26.2.10

O Jesualdo é zarolho


Há lugares que contagiam as pessoas. E há contágios que as transformam, sobrando apenas um vulto do que foram. O Jesualdo era um carneiro manso antes de aterrar na poltrona da agremiação local – o, carinhosamente tratado pelas hostes, "folculpuôrto".

(Fazendo tanto sucesso um livro que disseca o vocabulário muito típico das gentes portuenses, quase levando a acreditar que por aqui existe um dialecto, eis uma sugestão aos curadores da língua – sobretudo aos que se arvoram à condição de curadores do regionalismo da língua que por aqui se fala: "folculpuôrto" devia ter direito a entrada no dicionário do idioma regionalizado. Uma curiosa aglutinação de palavras numa só, que entraria, como neologismo, para aquele dicionário. A maneira apressada de falar leva os locais a comerem sílabas. Omitem a sílaba do meio e metade da primeira sílaba do termo "futebol"; trocam o "l" e o "u" em "clube", negando a existência da última sílaba; e agridem o nome da cidade que veneram, subvertendo-lhe o nome por causa do carregado sotaque. Suponho que a febre regionalista e a cegueira que alguns fundamentalistas do norte (os "nortistas") exibem devia chegar para a dupla toponímia nas ruas e avenidas de toda a região. Nas placas que orientam os destinos, obrigatória inscrição no idioma de lei e no pastiche avinagrado que por aqui se fala. Não seria novidade. Pela Europa fora é habitual a dupla toponímia. Para comprazimento dos profetas da emancipação regional, quem fosse para o aeroporto veria inscrito na linha de baixo da placa indicativa a tradução no dialecto local: "aeropuôrto". Assim mesmo, parecido com o castelhano.)

O Jesualdo é um transmontano que se fez alfacinha de gema. Montou quartel no Porto mas resguardou-se do típico sotaque do burgo. Para desgosto dos apaniguados do "folculpuôrto", que, puristas e fanáticos, cegados pelo ódio à Lisboa pedante e centralista ("Lisboa a arder, Lisboa a arder" – bramem, primatas), exigem que os seus falem como eles. Nisto o Jesualdo não foi contagiado. De resto, deixou-se tomar por umas perenes trombas, uma má disposição que já é imagem de marca. E a mania da perseguição, ah! a mania da perseguição: os adversários, emproados ao estatuto de inimigo que tem que ser abatido custe o que custar – custe o que custar – têm inveja do "folculpuôrto". O Jesualdo foi enxertado com a vacina habitual por aquelas bandas. Há lugares em que as pessoas tomam a vacina contra a raiva; por ali injecta-se-lhes a vacina da raiva.

Aprimorou-se, o Jesualdo, no facciosismo de claque. Não há jogo que não mereça ganhar, mesmo quando perde sem espinhas. Para o Jesualdo, os campeonatos e as taças em que a sua equipa entra deviam estar resolvidos à partida. O interesse era saber quem lutava pelo segundo lugar, quem ia à final das taças só para ter o prazer de ver a espinha vergada pela altiva superioridade do "folculpuôrto". Quando não se sabe ganhar, é compreensível que menos ainda se saiba perder.

Ando preocupado com o Jesualdo. Ele deixou de rir. O ar macambúzio é o de quem tem graves problemas digestivos, uma azia que o acompanha a todas as horas do dia. É que nem quando ganha, ou quando os disciplinados discípulos festejam um golo, o Jesualdo esboça um sorriso para amostra. Interrogo-me se não terá sido o arrivismo social da consorte (a Zulmira), que quis aparecer em revistas cor-de-rosa acompanhada do Jesualdo, a fermentar aquela amargura, ele tão imerso num doentio fel.

Eu até entendo o Jesualdo. As más companhias deixam marcas. Apareceu contrariado em revistas cor-de-rosa. Que homem, por mais paciente que fosse, não destilava o permanente ar de quem sente que o mundo inteiro contra si conspirou? As feridas que demoram a sarar, as feridas que se dissolveram em nódulos purulentos, maceraram em permanentes cicatrizes. A cicatriz do Jesualdo é ser zarolho. Quando se mete a fazer julgamentos sobre os jogos em que o seu (por enquanto) "folculpuôrto" participa. É a qualidade inata dos juízes que trocam os pés no alçapão da parcialidade.

25.2.10

Há cada comparação estrambólica…


Sabem o que é honestidade intelectual? É não distorcer argumentos só para atingir o efeito pretendido. Não fazer comparações obtusas. Aquelas comparações que ofendem a inteligência dos destinatários da mensagem e deixam a nu a indigência mental de quem as faz. Acontece com gente empenhada em causas, tão empenhada que o oxigénio passa a ser a causa em que militam. Azamboados com o fim que perseguem, juntam-se ao numeroso exército dos que usam qualquer meio para saciar a sagrada finalidade. Nem percebem que a cretinice da comparação joga-se contra os seus interesses.

Em França, um movimento que empunha baionetas contra os tabagistas (esses novos leprosos) inventou uma campanha que compara o consumo de cigarros com sexo oral forçado. O criativo de serviço explicou-se: "O discurso clássico, do tipo "o tabaco faz mal", já não funciona", argumenta Marco de La Fuente, responsável pela campanha, acrescentando que "a mensagem é "o tabaco é uma submissão". Ora, no imaginário colectivo, o sexo oral é o símbolo perfeito dessa submissão." Estas alarvidades, arquétipo de desonestidade intelectual, comparam o que não tem comparação. Portanto, convém dissecar a comparação para perceber se ela não é uma zoeira ímpar.

As fotografias que acompanham a campanha são sugestivas. Adolescentes (o público-alvo neste assomo anti-tabaco) aparecem contrariados a empurrar um cigarro boca dentro. A pose é sugestiva. Os adolescentes estão ajoelhados diante da silhueta de um adulto, o braço deste a forçá-los a experimentar o cigarro. A pose é sugestiva e metafórica. É, diria, doentia de quem assim a concebe. Além de revelar uma profunda ignorância na arte do sexo. As palavras do criativo falam por si: quem acha que o sexo oral representa, no imaginário colectivo, "o símbolo da submissão" de alguém a outrem, é porque está doente da cabeça. Ou tem assuntos mal resolvidos como seu passado.

