6.1.10

Vertigem de um momento



Os momentos que se consomem no seu próprio precipício são gratificantes. Ou apenas uma armadilha que condensa vivências irrepetíveis. Desamparado no meio da encruzilhada – ora querendo revivescer instantes intensos, ora recusando olhar por detrás do ombro – fico preso nas malhas de um momento. É num momento que se tecem resoluções. Atados a um impulso irreprimível, desconfiamos que a opção escanhoada agiganta uma maré tempestuosa, as ondas furiosas esmagando-se contra o peito em nudez. E, ainda assim, empurrados por um fugaz instante que parece incendiar o discernimento, é por aquela vereda que metemos os pés ao caminho. Inseguros.

São vertigens, esses instantes. Sensações embriagantes que se passeiam interiormente numa ordenação caótica. Tempestuosas reacções químicas que tornam as entranhas um lugar febril. Descompensados, pensamentos contraditórios atropelam-se no pensamento exíguo diante da fervilhante dança de contraditórios que se coalham num instante. E, contudo, esse instante aterra numa aparente, ilusória impressão de eternização. Nesses instantes, a física é desmentida pelo prolongamento do momento. Quase se diria que há um toque sublime que emoldura o tempo durante algum tempo.

Quando o corpo desperta da intensa letargia consumida, os sentidos acordam para os segundos voláteis. Os segundos que continuaram a passar, sem darmos conta do rumor dos seus passos. Desmentindo a anestesia temporal insinuada pelo precipício do instante falsamente demorado. O corpo e o pensamento são apoderados por um estranho entorpecimento, como se aquele hiato imoderadamente inerte fosse apenas um buraco negro onde tudo caíra, mas onde tudo faria sentido – um diferente sentido. Tudo: o corpo e o pensamento mergulhados no seu próprio torpor, os outros em redor e as coisas todas, todas as páginas algumas vez lidas. E nesses breves e, contudo, aparentemente demorados momentos, tudo parecia estar em reeducação. Às vezes, sobrava a ideia de mundos paralelos. Os mundos escrutinados pela vagamente onírica sensação experimentada enquanto o instante, na sua intensidade refulgente, punha tudo entre parêntesis. Hipotecava-se o conhecimento.

Os braços moventes, a pele gretada, os joelhos em dor, e os olhos marejados – como se tivessem esbarrado de frente com um vento glaciar – traziam tudo ao seu lugar. Logo nos momentos após o hipnótico instante, confundiam-se as coordenadas como se a bússola interior estivesse danificada. Podia ser do denso mergulho nas águas edaces do entorpecente instante, provada então a acidez dissolvente dessas águas. Ou apenas a tragicomédia da existência, todos nós imersos em tantos mundos paralelos quantos os estados de espírito, os tão voláteis estados de espírito. Saíamos à rua; ou apenas desvendávamos o interior abrindo de par em par todas as janelas, só para deixar entrar o ar frio. Só para testar a sensação do real e tirar as teimas sobre as ilusões, ali em frente dos olhos embebidas num manto congelado.

Nas estepes acobreadas que passam num ecrã mental, havia pedras pontiagudas escondidas debaixo do mato hirsuto. Não as víamos. Só quando os pés sangravam ao serem escalavrados pelas pedras é que dávamos conta da sua existência. Dos punhais ocultos que, traiçoeiros, cortavam a carne e deixavam o abundante sangue à mostra. Era a coreografia demencial dos momentos cruciais que mais tarde aclaravam as veias excruciantes por onde navega o sangue fervente. Ou a sua coloração gratificante. E, todavia, nessa recompensa morava outra invisível armadilha: o resgate das memórias douradas. Como se fosse possível teletransportar esses instantes desde o tempo remoto, lá onde os instantes se consumaram na sua definitividade. Ao contrário: um momento desmaia na sua finitude.

Às voltas com os habituais dilemas, constantemente dilacerado pelos dois hemisférios que dividem o pensamento quando o corpo estaca a meio da categórica ponte. Sem saber se é profícuo retroceder ou avançar. Lá atrás, o lugar cansativo do conhecimento, onde já tudo foi sentido. Mas não sabemos se adiante mora um precipício medonho, ou apenas um aluvião onde se demoram as gratificantes lembranças. Onde, por fim, os instantes de outrora serão uma aterradora eternidade.

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