadas que, sabemo-lo tão bem, é do domínio do onírico.

Das poucas vezes que soou aos ouvidos que seria "exemplo" do que quer que fosse (e aqui grafar "exemplo" é um imperativo, dos poucos imperativos categóricos a que franqueio entrada), só me apetecia descarrilar e retirar a razão que os elogiadores julgavam estar consigo. E não seria apenas o teimoso espírito de contradição a gritar ainda mais alto do que o sussurro que, em mim, transformava um elogio em matéria repulsiva.

21.10.09

A serventia do exército: montar cenários de guerra e fazer de conta, fazer de conta



Na semana passada, a tropa andou entretida em "exercícios de combate". À falta de outro préstimo, os generais fecham-se num gabinete a congeminar cenários de guerra. Quanto mais não seja, para provarem que merecem os salários. Vi as imagens, pois a comunicação social foi convidada a registar a valentia, a destreza e a disponibilidade dos actuais heróis da pátria para defenderem a integridade do território.

Tenho a impressão que os generais e arremedos de Rambo que se alistam no exército andam mergulhados em profundas depressões, agora que o mundo mudou e as guerras espúrias de outrora já só pertencem a uma história que não deixa saudades. Ainda por cima, os políticos (os ingratos) acabaram com o serviço militar obrigatório – essa fantástica ponte levadiça que, depois de içada, fazia de nós homens em toda a plenitude. Andam mal as forças armadas. É um pouco como a igreja, que de ano para ano vê os templos menos visitados por crentes e se inquieta com a crise de missões que reduz o contingente de padres de tenra idade.

Aquelas imagens dos "exercícios de combate" perto da Figueira da Foz deixaram-me desassossegado. Os tropas corriam que nem uns desvairados atrás de um potencial "inimigo" que agora – é o mundo a mudar – já não é um exército de outro país mas um grupo de terroristas. Para começar, alguém devia explicar aos pomposos generais que estamos no século XXI e que o mundo mudou mais do que julgam os crânios da estratégia militar: "inimigo" é um conceito, por estes dias, sem contacto com a realidade. Sobretudo se nos lembrarmos da irrelevância que somos: por acaso haveria algum movimento terrorista a escolher este cantinho onde termina a Europa ocidental para desferir um golpe qualquer com o mediatismo dos ataques que são abalos telúricos aos alicerces da "civilização" como a conhecemos? Dirão os especialistas – aqueles que se entretêm com fantasias militares e os profissionais do ramo, estes em defesa do seu sustento – que no mundo tão incerto todos os cenários ganham probabilidade. Já sabemos que em todas as profissões há lugar ao corporativismo e à transformação de argumentos em pretextos quando os dias correm desfavoráveis.

Há nas simulações de crise militar algo que me perturba: as manobras são meticulosamente preparadas, seguindo um guião que faz lembrar uma peça de teatro. As acções do "inimigo" são antecipadas, como se fosse possível adivinhar o que o "inimigo" faria se por acaso estivesse a boicotar a lusitana tranquilidade. Já nem menciono a estranheza de meter colegas da tropa a fazer de conta que são terroristas "inimigos"; por maior zelo que ponham no papel que desempenham, não serão tão aguerridos e imprevisíveis como o "inimigo" (se algum dia ele existir). Eu diria ao conjecturado "inimigo": já que estas espectaculares simulações de combate da tropa são anunciadas, com convite à comunicação social e tudo, estejam à coca; sorrateiramente, ou disfarçados de jornalistas, passem pelas manobras militares e aprendam como se comportaria a nossa tropa se a pátria fosse atacada.

Estas manobras servem para entreter a tropa fandanga, que assim tira uns dias de folga da inércia a que está habitada na clausura dos quartéis. Pelo caminho, aproveitam para tirar a poeira às vetustas armas guardadas no armazém e desenferrujam o dedo que prime o gatilho. Por uns dias, os tropas fervem com a excitação do muito faz de conta que neles se faz uma realidade desejada. A pátria, essa, fica sossegada ao ver as imagens da bravura dos seus homens fardados, ali tão dispostos a dar o peito às balas em defesa da pátria. Sabemos que ninguém ousará incomodar a placidez a que estamos habituados, pois o "inimigo" arrisca a levar uma sova das antigas. No rescaldo das operações, sobram as despesas orçamentadas. Como convém, imputadas aos impostos que pagamos.

Só no fim é que me lembrei que em tempos dei umas aulas para futuros auditores de defesa nacional, um curso com a chancela das forças armadas. Já não fui a tempo de retroceder. Se me lerem na tropa (cenário improvável), disto tenho a certeza: que jamais serei professor naqueles cursos, tal como padre nenhum convidará para uma prédica o escritor lusitano que há anos ganhou o Nobel da literatura. As heresias são imperdoáveis.

20.10.09

Da agricultura



Há duas imagens contrastantes que guardo do mundo rural por ainda onde campeia a agricultura. A imagem agreste, a que recolhi na vivência pessoal do contacto com a aldeia duriense onde tenho as raízes paternas e avoengas. E a imagem romântica que passa em jornais respeitáveis, quando a nova leva de proprietários rurais aparece em sedutoras entrevistas. O contraste: entre a rudeza dos homens que cuidam das terras xistosas encavalitadas nas escarpas do Douro; e as mãos imaculadas dos novos lugar-tenentes da agricultura em ensaio de modernização – como se fosse o derradeiro solfejo para alcançar a sobrevivência de uma actividade vegetativa.

Eu que, posso dizê-lo sem corar, sou cem por cento citadino e me faz espécie estar muitos dias exilado de uma aglomeração urbana, nunca me senti embebido na ruralidade da aldeia do meu pai e dos avós paternos. O problema não era a exiguidade do lugarejo; as estadias eram curtas e serviam para oxigenar. Era como se houvesse a necessidade de tudo limpar por dentro depois da prolongada rotina da cidade que, a certa altura, era asfixiante. Por sinal, a aldeia é encantadora – até já teve direito a espaço próprio num livro dedicado às aldeias pitorescas. A sintonia desfazia-se com a agricultura que irradiava de todos os poros. Os braços dos homens, de algumas mulheres até, sobretudo para tarefas sazonais com as vindimas, tinham serventia para a única actividade que conseguia espreitar à superfície.