Continuo-me a debater com a estrambólica comparação. O vício do tabaco também implica meter algo à boca, é garantido. Que alguém explique ao senhor de La Fuente o significado de cunnilingus. Para deixar de ter pensamentos afunilados sobre o sexo oral. E, de caminho, que alguém faça perceber àquela cabeça de primata que há quem tenha o vício do sexo, nas suas mais variadas formas e feitios. Que se saiba, esse vício não é crime. Nem, para já, pretexto para as autoridades esbulharem a intimidade dos ensandecidos que se entregam a prazeres carnais, as autoridades a espreitarem entre os lençóis (ou noutros locais onde a função se cumpra) para matar o vício à nascença.

Se o efeito pretendido é colocar o tabaco e o sexo oral ao nível de assunto viciante, o senhor de La Fuente estatelou-se ao comprido. Dando de desconto a perseguição aos fumadores, o sexo (nem o oral) não mata ninguém. Podia-se ainda mencionar um efeito psicológico que se espalha entre os mais jovens e que sucessivas levas de cientistas souberam demonstrar e explicar: o fruto proibido é o mais apetecido. Foi aí que percebi que, afinal, o senhor de La Fuente deve ser um agente infiltrado do lobby da cinematografia pornográfica. Suponho que esta campanha vai promover determinados talentos dos jovens imberbes.

Desde que apanho todos os dias com aquela improvável campanha publicitária de uma cadeia de supermercados (até custa pronunciar o seu adocicado nome), aquela campanha que eleva a fasquia do anti-estético a um nível nunca dantes conhecido, já nada surpreende. Esses publicitários devem ser fervorosos fãs de Tony Carreira, Emanuel, B Fachada, Samuel Úria e sucedâneos, a atestar pela bitola estética que emprestam aos anúncios com a sua chancela. Em França, o mau gosto teve outras cores: o zénite da desonestidade intelectual com uma comparação absurda que meteu pelo meio esse assunto eternamente mal resolvido entre muita gente – o sexo.

Um dia destes, um grupelho com embirração por bicicletas fará uma campanha (muito homofóbica) a advertir para os malefícios de quilómetros atrás de quilómetros com o traseiro pousado no selim afiado.

24.2.10

Exorcizar fantasmas


Castigas as lembranças por onde o corpo andou, nessa irregularidade cortante que é o passado. Apraz saber que não há vivalma que não guarde fantasmas em armários, muito bem escondidos dos olhares indiscretos. Daqueles armários cujo mapa é outro segredo, que só os próprios guardam a chave mestra num esconderijo ainda mais confidencial. 

Nos momentos em que te assaltam os fantasmas de outrora, não interessam as dores pessoais que só são dos outros. O que te aflige não as agonias alheias. Contorces-te por dentro com a angústia do impossível esquecimento do tempo já emoldurado que prolonga o fracasso pungente. Por mais que te debatas com fantasmas que se prolongam algozes dos dias presentes, desgastas os vestígios que ensinaram o esquecimento dos dias de outrora. Aprenderas o método, imerso na apoplexia constante de quem sentia as algemas de todos os ontem a marcar a cadência dos hoje sempre adiados. Como se tivessem ensinado a praticares uma salvífica lobotomia em ti mesmo.

Exercício inútil. Nem toda a mestria cegava os dias que envergonhavam. Tentavas, mas não conseguias. Imaginavas outro fantasma, o fantasma-rei de todos os outros. Como se um enxame furioso te perseguisse sem cessar, o zumbido perene a evocar arrependimentos que arrependimento algum conseguira aplacar, e o fantasma-rei de batuta na mão a ordenar o seu exército de irritantes fantasmas. Ele adejava sobre todos os horizontes que frequentasses. Preenchia as tuas memórias com as lembranças que gostavas de apagar. Devorava o teu presente, reduzido às lancinantes dores de outrora. O fantasma-rei, omnipresente, apascenta o perene enxame de querubínicos fantasmas.

Em cada dia que acordavas, depois de outro pesadelo que cavalgava na asfixia do passado, ficavas inerte entre os lençóis humedecidos pelo suor. Com o olhar fixo no tecto, conseguias decorar as suas rugosidades todas. Angustiado pela impossança que consumia as forças que iam minguando a cada dia, a todos os dias doentios que se sucediam, sempre na mesma rotina castradora. Sentias que as dores dos muitos arrependimentos lavrados, dos inúteis arrependimentos, incendiavam a impossibilidade de exorcizar os malvados fantasmas.

Ensaiavas simulações. Fazias de conta que tudo era diferente. A começar por ti e pelo tempo que fora as tuas circunstâncias. Depressa aterravas na desoladora sensação: uma simulação não deixa de ser isso mesmo, uma simulação. As encenações, por mais empenho que pusesses nelas, mascaravam o palco onde a tua existência errava. Na impossibilidade de exorcizar o exército de querubins que se apoderavam das memórias, convenceras-te que a vida ou deixara de fazer sentido ou era para ser levada com indiferença.

Conseguiste derrotar impulsos suicidas. Foi quando descobriste o que anos a fio ocultaram. O segredo era não dar importância à existência. Anestesia do mundo que te cercava. Para te anestesiares de ti mesmo. Aprenderas que estacar diante do espelho até te convenceres que a silhueta no espelho não eras tu, não passava de uma ilusão sem sentido, uma pura perda de tempo. Caminharas entre as cinzas apodrecidas, as cinzas já frias que te convocavam a desistir de tudo. Aquelas cinzas enegrecidas eram a metáfora perfeita do desassossego. Mas uma metáfora por antinomia: quem sabe se as cinzas putrefactas não seriam o derradeiro leito onde enfim acharias consolação? Resististe ao apelo fácil da desistência. Resististe por covardia (pelo menos foi nisso que acreditaste).

Quando acordaste no dia seguinte, o rosto ainda pintalgado pela fuligem das cinzas levantadas pelo vento nocturno, a revelação por acaso – como se fosse uma beata aparição a decifrar o enigma que sempre fora o travão na existência. Deixavas de te lembrar como eu inteiro. Repudiaste a importância do mundo que se insinuava diante dos olhos. Deixavas-te ir ao sabor do vento que soprasse em cada instante. Não era resignação. Apenas uma terapêutica indiferença. Por tudo. A começar pelo eu enfim despojado.