Era então que a convivência com a força braçal das terras gritava no seu contraste. O rapaz tão urbano a dar de caras com gente rude, marcada pelas asperezas de terra difícil de amanhar como a dos socalcos durienses. Impressionavam-me as mãos dos trabalhadores rurais. Disformes, invariavelmente com lacerações cicatrizadas como se fossem as medalhas de que se orgulhavam em silêncio. As mãos quase sempre encardidas; queria acreditar que não era por falta de higiene, que eram os sedimentos da terra acumulados em anos a fio de porfiadas jornas de sol a sol, a terra em osmose com a pele e com as unhas, indistinguíveis umas das outras. A higiene aprendia-se nas escolas urbanas; depois, chegava à aldeia e os hábitos pareciam mudar num estalar de dedos, à distância dos cento e poucos quilómetros que a separavam do que entendera ser a civilização.

Das gentes nunca tive razão de queixa. De uma simplicidade desarmante, às vezes mostrando um rebaixamento que ecoava, talvez, pelas diferenças entre o rapaz que se instruía a caminho da universidade e aquela gente quase toda analfabeta. Incomodava-me a sensação do estatuto superior em que era colocado pela humildade que se confundia com o desejo de serventia com o seu quê de auto-humilhação. Os olhos cansados e os corpos rijos mas extenuados pelos anos sem descanso fitavam-se na degradação das roupas andrajosas que levavam para a lavoura e que não despiam quando repousavam na proximidade de um bagaço.

Estive largos anos sem ir à aldeia. E agora que lá regressei por um dia, notei que aquelas terras pararam no tempo. Dir-se-ia que o terceiro mundo vive a cento e poucos quilómetros da civilização que se ufana de pertencer à Europa tão avançada. Há casario novo, quase sempre a garantir um ingrediente de fealdade que retira a aldeia do mosaico de aldeias tipicamente lusitanas. Algumas terras ostentam a modernidade dos socalcos espaçados por onde passam as máquinas que diluíram as vindimas na sua feição tradicional. Mas as pessoas são como eram. Sofridas, humildes, andrajosas, mal falantes, com a mesma desarmante simplicidade. As botifarras que protegem os pés dos calhaus pontiagudos que emergem do terreno difícil, as mãos enegrecidas e marcadas pelos frisos das enxadas e pelas pedras removidas à força braçal, as rugas que emprestam um envelhecimento precoce às gentes, a pele tisnada pelo sol que ali se faz infernal.

Vira-se a página e os olhos esbarram em jornais e revistas que entrevistam os que descobriram o novo arroteamento das terras. Parecem o que são: forasteiros cansados da cidade que encontraram na calmaria do mundo rural o exílio para a redescoberta de um negócio. Forasteiros, acima de tudo. Neles não há os traços da gente que amanha a terra. Ao contrário, um certo glamour que encanta as mentes mundanas e as ilude para as delícias da vida rural. A agricultura é boa quando os mandantes se vestem a preceito e ordenam aos capatazes que dobrem os obstáculos severos que a terra difícil oferece. É a agricultura na sua feição simpática, a mostrar a sua mundana face.

19.10.09

A saga do republicanismo – ou o velho aforismo “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”



Para que não sobrem dúvidas: que as palavras que se seguem não sejam entendidas como uma indirecta apologia da alternativa à república. Se a alternativa é a vetusta monarquia, quase me faço republicano à força. Por ausência de alternativa. A adesão não seria espontânea. Talvez por isso, não sou daqueles que decretaram o estatuto sacralizado dos "ideais republicanos".

Sarkozy Júnior, estudante do segundo ano de direito, vai dirigir um importante bairro de Paris. O líder dos socialistas franceses berra: traição aos ideais da república – que, como se sabe, impedem sucessões dinásticas ou privilégios familiares. Não sei como é em França, mas pela república indígena os nomes, certos nomes de famílias que se brasonaram na república, fazem muita diferença na hora de abocanhar sinecuras apetecíveis no sector público e (oh surpresa!) até no sector privado.

Não estou por dentro da realidade francesa, mas aposto que aquele senhor socialista, se algum dia arribasse ao cadeirão do poder, desatava o nó do favorecimento pessoal que lhe fosse conveniente, com algumas prebendas reservadas a membros da família. Talvez lhe fizesse bem se alguém avivasse a memória: foi por excessos destes que, há uns anos, uma camarada sua provocou a auto-demissão da Comissão Europeia. Consta que a patologia é transversal aos lugares onde existam socialistas: chamam-lhe fraternidade. Eu digo, fraternidade na mais pura das acepções.

Por cá, a república que entrou em centenárias celebrações repudia os símbolos, os princípios, a ideologia da monarquia (se a monarquia possuir uma). A república tomou conta do espaço que durante séculos foi detido pelos reis. Não estranha que os "ideais da república" tenham sido erguidos nos contrafortes da monarquia. Não acho que os mentores da república tenham descoberto nada que mereça encómios. A sua ideologia não é intelectualmente reformadora. Os alicerces que fundearam já estavam ancorados. Podres, mas ancorados: eram os esteios de sinal contrário que, de tão apodrecidos, eram já incapazes de suportar a desamparada monarquia. A república foi inventada por antinomia da monarquia. É neste sentido que a acho despida de originalidade. Quando temos algo em que nos não revemos, procuramos afinar a bússola por outro modelo que seja a sua antítese. Quem o faz não pode reivindicar um estatuto de singularidade.

Os fiéis sacerdotes do republicanismo indígena terão acenado a cabeça em tom de reprovação quando leram a notícia sobre as novas funções do filho de Sarkozy. Aliás, esta é uma daquelas notícias repleta de oportunidade. Pois os fiéis sacerdotes do republicanismo casto são, como devem ser os republicanos de gema, de "esquerda" (ou de uma das esquerdas). Eis uma oportunidade para repreender um governante "de direita" – e, de caminho, pespegar os rótulos do costume na malta de "direita", numa efervescência da honestidade intelectual típica de quem pretende arrumar o adversário a um canto. Por acaso, nem interessa que a imensa maioria dos tresloucados de "direita" seja republicana. Como Sarkozy terá movido as suas influências para o rebento abocanhar uma apetecível prebenda, toma-se a árvore pela floresta e corta-se a eito, em mais uma oportunidade para diminuir a "direita" – essa coisa nefanda.

Ora mandam os sinuosos caminhos do destino que às vezes o que se cospe caia em cima de quem soltou a excreção salivar. Já foram tantas as ocasiões em que damos de caras com um chefe disto ou daquilo, ou com um funcionário do topo da administração pública, ou até com gente que ocupa destacados lugares em empresas privadas, e os nomes de família destas pessoas não soam a estranho. São os nomes da nova oligarquia. Da que vingou à sombra da república. Podem não chegar lá por nomeação directa do familiar mor. Mas há certos nomes com o pedigree certo, nomes que têm o condão mágico de abrir portas com uma facilidade invulgar.

São os nomes com pedigree republicano. A sucessão não é dinástica, que as eleições curam de a impedir. Mas no dia-a-dia, os republicanamente brasonados nomes são uma forma de fazer desta república uma monarquia com outro nome. À falta de alternativa, a resignação de olhar para as faces da mesma moeda.

16.10.09

Medo do escuro/um céu nocturno a cintilar, repleto de estrelas



Não é escuro o céu nocturno de onde se alijou a nebulosidade que o podia tingir. A escuridão povoada por minúsculas estrelas é o seu contrário: não, não um pano de fundo onde se compõe a espessa, negra tonalidade que encerra mistérios encavalitados. A constelação de estrelas, anarquicamente ordenadas, empresta a luminosidade que depõe contra o espesso manto pardacento de onde elas sobressaem. Dir-se-ia: de tão escuro o céu nocturno, as estrelas irradiam uma refulgência feérica.

O imaginário é fértil em metáforas que apoucam a escuridão. Porventura são o sinal de uma infância atravancada, com mal resolvidos assuntos a pender em todas as esquinas do pensamento. A pessoa comum sofre de apoplexia quando lhe retiram a visão, quando uma entidade poderosa as condena a temporária escuridão. É como os infantes, cheios de medo do quarto escuro para onde são atirados de castigo. Podem ser traumas de outrora a pesar no imaginário popular. A noite é uma reclusão, o desengonçado restolho do dia que impede a luz natural de vingar.

Veja-se as cidades: alumiadas exaustivamente (e ainda não se lembraram os apóstolos do ambiente de tornar causa sua a extinção dos lampiões citadinos a partir de certa hora adiantada, ou pelo menos de se congeminar medida que ordena apagar um lampião por cada outro que permaneça aceso). Se os automóveis têm luzes de presença que são os olhos que desvendam as ruas por onde andam, por que precisam as cidades de jorrar o intenso feixe de luz que brota da iluminação pública? Por medo do escuro. A parafernália de luzes públicas é a interminável teia de estrelas que se espalha pelas ruas e avenidas e praças da cidade.

As coisas sobem nos seus contrastes. Eis o paradoxo da luz: é onde ela existe em abundância que menos se nota o fulgurante mapa tracejado pelas estrelas. É onde a artificialidade consome a exuberância das estrelas em natural refulgência. É preciso exílio no campo, e a generosa distância de qualquer propagação luminosa de meios urbanos, para admirar as trevas naturais que são a candeia para o mapa estrelar. Mas as pessoas fogem do campo com medo que o negrume retire conhecimento. Não sabem: refugiam-se nas pradarias apetecíveis onde a irradiação de luz é nutriente das trevas em que os sentidos em agnosia mergulham, derramados em perfeita ilusão. Como se as coisas fossem o que não são.

Protestam contra as trevas do conhecimento. Prolongam os temores infantis da escuridão até à idade adulta, alguns até entrarem na senescência. É nos covis das cidades, onde julgam residir o manancial da luz inspiradora, que encontram refúgio. Para alcançarem o conhecimento e mantê-lo cevado pelo intenso feixe que serve de candeia ao conhecimento que chegará algures do porvir. Mas tudo que se atinge é uma erudição balofa, auto-panegírica. Uma erudição alimentada em círculos por uma casta de vultos que é, ao mesmo tempo, quem conceptualiza e quem interpreta essa cultura. Os coiotes da artificialidade.

Este é o desafio maior: encontrar a chave para a simplicidade dos saberes, a despretensiosa singularidade das palavras que descodificam esses saberes. Não julgo que a encontro (à simplicidade) na coreografia intensa e inebriante que os fogachos perenes dos lampiões tributam à cidade. Julgo que daí sobra uma obscuridade latejante, o breu que se insinua entre o resplendor das luzes artificiais. Por vezes, impõe-se o degredo longínquo, onde anoitece a luz clara, tão alva, de um mapa tacteado pelas estrelas. Onde as sombras, que tomam conta do horizonte quando os olhos deitados se espraiam na infinitude do céu, as sombras não passam de falsas sombras. Pois elas desvelam-se num novelo claro, a saliva que as estrelas deixam para trás ao tactearem o céu nocturno.

15.10.09

A gente empoeirada



Uma actriz brasileira pegou numa câmara de filmar e, em registo íntimo, satirizou a portugalidade. Logo se pôs um pé-de-vento, muita gente ofendida a atirar-se com violência ao topete que diminuía a portugalidade. Pode-se lá admitir que um brasileiro qualquer ponha os pés na nossa terra e destile fina ironia sobre os patrióticos defeitos que se põem a jeito da risada dos outros. Isto só não chegou a incidente diplomático porque estamos sem ministro dos negócios estrangeiros.

A tempestade trepou até chegar a furacão. Muita gente indignada a escrever palavras sentidas um pouco por todo o lado. Alguns mariolas juraram vingança; terá sido por acaso que a página que a actriz alojou na Internet foi vandalizada e que a biografia colocada em rede a apresenta como actriz pornográfica? O pateta do regime (um Markl qualquer que se convencionou ser um tipo cheio de piada) deu o peito às balas, defecando retórica pestilenta que denunciava o atrevimento da actriz. O pateta do regime elevou o nível: insinuou despeito da actriz, pois consta que sofreu um desgosto de amor provocado por um antigo namorado lusitano. À cavalgadura, esta interrogação: e o que é que isso interessa?

Duas observações sobre o lamentável episódio. (Bem entendido, lamentável não é o filme amador protagonizado pela actriz; foi a enxurrada de reacções histéricas ao filme.) Primeiro, houve tanta gente a cair na esparrela do povo macambúzio. Às tantas, os que nos olham de fora para dentro, estranhando que também sejamos latinos, é que a sabem toda. É quando sublinham a propensão para a melancolia, a incapacidade para nos rirmos (a não ser que se trate de humor de segunda categoria, inane de inteligência, boçal), a interiorização de que há coisas tão sagradas que ninguém as pode maldizer. O que nos falta para sermos crescidos e despojados de preconceitos que nasceram em nós, imagem da portugalidade que outrora se abraçou ao mundo e que agora está confinada a um esconso canto da Europa? Falta a capacidade para fazermos humor com as fraquezas que alindam a idiossincrasia. Somos tristonhos, enfadonhos. Somos do melhor que há no mundo no trejeito de franzir o sobrolho. E ai de quem zombe das nossas fraquezas e vergonhas, que logo apanha com o opróbrio da maralha.