Alcançaras o de tão longe perseguido segredo. Sem nenhum exorcismo.

23.2.10

Discretas ilegalidades


As que passam incólumes, debaixo dos narizes dos zelosos estafetas da legalidade que, para o caso, andam distraídos. Por exemplo: a publicidade a automóveis que garbosamente anuncia os dotes mecânicos e a velocidade estonteante que podem atingir. Um convite à ilegalidade que – dir-se-ia se fôssemos todos legalistas ou polícias de costumes – devia ser punida antes do tempo. Assim como assim, já são tantas as entorses aos alicerces do Estado de direito que ninguém notava a aberração.

Estou à espera de ficar uns tempos sem poder conduzir depois de ter sido fotografado a cento e dez quilómetros por hora, quando não devia ter ultrapassado os oitenta. Exigiria vingança contra os que perdem amor a uma pipa de massa e compram automóveis de avantajada cavalagem, protestando por serem eles os potenciais infractores ao código da estrada. Quem se deixa enamorar por um bólide potente para andar a passo de tartaruga, em obediente postura das leis? Os barrigudos agentes da GNR deviam cair em cima deles. Mas não vou por aí: juro que não é por a vingança ser diminutiva de carácter, ou por as três frases anteriores parecerem retiradas da retórica da extrema-esquerda que detesta qualquer sinal exterior de riqueza. Não vou por aí, porque o atropelo da lei (como sinónimo da autoridade pública) é estimada pelo anarquista.

Lembrei-me do assunto quando assistia a um programa de televisão em que um automóvel transbordante de potência era ensaiado. As imagens filmadas do interior nunca o mostraram em alucinante velocidade. Não fosse o diabo tecê-las e um escrupuloso agente da autoridade puxasse dos galões, lavrando a multa provada pela transmissão televisiva. O respeitinho é muito lindo, sobretudo na terrinha em que ele é cultivado com tanta devoção.

O convite à ilegalidade ficou para depois. Quase no fim do programa, o jornalista debitava informações sobre o desempenho do automóvel. Retive que é capaz de chegar aos cem quilómetros por hora três segundos depois de ainda estar imobilizado. E pode atingir os duzentos e quarenta quilómetros por hora. Admito que estes programas não encham as medidas do "legislador" (esse feixe de cérebros que nunca tem rosto), da malta que trabalha na prevenção rodoviária e dos pançudos agentes da "brigada" (de trânsito). Sugiro que deitem um olho, mesmo que seja só de soslaio, para aguçarem o apetite. Não o mesmo apetite que me leva a ser espectador ocasional destes programas; apenas o pretexto para imaginarem o paraíso das multas passadas a quem anunciasse (em publicidade ou programas de televisão) a possibilidade dos automóveis dobrarem a velocidade máxima autorizada pelo código da estrada.

Vamos lá a pensar em sincronia com as distintas cabeças do "legislador", da malta da prevenção rodoviária e dos pançudos agentes da "brigada": o mal está a montante, nos fabricantes de automóveis. Quem os manda encharcar os motores de potência, convidando os proprietários a escorregarem o pé no pedal direito, tanto que nem sequer dão conta que já passaram – e muito – os limites de velocidade? A extrema-esquerda caviar seria pródiga em propostas radicais: por cada automóvel que saísse da fábrica em condições de violar o código da estrada, uma pesada multa para a empresa. Só me espanta como a seita socialista, sempre tão diligente em inventar regulações e coimas pesadas, não tenha inventado uma multa escondida no imposto pornograficamente elevado aos que ousassem comprar estes automóveis vitaminados. Até para dar razão à extrema-esquerda caviar, que acusa a seita socialista de ser muito sensível aos interesses do "grande capital".

Ai de quem invocasse o desmazelo pelos alicerces do Estado de direito (não se condena ninguém sem objectiva infracção – só para recordar). A seita socialista diria, naquele jeito habitualmente desastrado que se mistura com o auto-convencimento das suas invencíveis certezas: não foram apanhados em excesso de velocidade, mas com tantos cavalos debaixo do pé direito podem-no ser a qualquer momento. Multem-nos já.

22.2.10

Os elementos transbordantes


A natureza ainda tem voz própria. Uma voz indomável. Terrífica, quando monta na crueza das cordas vocais e troa lampejos assassinos. Mas a natureza não é assassina. São só os elementos no seu jogo tão aleatório. Por vezes enfurecem-se. Revolvem-se nas entranhas, regurgitando chuva e vento, e depois uma torrente de água e lama e pedras e os restos que apanha pelo caminho. Para semear um cenário de devastação.

É quando a natureza retoma a sua voz rebelde. Por mais tentativas que façam para desenhar os limites dos cursos de água, a muita chuva despejada desce pelas encostas e alimenta as ribeiras. Elas vêm por ali abaixo, não estorvadas pelos limites que na alcantilada serrania são confinados pelos próprios elementos. Um caudal caótico de água misturada com lama e pedras e ramos de árvores faz-se às planuras, sossegando quando encontra a embocadura no mar (que entretanto se tingiu do acastanhado letal das ribeiras enfurecidas). Inúteis as artificiais estremas que a engenharia civil concebeu para domar a ribeira. Num ápice, centenas ou milhares de horas em desenhos nos estiradores dos engenheiros ficam reduzidos a nada. Ao mesmo nada em que a furiosa enxurrada dissolveu a paisagem.

As nossas fragilidades saltam à vista. Por mais que avancem os conhecimentos. E que se esbocem engenhosas soluções para domar os elementos. Eles apaziguam-se diante das obras que, dir-se-ia, são viperinas à sua essência. Temporariamente, apaziguam-se. Os elementos adormecem na placidez da engenharia humana. Convencemo-nos que os derrotámos com a definitividade das certezas que se embelezam com a sua própria assertividade. Tão científicas, essas certezas e, todavia, depostas em nada quando a natureza irada troa a sua voz. Um ilusório adormecimento. A natureza não renuncia. Aplaca-se, condescendente, no tempo que corresponder à miragem dos sentidos.

Quando se erguem da hibernação a que foram atados, os elementos vingam-se. Implacáveis, trepam nos contrafortes da cólera e transbordam as demarcações da mão humana – as demarcações que lhes são estranhas. A cavalgada insubmissa redescobre novos limites depois de derrotar os limites artificiais da humana e engenhosa mão. É o retrato do caos sobrante que destoa da harmonia, nos lugares onde antes houvera harmonia. As ribeiras transbordantes fazem o seu novo leito. Cansadas das demarcações encamisadas por onde correram anos a fio, despejaram uma enxurrada de calhaus nesse leito e galgaram para as imediações. Passaram a correr onde antes havia estradas.

Já extenuados da ira que consumira vidas e haveres, os elementos acalmam-se. Os despojos da destruição misturam-se com a paisagem redesenhada. Como a paisagem ganhou novos matizes, há gente forçada a recomeçar vida. Deram conta que os haveres foram tomados pela avalanche mortífera. Não sobrou nada – a não ser um amontoado de entulho lamacento que exige demorada limpeza. Entre o nada que têm entre mãos e a vida assaltada pela voragem enfurecida dos elementos, um mal menor.

Somos um pequeno, insignificante nada diante dos elementos quando eles acordam irados. Um impressionante depoimento de fragilidade. Da incapacidade para prever intempéries que desatam em cataclismos, quando a atmosfera resguarda surpresas que nem a mais científica geofísica consegue antecipar. E da impotência para levantar um dedo em forma de reprimenda quando os elementos crescem na imparável fúria interior e pulverizam tudo à sua frente.

19.2.10

A paródia da morte


Em Amesterdão, imóvel para o retrato. Nas costas, um pantomimeiro a fazer a figura da morte, de negro vestido, uma careta em forma de caveira. Ondeava de um lado para o outro a ceifa fatal, com o perfume da catástrofe. Em movimentos delicodoces, tudo à volta subitamente imerso num silêncio arrepiante – nem a manada de carros ou a multidão concêntrica ecoavam ruído algum. O homem parecia absorto na tétrica coreografia. Estacado no meio da praça central, ninguém se aproximava dele. O bulício da cidade que ali confluía desviava-se do vulto medonho, como se os transeuntes espontaneamente traçassem a esquadria às imediações da morte. Alguns esboçavam arrepios enquanto desviavam envergonhadamente o olhar para o negro vulto. Outros, possuídos por uma superstição belicosa, afastavam os olhos para os antípodas do inglório pedinte.

E eu, medroso da morte por causa do ateísmo que ferve nas veias, posava para o retrato com a soturna figura na retaguarda. Gritou mais alto a obstinação em romper a espessa malha das superstições. Apavora-me a morte? Tanto que é o motivo maior para uma demorada e intensa existência – pelo menos são os planos que se enquistam nas intenções. A irracionalidade das superstições magoa mais do que o tormentoso fim de linha que culmina a existência. Nem sequer hesitei em manter a pose para o retrato. Podia mexer-me uns metros para qualquer um dos lados, tirando do horizonte a irascível figura que eternizava a fotografia naquela praça central de Amesterdão. Os pés não quiseram mover-se um centímetro que fosse.

Andei a pensar nisto. A agonia para derrotar as pálidas superstições libertou-me de um freio: verguei as irradiações interiores que tornam a morte uma palavra, uma ideia proibidas. Fui, durante algum tempo, o transeunte mais próximo do lúgubre vulto. Simbolicamente, o desafio à morte. Era como se ela rondasse, ameaçadora como sempre, e nem um arrepio tergiversasse o espírito. Deixara de me intimidar pelo que sempre causara o maior medo de todos. Quis-me convencer de que tinha sido capaz de um feito. Como se tivesse por fim rompido uma barreira que sempre o fora mental.

Mas depois percebi que as coisas simbólicas são isso mesmo, o vácuo dos símbolos. Podia escrevinhar odes em desafio à lancinante morte; mas ela era encorpada por uma decadente figura vestida de negro, empunhando a ceifa que repetia os vagarosos gestos de quem tem uma sede indomável de extrair almas ao contingente dos vivos. As odes não passavam de exibições frívolas, tão ocas como os simbolismos que ostentam um garbo diluído em vapor inodoro. Ao mesmo tempo que sentia uma gratificação imensa pela omissão do medo do vulto da morte, não demorava a interrogar se tudo isto – o pedinte em teatral exibição e a pessoal vaidade interior por ter desafiado a morte – não era uma paródia inteira, uma simples encenação sem qualquer sentido.

Passeei pelo fogacho da coragem imberbe. Como aqueles que parecem tomados por um inexplicável ensandecimento e se atiram de cabeça para diatribes impensáveis, mesmo para o coração de uma fogueira que arde bem alta. São os que costumam ter um final triste, o derradeiro final, iludidos que a fátua coragem será exaltada por poetas em forma de ode. Ao fim de tudo, dei conta que nem os ecos da teatralidade fossem superados e o peito farto que fiz à morte representassem uma mudança de cenário pessoal, era só um nada aconchegante desenlace. A morte ainda tem remédio. A coragem dos venturosos que desfilam essa vã vaidade antes do tempo é uma miragem que os mais lúcidos testemunham, atónitos pela irresponsabilidade dos que se aprestam a desgastar, tão gratuitamente, a única vida com que foram agraciados. 

Quando voltei a passar naquela centrípeta praça, o vulto já tinha desaparecido.

18.2.10

E os capitalistas, não há quem os extermine?


Consumo com muita curiosidade as crónicas que um dos novos gurus da extrema-esquerda caviar escreve na última página do Público. Já andava com saudades de Rui Tavares, que há uns meses anunciou reclusão voluntária para tratar de tarefas académicas. Ontem vi-o de regresso aos textos que destilam aquelas certezas que só os néscios (os que dele discordarem) não conseguem entender. Exultei.

Ontem, Tavares denunciou um plano que se decompõe em quatro actos (como se fosse o guião de uma peça de teatro), um plano que mascara a opressão dos muitos não ricos pelos poucos muito ricos. Os muito ricos, até o aparelho do poder dominam. Porventura ensaboando as mãos dos gananciosos políticos com prebendas faustosas que desatam aquelas assinaturas que andavam presas na ponta da caneta ministerial.