Segunda observação: revejo o filme amador, anoto a sátira e chego ao final com a leve impressão de que tudo ali bate certo. Talvez isto explique que muitos patrícios se doeram. Há verdades que magoam de mais – as verdades inconvenientes, aquelas que são varridas para debaixo do tapete. Somos gente estranha: quando treinamos o ensimesmamento, estamos na linha da frente no diagnóstico das vergonhas que nos consomem. É um interminável inventário de frouxidões. Como se a portugalidade fosse a pior coisa que o mundo conheceu. No dia seguinte, uma estrangeira sumaria alguns destes desconchavos pátrios e não somos capazes de os admitir. Só porque não foi um de nós a enumerá-los; só porque quem cometeu a ousadia chegou de fora e satirizou algumas das coisas que por aqui viu. Nos estrangeiros, isso é aleivosia; na gente indígena, é força de carácter.

Estamos carentes de alguma maturidade. Enquanto formos gente coberta por uma espessa camada de poeira, de cada vez que pousar uma mosca é todo o verniz que se estala e nem assim nos conseguimos desempoeirar. Ao ler algumas das reacções despropositadas dos patriotas de serviço, percebi como esta gente só consegue viver se carregar a poeira do passado. Do grandioso passado da pátria que cultivam, como se essa pátria não fosse hoje uma insignificância (pode-se dizê-lo sem cometer uma heresia?). É enternecedor ver como tantos coveiros da pátria açambarcam a portugalidade como relíquia.

E assim andamos todos entretidos com assuntos tão relevantes. A perder um pedaço do precioso tempo ensaiando argumentos que despejem a actriz na praça da ridicularia. Como se sentiu esta gente ao ver o perdão público que a actriz colocou em rede? Adivinho-os exultantes, garbosamente saboreando o travo da vitória, puxando o lustro ao orgulho pátrio que trazem à lapela. E, ao mesmo tempo, ainda mais empoeirados.

13.10.09

O momento psicológico do voto



Isto não é bem uma confissão (pois já por aqui discorri abundante argumentação a favor da abstenção): este ano tirei a barriga de misérias. Foi um fartote de eleições – para o povo e para a classe política que pôde, três vezes num ano, colocar-se em bicos dos pés. E para mim, que andava militantemente arredado das mesas de voto. Fui votar nas três vezes. Para desafiar a pessoal relutância ao voto. Apetece-me chamar a isto a vertigem pela bebedeira dos contrastes.

As minhas escolhas não traduziram uma identificação completa com os escolhidos. Na renovação da experiência do voto, vi-me enclausurado na categoria de eleitores que acabam por aderir ao candidato que mais se aproxima das suas posições. Uma espécie de "mal menor". Até isto seria um desafio às sensações que me iriam percorrer. Antes e, sobretudo, depois de ter deixado o voto na caixa negra.

Isto de votar é um acto curioso. Dizem-nos, com a gravidade dos momentos muito sérios – registo presidente da república – que votar é uma imposição de cidadania. Supõe-se, portanto, que o devemos fazer com responsabilidade. Devemos saber várias coisas antes de depositar o voto na urna (é interessante que não mo deixaram fazer: tive que entregar o voto na mão do presidente da mesa que, ele sim, foi o penhor das minhas escolhas; e, todavia, via imagens dos líderes políticos a quem era permitido a deposição do voto pela sua mão, sem intermediação dos membros da mesa de voto). Devemos saber ao que vamos: o que significa a eleição, por que vamos escolher quem escolhemos, o que podemos esperar se os que escolhemos forem eleitos, ou se nos importamos se à partida sabemos que os que escolhemos vão ficar de fora. Já sei: os zelosos vigilantes da igualdade apressam-se a desmentir o que estou a insinuar – que o voto, contrariando o que está convencionado, não é universal. Esta é uma das maiores ilusões do voto paritário: um voto leviano vale tanto como um voto – como dizê-lo sem ofender sensibilidades? – "informado" (ia a escrever "esclarecido"; recuei a tempo).

Nas vésperas das eleições, andei à procura de azimutes. Primeira decisão: ia manter-me fiel à abstenção militante? Como a resposta foi negativa, surgia por diante a pergunta como resposta mais difícil: em quem votar? Para mim era mais fácil identificar em quem não estaria, em condição alguma, disposto a votar. Feita a exclusão de partes, não sobrava nada. Para não trair a teimosa coerência que me fustiga, convenci-me que não podia voltar atrás na interrupção do abstencionismo metódico. Era um terrível dilema: a votar, que não fosse em branco ou nulo (porque os votos em branco não têm o valor que deviam ter: ocupar lugares no parlamento). Impunha-se uma escolha. E como nenhum dos prometidos partidos alternativos concorreu às eleições (partido dos animais e partido pirata), a certa altura dei comigo órfão de escolhas: queria escolher um, mas não sabia qual. Avivou-se a metáfora que povoara o pensamento: votar é como escolher uma mulher para a vida. Não é a primeira que vem à rede.

Mentalizei-me que tinha que decidir antes de meter os pés ao caminho. Para não ficar na reclusão da mesa de voto, hesitante, a demorar-me para além da conta. As hesitações, sentia-as depois do acto. Revivi a caneta BIC de tinta azul presa por um cordel (será que também ali há furtos?), o espaço propositadamente claustrofóbico para forçar uma decisão célere, e os papelinhos coloridos (na votação de domingo) ou os boletins de voto que não sabia serem tão grandes (nas eleições europeias e nas eleições legislativas) – é o que dá a desabituação do voto. E aquele momento em que a mão tomava conta da caneta e, num ápice, desenhava a cruz na quadrícula identificada com a escolha tomada antes de sair de casa.

Passei em revista cada instante, como se o revivesse em câmara lenta e a imagem passasse vezes sem conta. Não parava de me interrogar se aquilo tinha sido boa escolha. Rebobinava as imagens, via a tinta azul a desenhar a cruz, como se fosse possível discernir cada minúsculo ponto unindo-se ao ponto anterior até todos os pontos se transformarem numa cruz. Na minha escolha.