Eis a sequência dos actos. Primeiro, aos muito abastados deferiu-se o pagamento de menos impostos, porque nos emprenharam os ouvidos que são eles que geram riqueza. Segundo, a alta finança "implodiu" por falta de sensata regulação do Estado sempre benfazejo. Tornou-se imperativo o Estado vestir a fatiota de salvador, acudindo à alta finança. Terceiro, a alta finança regressou às pornográficas distribuições de proventos sem termos saído da crise que ela causou. Para a conspiração ganhar contornos mais nítidos, no quarto acto aparecem os habituais economistas, a soldo (como "toda a gente" sabe) da alta finança, a espumarem raiva contra o falido Estado, esboçando um sombrio diagnóstico: isto só lá vai com "corajosas" reformas a que os reis da inércia (os sindicatos) se opõem com o habitual folclore de rua. Tavares deixa ao critério do leitor adivinhar a feição do quinto acto.

Peço desculpa se abastardei o raciocínio tão límpido com uns lampejos pessoais que apimentam a peça de teatro que Tavares contava na última página do Público. A um pobre de espírito (eu, para que não sobrem dúvidas) não é facultado o iluminado discernimento dos inspectores das demoníacas cabalas que oprimem os não ricos. Contudo, continuo a aprender de cada vez que Tavares escreve naquele jeito meio blasé, meio informal (que com a informalidade mais cativa a gentinha que não está virada para erudições espúrias e ininteligíveis). Ia sugerir que Tavares é catedrático da teoria da conspiração por revelar as congeminações dos tubarões da alta finança. Retiro em batida. A um pobre de espírito não é devida a ousadia de contestar os viveiros onde nidifica a mais pura intelectualidade.

De forma que estamos neste estado de coisas: os capitalistas, aqueles de punhos de renda e sempre, sempre de colarinhos brancos (mesmo quando a cor da camisa é outra), os tais que tanto amesendam no poder que em pezinhos de lã se apoderam dele, são avatares de uma satânica figura criada para oprimir a esmagadora, silenciosa maioria dos não ricos. Como dizia aquele artista popular de que não gosto (outra vez: não passo de um pobre de espírito que perfilha duvidosos padrões estéticos), "eles comem tudo, comem tudo e não deixam nada". Os sacanas.

Se pudesse ao menos sair do obscurantismo da insciência e me fosse dada a bênção (sem ofensa a Tavares – e, já agora, a mim também) de espalhar a sua verdade, saía às ruas a convocar as gentes todas para a rebelião contra a maralha dos ricaços. Sob ameaça de sublevação popular (a democracia está na rua – ah, que saudades!), daríamos duas opções aos mastins que nos comem até aos ossos. Ou iam a bem, ou iam a mal. Ou prescindiam do aluvião de privilégios que extraem das servis autoridades, inclinando-se perante a tutelar, dir-se-ia, divina figura do Estado, pagando impostos justos, partilhando os lucros com os trabalhadores que tanto oprimem, obrigando-se a fazer muito mais mecenato e a pagar generosas subvenções aos caritativos sindicatos e aos seus apóstolos, os sindicalistas que não devem ser assaltados pelo frémito do trabalho; ou a violência ecoava em todos os corredores, até que esta gentalha fosse exterminada e toda a sua abastança dividida pelo povo faminto.

Estou convencido: não há teorias da conspiração. A pandilha de sacripantas da alta finança tem que ser domada. A bem ou a mal, a escolha é deles. Só para mostrarmos (Tavares, eu, seu humilde seguidor, e todos os demais não ricos que alinharem na amotinação) que até somos tolerantes.

17.2.10

As delícias da educação socialista


Já devo ter escrito isto muitas vezes: eu adorava ser socialista (se ao menos houvesse um milímetro de tangência ideológica…). Pois eles estão sempre cobertos de razão – e eu, que não dou uma para a caixa. Ora, sempre ouvi dizer que a força da razão vale mais do que razão da força. Quando os socialistas se agarram à lógica dos números, cheios de orgulho por terem sido escolhidos pela maioria da turba que foi a votos, são gente viciada na razão da força. Por cá, que ainda estamos na infância dos valores democráticos (a tolerância? A capacidade de negociação com os outros?), as vitórias em eleições transformam-se em contrato ilimitado para uma governação onde são admitidos assaltos constantes aos direitos fundamentais. 

Numa casa de banho pública em Liège, depois de aliviar a bexiga, li o seguinte enquanto lavava as mãos: "é obrigatório lavar as mãos depois de ir aos lavabos". Em letras garrafais, para a mensagem entrar pelos olhos de quem ali esteja a lavar as mãos após as necessidades fisiológicas. Na linha de baixo, em letras mais pequenas, o número da lei que explicava o bê-á-bá da higiene em casas de banho públicas. No ano da lei (2007), a Bélgica era comandada pelos socialistas, que nisto da engenharia social estão sempre três passos à frente dos outros. (E ainda se gabam do feito.)

Esta advertência, em tom muito sério, levantou-me dúvidas. Primeiro, é uma lição desnecessária. Quem a lê está a lavar as mãos. Se já está a fazer o que o atencioso legislador belga exigiu, está a cumprir a lei. Assim chegamos ao epicentro do assunto: a paternalista exigência do atencioso legislador belga fica a falar no vazio. É como um comício cheio de pompa e circunstância, o tribuno em exaltada oratória e, do lado de lá do púlpito, não se vê vivalma. Os sabujos que saem da casa de banho sem passarem pelo lavatório, depois de terem mexido nas partes pudibundas ou de terem limpado com papel higiénico as sobras do que obraram, evadem-se da legal exigência. O que lhes acontece (para além de carregarem o fardo da imundície que só a eles diz respeito)? Nada. A menos que um dia destes, o legislador belga (se ainda fosse socialista) pusesse um espião em cada toilette pública só para confirmar se a gentalha não se esquece dos imperativos hábitos de higiene. Para multar, multar a torto e a direito.