A democracia é isto: uma somatório de escolhas propensas a tantos dilemas, logo, a uma elevada probabilidade de equívocos? Quantos já não terão governado por causa de uma interminável sucessão de erros fermentados por hesitações? E não sei: se não se devia reinventar a democracia. Ou as eleições.

12.10.09

Dead Can Dance, "Indus"

Matinal



O dia sonha-se. Um de cada vez. A espreitar detrás do véu brumoso da aurora. Não, o que interessam não são os dias ausentes. Ou as ausências que parecem tornar os dias um terrível deserto. Se arremetermos contra a cortina de nevoeiro que transborda a sua espessura e escurece o dia que se retarda, há nas gotículas frescas que pousam no rosto a purificação dos sentidos.

E não, de igual modo não interessa prolongar a escuridão do dia nascente, como se uma teimosia nocturna se estendesse para fora dos seus domínios. A intrusão só acontece pela ilusão de quem teima nas trevas que sobram da noite acomodada pela insónia. Oxalá soubéssemos, a cada dia que irrompe, recebê-lo na luz resplandecente que irradia. E que a cada alvorada fôssemos capazes de sorver no orvalho que se deitou nas flores o néctar que alimenta outro dia majestoso. Todos os dias deviam ser imperiais, um pórtico onde apenas fosse acreditada a visão colorida das coisas. Em cada manhã onde os despojos inúteis fossem vertidos, haveria uma página arpejada, a frondosa lição a ungir uma bênção terrena sobre a existência então sagrada. E os dias deixariam de fluir na sua inércia a preto e branco.

Tem algum proveito, a noite? Ou é apenas um altar onde a luminosidade fica cerce, a visão decaída pelo ofuscamento dos lampiões que emprestam alguma luz à cidade? A noite – é o que ela é –, a preparação da alvorada onde tudo se renova. Tem esta serventia, a noite: é nela que se confeccionam os sonhos que apascentam os dias. É por isso que digo que os dias se sonham. Pela noite fora, no acolhimento do sono. É nela que se escolhem as pétalas perfumadas do bouquet em que se há-de compor o dia remansoso. A matinal frescura soprada por ventos boreais, a que dá alento ao dia em parto provocado pelo sol em timidez perdida, é o compasso. A cada dia que esvoaça pelas folhas do calendário, o compasso indeclinável.

Temos um dever a honrar: a dignidade dos dias que sonhamos, de cada vez. Para depois os tragarmos como quisermos – ora com avidez, como se aquele fosse o derradeiro dos dias, ora com a volúpia que parece demorar os dias além da bainha dos relógios. Há, por uma vez que seja, um imperativo categórico a estender-se, tomando conta de todos os milímetros do horizonte. Se cada um de nós não contemplar a alvorada que desponta numa caridosa rotina, em nós se esmaga a impiedosa incapacidade de prestar homenagem à existência que lobriga. Nessa altura, é como se estivéssemos a convidar a perene escuridão a tomar conta de tudo, como se os dias ganhassem a espessura dos dias de árctica invernia.

As vidas não se transfugem. Se fosse o caso, estas palavras seriam apenas o mote para uma ode ao individualismo. E não, não atraiçoamos memórias se quisermos aproveitar a beleza do ar límpido de um dia matinal, de todos os matinais que vierem pintar-se à nossa porta. Os lamentos, esses pertencem ao património imaterial, fermentando a exaustão do que somos. Tão imaterial como o vento que tentamos, mas não conseguimos, agarrar entre as mãos. Não se gastem as mãos em gestos tão áridos. As mãos devem ficar encardidas de tanto sorverem todas as rugas sedimentadas com o passar dos dias.

É a velha velhice a dar impetuosos sinais de vida. A sonhada (ou não – mas isso não interessa) velhice. A que toca, com a ponta dos dedos, na matinal frescura com que os dias se reinventam.

9.10.09

Os génios descobrem-se durante as campanhas eleitorais


É o que eu digo: o que andei a perder, em eleições anteriores, por me fechar num casulo onde as notícias não entrassem. Acreditava que isso fazia bem à minha sanidade mental. Como estava equivocado! As campanhas eleitorais podem ser um interminável divertimento. Em ano de bebedeira de eleições, em que andámos quase metade do ano em campanha ou pré-campanha eleitoral, já começo a ter saudades do lado lúdico das campanhas eleitorais. E ainda estamos no último dia delas.

Anteontem, esse vulto da intelectualidade lusitana, o Professor Doutor Manuel Carvalho da Silva, foi apanhado com a boca na botija lá para os lados do Rossio. Que notável coincidência, foi aí que se encontrou "por acaso" com o candidato socialista à autarquia de Lisboa, que prosseguia a extenuante campanha eleitoral pelas ruas da cidade. Palavra puxa palavra, num ambiente muito cordial, ao terminar a bica o líder da central sindical comandada pelo PC desejou votos de vitória ao candidato socialista. Para gáudio da comunicação social, que aproveitou a deixa (ou a distracção verbal do intelectual ascensional), para abrir noticiários radiofónicos e televisivos com o episódio. Está-se mesmo a ver porquê: a imprensa especializou-se na arte de fazer sangue, ou de dar à audiência as notícias onde se vê muito sangue a jorrar.

Esta foi a sequência de acontecimentos que se precipitaram nas horas seguintes: Carvalho da Silva apanhou um valente puxão de orelhas do comité central do "partido" (dito com aquela entoação que os camaradas costumam empregar à palavra, com o "r" acentuado na partição entre a primeira e a segunda sílaba). O homem, coitado, não demorou nem duas horas a enviar um comunicado às redacções de jornais, rádios e televisões. Mandou dizer aos ofendidos camaradas  e a quem o quisesse ouvir que os votos de vitória endereçados ao candidato socialista não prejudicavam o seu apoio ao candidato do "partido".

A certa altura fiquei confuso, como se estivesse desorientado diante de uma encruzilhada. Isto de gente mediática dar uma no cravo e outra na ferradura é um hábito que se sedimentou com a mediocridade instalada. De repente, dei com a seguinte interrogação a pairar em cima da cabeça: será que o grande Manuel Carvalho da Silva (usando a expressão afamada pelo anterior presidente da república, uma "figura incontornável" da intelectualidade indígena) recebe dois boletins de voto quando vai votar? Só desse modo é que se entende que apoie dois candidatos à mesma eleição. Um caso patológico, a merecer estudo por politólogos e psiquiatras, este de esquizofrenia eleitoral.

No dia seguinte, como se não fosse suficiente o banzé que o desastrado Carvalho da Silva já tinha feito, atirou mais gasolina para a fogueira. Desafiado pelos teimosos jornalistas, que não perdem uma oportunidade para chafurdar na lama, admitiu que o desejo de sorte dedicado ao candidato socialista tinha sido feito na sua qualidade de cidadão. Lá está: temos muito a aprender com os vultos da intelectualidade. Vamos ver se todos percebemos a mensagem: enquanto cidadão, o Manuel gosta do Costa e quer que ele continue a ser o presidente da câmara de Lisboa; como líder da CGTP, o Carvalho da Silva (porventura o desdobramento de personalidade do Manuel) está ao lado do Rúben, o candidato que a férrea disciplina interna do "partido" manda apoiar.

O mal da gente simples é não conseguir alcançar o elevado raciocínio dos intelectuais. Por isso mantive a dúvida: no dia das eleições autárquicas, darão um voto ao Manuel e outro ao Carvalho da Silva? Assim como assim, os intelectuais (consagrados ou em ascensão) deviam ter direito a voto plural, tão distintas as suas qualidades exteriorizadas por um intelecto muito acima da média. Desenganei-me: isso contrariava a sagrada igualdade que intelectuais da gema do Carvalho da Silva propagam aos quatro ventos. Lá se ia a diáfana ideia do "voto universal".

Sobra a deliciosa dúvida: na intimidade da mesa de voto, onde ninguém – nem os camaradas – pode espreitar a sua mão trémula a escrever uma cruz no boletim de voto, qual o hemisfério que vingará? O Manuel, ou o Carvalho da Silva?

8.10.09

A esquerda lírica



Será defeito incorrigível e imperdoável se um politólogo for ao mesmo tempo observador do seu objecto de estudo e parte interessada num resultado? Já não é a primeira vez que fico às voltas com a "ciência engajada". Desta vez tiro o chapéu ao politólogo que ao menos não tem pejo em acusar as suas preferências na cartografia política e partidária local. Sem escorregar para a "ciência engajada" acarinhada por certos sociólogos coimbrãos, André Freire é o mentor mor da unificação das esquerdas indígenas.

Há dias, voltou à carga em artigo de opinião no Público (também acessível aqui e aqui). De se lhe tirar o chapéu a apreciação das consequências das eleições legislativas. Sobretudo quando mostra o emagrecimento do bloco central, que ficou mesmo no limiar dos dois terços de deputados que dispensam a colaboração de outros partidos na revisão constitucional que se avizinha. Também corroboro o contentamento de André Freire pela diluição dos partidos do bloco central, pois mantenho a ideia de que o estado em que nos encontramos se deve ao oligopólio de poder destes partidos. Afastar o estigma do bipartidarismo enriquece a muito pouco madura democracia.

Já não alinho no entusiasmo de Freire quando faz cálculos que suportam a sua opção de governação. Primeiro, o PS e o PSD continuam a ter dois terços de deputados. Podem chamar a si a revisão da Constituição, mantendo-a como um feudo. A Constituição continuará a ser um mostruário do pior que o bloco central contém, naquele seu maneirismo muito Dupont e Dupont que torna os dois partidos quase indistinguíveis.

Segundo, André Freire deixa-se levar pelo entusiasmo dos resultados das eleições e faz uma leitura que revela alguma miopia. À partida, acerta no diagnóstico: os partidos das esquerdas contaram mais votos (com cerca de 15% de diferença) e reuniram mais deputados (trinta, antes da contagem dos quatro que faltam, os dos círculos eleitorais da emigração) do que o somatório dos partidos de "direita" (é escusado explicar as aspas: se o PSD é de "direita", eu vou ali e venho já…). Extrai a seguinte conclusão: a maioria dos eleitores não quer que a "direita" meta o bedelho no próximo governo. Só que a magra vitória dos socialistas exige negociações que (espera Freire) desagúem em entendimentos.

É aqui que a "porca torce o rabo". Por isso é que Freire deu a cara, com outros sonhadores da unidade das esquerdas, por uma plataforma (Compromisso à Esquerda) que ponha o PS, o BE e a CDU sentados à mesa das negociações. O resultado desejável? Que se entendam e partilhem as responsabilidades do governo que está para vir. Todos teriam que identificar as cedências que possibilitassem o resultado desejável. Para reforçar a sua proposta, polvilha-a com "vários países da Europa ocidental" onde esse entendimento foi possível (sem identificar esse numeroso grupo de países, que – ao que sei - não é nada numeroso). É quando o politólogo confunde "wishful thinking" com a realidade. Entendo que queira ver uma grande aliança popular ao leme da pátria. Todos temos direito a ver a ideologia que defendemos prosperar; é uma oportunidade para confirmar que essa ideologia é a melhor para a maioria dos cidadãos (na suposição de que governação corre bem…).

Quando a febre dos interesses pessoais intersecta com a análise em forma de ciência, esta perde lucidez. É inútil jogar os exemplos dos "vários países da Europa ocidental" governados por esquerdas policromáticas, pois as idiossincrasias nacionais impedem as comparações com outros países. As esquerdas caseiras odeiam-se. Isto é histórico e factual. Não se antecipa como, com as actuais lideranças e os programas com que se apresentaram às eleições, possam limar as muitas diferenças que os separam. Seria o PS a ceder às exigências radicais dos partidos de extrema-esquerda? Onde metia o PS o programa com que se candidatou às eleições? Na gaveta (outra vez)? Ou seriam os comunistas e os da esquerda caviar a fazer concessões, cravando uma faca na sua genética anti-sistema só para amesendarem o apetecível poder que se serve no governo?

Até posso estar enganado. E sermos governados por uma grandiosa aliança popular. André Freire seria o ministro dos assuntos parlamentares. Não vejo ninguém com melhor perfil para amparar as pontas frágeis do entendimento entre as esquerdas. Seria uma espécie de Madre Teresa das esquerdas tão teimosas em serem desavindas.

7.10.09

Caiu a máscara das sondagens



Pela primeira vez na vida, fui "inquirido" para uma sondagem. Uma menina da Universidade Católica tocou à campainha. Quem atendeu foi a (usando linguagem camoniana – e não só) minha amada. Como estava ocupada, teve que declinar o convite da menina. Quem se chegou à frente fui eu.