Segunda interrogação: consta que a escola pública na Bélgica ocupa um lugar dominante no ensino. Os socialistas desconfiam das aptidões educativas dos progenitores. Na escola – portanto – ensina-se tudo e mais alguma coisa. Até se educam as criancinhas para a cidadania. A que começam, em pezinhos de lã, a interiorizar ainda na tenra idade. E a cidadania mais séria de quando forem maiores de idade. Se uma lei exige que a malta lave as mãos depois de aliviar os líquidos e sólidos a mais dentro do corpo, é sinal de que a magnífica educação pública fracassou. E os socialistas que a conceberam, também.

Se não estivesse a falar de socialistas – que têm um catecismo muito próprio, de tal modo que as ovelhas tresmalhadas são aberrantes criaturas que só merecem desdém e ostracismo –, ainda trazia para cima da mesa a sobranceria de se substituírem à educação dos progenitores. Não vou por aí para não lesionar mais a seita socialista: se fossem levados a admitir que a gentalha é inculta, como justificar que ganhem tantas eleições?

O mau feitio que acidula as veias fez-me morder no arrependimento. Já era tarde. As mãos: já as tinha lavadas. O que apetecia era "deslavar" as mãos, só para transgredir a absurda lei socialista. Quando as autoridades querem educar com este assepsia irritante, com intrusões que se multiplicam no tempo, apetece-me ser um homem das cavernas, um boçal homem de Neandertal, desgrenhado, grunhindo monossílabos, comendo com as mãos depois de ter feito sabe-se lá o quê com as não lavadas mãos.

Um dia destes, quando os belgas forem à casa de banho, por cima dos mictórios uma lei em letras outra vez garrafais exigirá que seja a mão (a esquerda, para rimar com a ideologia dominante) a segurar no falo em micção. Vão para o raio que os parta.

16.2.10

A vaca sagrada da língua

Argumentos assombrosos: devemos ser pastores da língua nativa enquanto ensinamos nas universidades. Ou a língua corre o risco de se tornar um arcaísmo, uma língua que seria quase tão morta como o latim. Com esta causa no fio do horizonte, tomam-se dos remos que movem contra uma – dizem – tormentosa maré que pinta a modernidade com cores aflitivas: o inglês que está por toda a parte e se insinua como doença irremediável. O inglês que ameaça colonizar as nossas salas de aula. De braço dado com os alunos estrangeiros que aproveitam programas de intercâmbio. Talvez terminar esses intercâmbios seja a solução.

Há quem faça aulas bilingues. Metade da aula na língua nativa e a outra metade em inglês. Julgo que o façam por elementar justiça. Ninguém fica prejudicado: nem os alunos indígenas, que não se sentem à vontade com outra língua senão a sua; nem os alunos estrangeiros que, já que foram admitidos a estudar, devem tirar proveito do que lhes é ensinado. E por aqui chegamos ao cerne: a comunicação. Como nos conseguimos entender, sem ser por linguagem gestual, ou por infantis desenhos esboçados num papel, ou através dos préstimos de um tradutor? Só me ocorre uma resposta: uma língua que seja o máximo aglutinador comum. Nos tempos em que estamos, o inglês.

Os pastores da língua materna podem não aprovar o diagnóstico. Mas o diagnóstico passa, e de longe, por cima do seu voluntarismo. As coisas nem sempre são o que gostaríamos que elas fossem. O que parece irremediável (jogando os dados que conhecemos) é o inglês enquanto o tal máximo aglutinador comum; sim, podemos soletrar a expressão sem temer o esgar de reprovação dos outros: uma língua franca.

Quando alguns acenam com o cenário dantesco do desuso da língua, parece mais um pretexto do que um argumento. A língua nativa continua (e continuará) a ser ensinada desde os bancos da escola, quando as criancinhas são apresentadas aos rudimentos da língua na sua forma falada e escrita. Diga-se de passagem, aprendem-na cada vez pior. Com modismos pedagógicos vanguardistas que instruem os professores para a condescendência com os erros ortográficos. Quem paga as favas são os que apanham estes adolescentes ainda com as fraldas universitárias. Escrevem uma língua de trapos, com profusão de frases ininteligíveis e erros ortográficos. Será que os meus colegas que estão perplexos com a desvalorização da língua materna se querem substituir aos professores das escolas e passar a ensinar nas universidades a língua tão maltratada?

Este argumento é – repito – mal amanhado. No ensino universitário, a língua é um instrumento. Não é objecto de cultivo (descontando os cursos onde se estuda a literatura da língua materna). É um instrumento ao serviço do ingrediente mais importante da dialéctica entre professor e aluno: a comunicação. Se não conseguirmos comunicar o que ensinamos, o conhecimento esbarra na barreira comunicacional. Contribuímos para a frustração (e para o fracasso) dos alunos. E ditamos a nossa própria incompetência, ao mesmo tempo que, em tribo, nos encantamos com os contrafortes das torres de marfim onde nos enclausuramos. Desta vez, um diagnóstico pouco confortável para quem ensina.

Se nos resta o consolo do que fazem outros países que consideramos mais avançados, é que em alguns deles todo – enfatizo: todo – o ensino nas universidades é feito em inglês. Quer haja alunos estrangeiros misturados com alunos nativos, quer só estejam estes na sala de aula. E, que se saiba, esses países não se barricam nas catacumbas do atraso por deixarem de usar a língua materna quando ensinam saberes universitários. Nem sequer a sua língua escorrega para o estatuto de língua morta. Não quero acreditar que os pastores da língua nativa (por intermédio do que ensinamos) aceitam a ostentação da medalha do orgulhoso isolamento internacional. Esses foram outros tempos; esses sim, de um atraso vergonhoso.

Eles laboram numa tremenda confusão: a língua de que se dizem zelosos guardiães não é salva só por continuar a ser usada nos bancos das universidades. O lugar próprio para a defesa da língua é a literatura. (E, mesmo aí, quem não se recorda de Fernando Pessoa e de Jorge de Sena a escreverem poemas em inglês? Esses poemas perderam os pergaminhos da literatura portuguesa?)