Eis o embuste das sondagens: como cá em casa temos preferências políticas diferentes – uma saudável emanação da democracia em versão familiar –, a repetição deste tipo de "acidentes" distorce os resultados das sondagens. Se fosse a outra metade da sociedade conjugal a responder ao inquérito, um dos partidos gordos seria beneficiado. Como fui eu, manifestamente alguém que tem mau feitio e não se revê nos partidos dominantes, olhei para as opções inscritas no boletim de voto e nenhuma me seduziu. Dobrei o voto, que entrou no simulacro de urna tão virgem como a simpática menina mo pôs nas mãos. Por um acidente de percurso, a lista que seria escolhida pela outra metade da sociedade conjugal vai ter nesta sondagem um resultado inferior ao que teria se ela não estivesse ocupada.

Isto não chega para contestar a proclamada cientificidade das sondagens? E, mais importante, não chega para se dar menos palco às sondagens? Cada vez mais me convenço que há ali encomendas encapotadas: o eleitorado é olhado como um rebanho acéfalo que se deixa influenciar depois de ler os números das sondagens. Digo isto porque, desde criança, sempre adorei surpresas. Os institutos que vendem as sondagens como coisa muito científica (e não uma versão mais elaborada de pura astrologia), agarrando-se à tábua de salvação da matemática como se a matemática fosse um código cheio de divinas certezas, são uns desmancha surpresas.

Agora que as autoridades competentes obrigaram os institutos de estudos eleitorais a divulgar a ficha técnica das sondagens, ficamos a saber, em letra pequenina, que a margem de erro não anda longe de 5%. Há tempos, um economista com elevada proficiência matemática provou a infalibilidade daquela margem de erro. Pode ser estatisticamente infalível. O que a matemática não pode combater – e, com ela, os institutos de estudos eleitorais – é a ocorrência de acidentes de percurso como o que ontem aconteceu lá em casa. Ao menos deviam dar instruções às prestáveis meninas que fazem o trabalho de campo para não aceitarem o voto no simulacro de urna que carregam a tiracolo quando acontecer o que ontem aconteceu; é que nas casas em que batem à porta, a probabilidade das escolhas eleitorais dos consortes serem diferentes é (como dizer?) elevada.

O que me traz outra dúvida. Na sondagem para as eleições autárquicas no Porto que a Universidade Católica vai divulgar dentro de dias, um dos partidos tubarão vai ter menos um voto do que teria se na minha vez tivesse sido inquirida a pessoa que atendeu a menina das sondagens. Não é só um voto; é a projecção matemática desse voto: quantos pontos percentuais representa na sondagem o singelo voto desviado? Agora viremos o cenário ao contrário: e se no dia da visita da menina da Universidade Católica eu não estivesse em casa? A resposta ao inquérito e a escolha na imitação do boletim de voto iriam no feminino. Boas notícias para um dos partidos tubarão. E fico na dúvida: com esta sucessão de incidentes, o que sobra do rigor das sondagens?

As eleições europeias foram um cataclismo para os institutos que fazem sondagens. Tiveram uma derrota estrondosa ao saber-se que os resultados eleitorais desmentiam todas as sondagens que andaram a fazer em vésperas de eleições. Nessa altura, alguns dos gurus da especialidade meteram a viola no saco e começaram a falar mais baixinho, com mais humildade. Agora anunciam que põem à nossa disposição "previsões" ou "estimativas". Avisam que há muitas variáveis que não conseguem controlar. Em jeito de exculpação pelo erro grosseiro de "estimativa", um deles disse em entrevista que o maior inimigo das sondagens é a abstenção: quando ela é elevada, como o foi naquelas eleições, não há método científico que resista e lá vai pelo cano do esgoto o labor dos fazedores de sondagens.

Gostei de ver o acto de contrição. Pode ser que as sondagens (ou "previsões", ou "estimativas", ou lá o eufemismo que queiram inventar) percam o protagonismo que tinham ganho nos últimos anos. Pois não podem ser as sondagens a ganhar (ou a fazer perder) eleições. Para os mundos faz-de-conta, já chegam as lamechices das telenovelas.

6.10.09

O Outono já não é como dantes



Era o meio da tarde do quinto dia do mês outonal de Outubro. Pouco outonal mês: as nuvens carregadas anunciavam chuva, mas o termómetro lia vinte e cinco graus. Um ar carregado de humidade, quase como se fosse aquela humidade tropical que ultimamente migrou a norte quando o calendário convencionou que o Outono se apoderou do lugar do Verão.

Se por aqui habitassem lugares-comuns do discurso politicamente correcto, ocasião ideal para discorrer sobre os efeitos maléficos do aquecimento global. De caminho, atirava umas pedras ao capitalismo e aos seus piores intérpretes – uns tipos gulosos que só têm olhos para o lucro e que fazem tudo o que for preciso para se embriagarem com a sua ganância. Tudo, até destruírem o planeta que habitam. Desde que li Björn Lomborg (em "The Skeptical Environmentalist") denunciar as manipulações do histerismo ambientalista, passei a desconfiar dos que militam na causa ambientalista – sejam verdes genuínos, verdes por fora e vermelhos por dentro, ou políticos oportunistas que se agarraram à causa para retomarem a ribalta. Para que conste: não sou insensível à protecção do meio ambiente. Posso não engrossar o exército de utentes de transportes públicos (por comodismo), mas tenho outros hábitos que nasceram com alguma educação ambiental. Mas não dou para o peditório do histerismo ambientalista. A conversa sobre o Outono que se recusa a trazer o frio não vem a talho de foice das alterações climatéricas. Por sinal, até é isso que quero explorar; mas sem a carga politizada que normalmente apascenta o assunto.

Vou ao baú das recordações: lá atrás no tempo, mal começava Outubro os agasalhos saíam da hibernação do armário para que tinham sido atirados durante a estação quente. Ainda tenho essas recordações bem vivas, pois era quando a escola começava pelos primeiros dias de Outubro. Aliás, sempre tive a mania de emparelhar certos pares de palavras por julgar que o emparelhamento tinha um propósito maquinal. Fazia essa associação entre Outubro e Outono (quando não gostava do Outono porque era sinónimo de início das aulas – a preguiça juvenil). Os primeiros dias que o calendário convencionara serem outonais – os últimos nove dias de Setembro – limitavam-se a varrer o restolho da estação estival. Era o Verão a passar a estafeta ao Outono. Um Outono ainda tímido, a romper a custo a demorada canícula que nem é tanta no norte espraiado defronte do Atlântico.