(Em Wessem, Holanda)

15.2.10

Tabaco sem fumo

Os químicos são os patrões do mundo (pelo menos deste mundo que se chama moderno). Os químicos-pessoas, peritos na manipulação dos elementos, que descobrem coisas ora fantásticas, ora aterradoras. Ficamos gratos por a existência ser mais confortável, mas logo desconfiamos quando alguns usam a criatividade para fins suspeitos.

Acabei de saber que há cigarros que não deitam fumo. Têm menos nicotina do que o tabaco normal e duram (diz a ruidosa publicidade) dez minutos até se extinguirem de vez. Enganam os polícias dos bons costumes que perseguem os fumadores como se fossem os novos portadores de lepra. Continua a publicidade: os cultores do tabagismo até podem cometer a provocação de puxar um cigarro mesmo nos lugares onde é terminantemente proibido exalar o fumo empestado de venenosa nicotina. Dá-se o caso destes serem cigarros (como dizer?) de prestidigitação, cigarros que se fumam sem libertarem fumo. Uma contradição de termos desfeita porque os químicos-pessoas descobrem funções químicas que transformam as convenções.

Puxamos pela memória e por outros exemplos de manipulação dos elementos: café sem cafeína, adoçantes sem sacarose, cerveja sem álcool, leite sem lactose, pão e bolachas sem glúten, ovo em pó usado na confecção industrial de bolos, puré de batata sem vestígios do tubérculo. E há os sucedâneos, uma espécie de banha da cobra para quem anda à procura do barato e não se importa de ser atraiçoado pelo sabor de quinta categoria, ou ficarem com o restolho da frustração quando o sucedâneo fica a léguas de distância do original. É quando os peritos da química não levam vinte valores. Quando os melhores esforços fracassam na tentativa de encontrar um substituto perfeito através de uma pletora de químicos. Nem sempre a artificialidade vinga. A natureza ainda consegue ser irreplicável. E os químicos-pessoas descem à sua condição humana.

Os peritos no assunto tentam-nos convencer que as suas invenções são assépticas e que esse é um dom que legam ao bem-estar da espécie. Todavia, uma certa maré revivalista irrompe contra padrões demasiado desumanizados por fugirem dos parâmetros da natureza como a conhecemos, tocando uma nova madrugada onde tudo é fabricado dentro de laboratórios. Noutras ocasiões, lemos estudos que contrariam a retórica das metódicas conquistas dos ratos de laboratório. Argumentam que há doenças cancerígenas que se desenvolvem pela mutação dos elementos, pois o organismo reage mal a essas adulterações.

Neste lugar e neste tempo que são o altar-mor da adulteração da informação, ficamos por saber onde está a informação fidedigna e onde encontramos estudos comprados em antecipação para chegarem a determinada conclusão. O melhor é seguir com os dias sem medir as consequências. De outro modo, entramos numa espiral de histeria e, um dia destes, passamos mais tempo a consumir informação sobre o que nos alimenta do que com a tirar prazer da alimentação. Então a comida e a bebida seriam despromovidas a um rotineiro, mecânico acto com serventia única de subsistência. Como se nos diluíssem os prazeres gustativos, refugiados na psicose dos ingredientes e de como são fabricados.

Eu, não fumador, fiquei maravilhado com a invenção do tabaco sem fumo. Um feito que merece aplauso demorado, a ser creditado aos inventores. Imagino os fumadores militantes, fartos de serem perseguidos pela polícia dos costumes e pelo numeroso exército de agentes secretos que estão convencidos que a delação é aspiração máxima de cidadania. Imagino-os num restaurante, após opípara refeição, a puxarem de um cigarro. Imediato, o soar dos sonoros alarmes, pelo ar de reprovação dos censores morais em redor e pelas vozes indignadas que vociferam, alto e bom som, que a sagrada lei é para cumprir. E o nosso fumador, indiferente e bonacheirão, incapaz de guardar para si um esgar de desdém, acende o cigarro e ostenta-o na sua esfíngica ausência de labaredas e de fumo. Para os outros em redor engolirem em seco. Uns boquiabertos, outros irados por ter havido um químico-pessoa que descobriu o tabaco sem fumo.

(Em Wessem, Holanda)

12.2.10

O arquitecto “softly fashionable”


Já sei: os estereótipos são areias movediças, terreno onde amiúde se traçam bissectrizes de injustas generalizações. Nem todos se tomam pelo padrão aferido pelos estereótipos, bem sei. E, contudo, acontece conhecer vários arquitectos que são os fautores da idiossincrasia que se segue (dos que conheço, só uma minoria foge do estereótipo).

São os arquitectos assoberbados pela estética e com a mania que estão e são a vanguarda. Parece que não se interessam muito pela substância das coisas, tão atarefados em compor uma imagem (sua, ou dos edifícios que saem dos estiradores) que não passa do papel de embrulho em que se vestem. Propõem-se transformar os padrões: o que para os néscios (os não arquitectos) se limita a uma ausente substância (a estética), para eles converte-se em conteúdo. Eu diria: transforma-se em credo, uma linguagem codificada que só eles falam, uma língua de trapos em forma do traço vertido do estirador em momentos de arrebatadora inspiração. Naqueles instantes em que, acometidos por uma espécie de inspiração divina, dão um salto no futuro, fazendo o futuro através do seu traço presente.

O arquitecto passeia-se, supostamente discreto; mas falsamente discreto, naquele mistério que resguarda uma putativa timidez que é apenas um invólucro onde esconde a superior diferença. Está sempre na crista da moda. Da moda que segue os ditames das vanguardas que também ensaiam os seus modismos. Um dia destes, já o frio invernal apertava, apareceu com um (como lhe chamar?) cachecol alternativo, que a mim me parecia uma écharpe feminina, negligentemente apertado à volta do pescoço. Comentei com alguém, do sexo feminino e porventura, ao contrário do que fui acusado de ser, não bota-de-elástico.

- "As modas mudam", advertiu ela. "As fronteiras entre o vestuário masculino e feminino esbateram-se."

- "Assim como assim, até já se inventou a moda 'unissexo'", anuí com algum cinismo de permeio.