Do Outono, do Outono a que me habituei desde criança, só restam os vestígios botânicos. As folhas caducas que se avermelharam nos ramos das árvores em participada decadência, antes de se desprenderem num voo coreografado pelo vento até comporem uma cama que esconde o chão. Desse Outono ainda há. Mas já não os kispos (em moda na minha adolescência) que agasalhavam os corpos nos primeiros dias de vento fresco e húmido que encerravam, por fim, a estação estival. A tarde de ontem estava escura, diria, outonal. Se não fosse o vento com odor tropical que soprava a chuva que ia molhar a qualquer momento. Ando para aqui em manga curta, seis dias entrados em Outubro, quando há uns anos só saía à rua enchumaçado por um kispo.

Definitivamente, não vou entrar na ladainha das alterações do clima. Possivelmente o Outono adiado é expressão dos novos humores do clima, das temperaturas fora de época que visitam lugares que, pelos registos históricos da meteorologia, não estavam habituados a esses humores. Deve ser isso: como acontece connosco, o clima muda de humor. Quer novos hábitos, farto da rotina sedimentada nas estatísticas coleccionadas através das décadas. O clima migra para outras paragens. É democrático, generoso. Destrói a rotina atmosférica que já cansava as pessoas e um lugar.

Dou conta que estou dividido entre a nostalgia de um Outono fresco, chuvoso, por vezes tempestuoso e os ventos diferentes soprados por um clima em mutação. Ou nem nada disso: apenas o cansaço das temperaturas estivais que agora penetram na carne de Outubro e adiam o começo do Outono. Terceira hipótese: à falta de tema, "conversa meteorológica" (daquela que as pessoas metem quando não sabem o que dizer: "então, hoje está um calor a destempo, não é?").

5.10.09

República ou animais?



Não chegou a ser um dilema. Hoje a república faz noventa e nove anos – para o ano já está ajuramentada festa de arromba. Ontem foi o dia mundial do animal – e leio nas notícias que há cada vez mais animais domésticos abandonados.

Ora, ouvi dizer que o republicanismo tem, entre muitas putativas virtudes, a sensibilidade de olhar pelos desvalidos. Por isso hoje escrevo sobre a efeméride de ontem, decerto com a anuência da dona república. A minha excitação pelo republicanismo é parecida com o ponto de congelação, o que contribui para a exclusão de partes. Não se depreenda que seja monárquico. As coisas anacrónicas do mundo não me atraem nada: nem me babo pela república, nem teço loas à monarquia. E quando vejo os senhores que se exaltam com as qualidades da república, não consigo dissociar a coisa da gente que a endeusa.

Ao que interessa – os animais e os direitos que milímetro a milímetro lhes são reconhecidos. A notícia ecoa as estatísticas: tem aumentado o número de animais domésticos abandonados. Suspeita-se que é por causa da crise – e outra vez a crise, a crise das costas largas, a arcar com (outro) odioso. Os padecimentos da crise encurtam os dinheiros de toda a gente. Com as finanças à míngua, as pessoas descartam-se dos animais de estimação. Eles dão despesa: o veterinário onde apanham as vacinas e são desparasitados uma vez por ano; as doenças que aparecem, aleatórias como em nós, e que aumentam a rubrica das despesas no orçamento familiar; e a alimentação, que os animais não vivem do ar e do vento e, aconselham os veterinários, não devem comer da nossa comida que lhes faz mal.

A crise é pretexto em vez de explicação. A ideia do abandono dos animais acentuada pela profunda crise só é válida para os que estão no desemprego. Recordo-me de ter escutado palavras soporíferas do ministro das finanças e do governador do Banco de Portugal a convidarem a turba (só a que estivesse empregada) a aumentar o consumo, pois as taxas de juro estavam a descer vertiginosamente, os preços também e, portanto, as gentes teriam (jargão técnico agora) um "aumento do rendimento disponível". Com mais dinheiro nos bolsos e nas contas bancárias (quem somos nós para contrariar aquelas sumidades?), esfuma-se a ideia de que as pessoas abandonam os animais por causa da crise. Lá está: a crise tem as costas muito largas.

Onde tudo se entorna é na maneira de sermos. Humanos. Mas estupidamente animalescos, com uma insensibilidade tão brutal que supera, e de longe, os índices de irracionalidade que dizem fazer a distinção entre o homem-animal-racional e as demais espécies, todas irracionais (como ensinam os manuais de estilo). Há dias contaram-me como se abandona um animal: uma senhora bem-posta na vida pára o seu vistoso automóvel na rua, aproveita-se da alvorada pois anda pouca gente na rua, abre o porta-bagagens e dá ordem de soltura ao cão que a partir daquele momento deixou de ser seu. Com esta frieza, como se o animal fosse uma "coisa" descartável que se rejeita para o lixo, uma "coisa" indiferenciada. Já ouvi dizer que as famílias (sobretudo da burguesia supostamente esclarecida) gostam de fazer todas as vontades à prole que lá têm em casa. E se o petiz quer um cão ou um gato pelo natal ou pelo aniversário, seja feita a vontade do menino. Quando, uns tempos mais tarde, a criancinha já não está encantada com o "brinquedo", os progenitores interrogam-se sobre a sua serventia. Não faz mal: abre-se a porta da rua, a nova morada do cão ou do gato. Ou, muitas vezes, a certidão de óbito antecipada que lhe passam.

Na notícia, uma dirigente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal sugere que este triste estado de coisas é o espelho da falta de educação. Assino por baixo. Se houvesse mais civismo, sobretudo dos que deviam dar o exemplo (os senhores deputados que fazem leis), os donos de animais domésticos deviam ser cadastrados. Os que tivessem o cadastro manchado por um vergonhoso abandono de animal de estimação, um único que fosse, seriam proibidos de voltar a ter animais em casa. Já que não se pode fazer a gratificante experiência desta gente passar pelo sofrimento sentido pelos animais que abandonam, ao menos que fossem cadastrados para nunca mais abandonarem um animal.

O mal maior é este: viver numa república com leis tão anacrónicas como a república. Por exemplo, o código civil ensinar que os animais são "coisas".