O arquitecto desfila na sua pose discreta que é, todavia, notória. As roupas sempre escuras, como convém quando nos achamos dentro da tribo das vanguardas estéticas. Melenas grisalhas falsamente despenteadas, como se os cabelos desalinhados o fossem mercê de uma aleatória arquitectura capilar. Mas o arquitecto que passeia a sua sibilina superioridade estética também fala, de vez em quando, só para conhecidos – que aos demais reserva a indiferença dos mal-educados. Pasmamos, os que olham para a altivez estética do arquitecto, aquela sobranceria que se arrasta detrás da circunspecta aparência, quando algumas palavras se atamancam à saída da boca. É que o arquitecto encavalitado na proa da vanguarda estética tem (os que forem sensíveis ao "fascismo social" não leiam à direita do parêntesis) cerrado sotaque beirão. Não conhece "esses" e "cês", só "xis"; nem pronuncia o "zê", pois só conhece o "jota".

Talvez não saibamos que os pastores da estética vanguardista são exilados das beiras que aterram na grande urbe e jamais se desprendem do sotaque denunciador. Descobri isto: a vanguarda da estética, ó reino admirável e tão cheio de conteúdo, democratizou-se. Já não é uma oligarquia citadina que redesenha os sinais dos modismos à medida que sentencia os alvores de uma nova época. A igualdade de oportunidades soergue-se. Até nesse universo tão insondável, tão exclusivo, tão fechado à entrada de intrusos, dos que fazem arquitectura e se consideram três passos à frente do comum dos mortais quando se ajuíza a perícia estética. (Como se isso tivesse alguma importância.)

Foi quando o fantasma que me cerca todos os dias subiu de novo à ribalta. O "querido líder" da pátria (o fulano que um dia destes surgiu, ufano, rodeado de mulheres na comemoração do centésimo dia do segundo governo que chefia – um feito!) pode não ter sotaque que seja delator da origem regional. Veste fatos Armani. Mas não deixa de ser um labrego escondido em aprumadas e dispendiosas farpelas. Nenhum papel de embrulho, por mais vistoso que seja, por mais que bosqueje uma meticulosa operação de cosmética, transforma um labrego noutra coisa qualquer. Nem que seja um arquitecto (chancela mínima para atestar a vanguarda da estética) que arrasta consigo os tiques todos do código genético das vanguardas que interessam.

Talvez seja por isso que o arquitecto "softly fashionable" fala tão pouco.

11.2.10

Está uma chuva de molha-tolos


Interminável. Ou apenas persistente, se a lente não embaciar com o pessimismo irremissível. Dizem os almanaques, os que glorificam a voz do povo no altar da sabedoria, que é a chuva que se entranha nos ossos. Como se humedecesse as grossas camadas de roupa invernal, beijasse a epiderme e daí se infiltrasse na carne até chegar à marfínica ossatura. Lá fora, o dia cinzento demora-se, teimoso, levitado pela alvoroçada chuva que, diz-se, molha os tolos. 

E por que molha os tolos esta chuva? Os outros, os muitos e muito certinhos, que transbordam no caudal da sanidade mental, passam pela água sem se molharem. Só os que foram acometidos por maleitas tratadas em divãs de psiquiatras é que se entregam ao catártico efeito da chuva molhada. É que também podíamos interrogar a supina sabedoria popular, desafiando-a a distinguir a chuva que molha da chuva que cai seca. Talvez a demência seja atributo da sabedoria exalada pela – dizem – insuspeita voz do povo.

E, todavia, a chuva que cai numa cadência certa, misturando-se com uma humidade que se insinua nos contrafortes da mais sólida ossatura, essa é a chuva que não larga o dia. Até para os aduladores da chuva, esta morrinha tem o condão de irritar espíritos sorridentes. Diria que se trata de uma encomenda da sociedade unida de todos os psiquiatras, tão ansiosos por verem o mapa coberto por um estado depressivo.

Não apetece rir. Não apetece sair de casa. Não apetece entregar o corpo ao ar rebarbativo que se pôs pelo capricho meteorológico que trouxe esta insistente, inoportuna chuva. Não há nenhum pedaço de lugar seco. Até as casas parecem invadidas pela humidade que se apoderou da atmosfera. Nas janelas, onde do outro lado continua a chuva entediante, escorrem gotículas que se condensam da humidade que derrotou o isolamento térmico. A chuva que molha os tolos deixa-nos tolos à medida que escoam as horas e a noite se promete, sem que o céu tenha sido desocupado pelas densas nuvens que o colonizaram.

O enfadonho dia da chuva que molha os tolos desafia até os que têm o juízo todo nas suas muito certinhas cabeças. Impacientando-os. Testa a tolerância com os elementos, a tolerância com os outros (que parecem inconvenientes), a tolerância com tudo. As árvores que se saciam nesta água abundante e fria alinham na desordem dos homens. Esboçam um largo sorriso, o comprazimento interior que as percorre pelos nutrientes que teimosamente caem do mirífico céu. E riem-se dos homens que andam macambúzios diante da intempérie suave. Não se trata de tempestade, pois aí os elementos ensaiam uma furiosa coreografia que tudo desarranja; a chuva que molha os tolos é uma discreta intempérie que aterra de mansinho e se demora por horas que parecem dias, intermináveis horas ou dias, que já nem o juízo parece encontrar a meada ao discernimento.

Nestes deprimentes dias tudo se questiona, até o que dantes era entoado em elegantes estrofes. Por esta altura de cansativa labuta da chuva que amofina, parece que tudo perdeu o seu significado – como se houvesse diferentes azimutes por onde estiolar o pensamento. Uma enxurrada de interrogações acompanha a enxurrada de água que nunca mais pára de cair do impenetrável tecto de nuvens. Nem quero saber que haja cientistas a ensinar a utilidade das águas em que a chuva que os tolos molha se transforma. Que se danem os lençóis freáticos, os rios alimentados, os vales sulcados pelos rios que se reinventam em férteis aluviões, a água como manancial de vida. O exagero descompensa.

Os excessos, perversos como ecoam dos lugares-comuns que nos pastoreiam, trinam os acordes de uma poderosa contrafacção dos sentidos. E somos de uma fragilidade assustadora diante da imparável maré de nuvens que o oceano regurgita em terra firme. Estamos à mercê dos caprichos do oceano. Quando ele se quer vingar, encharca-nos com uma amostra da imensidão de água salgada que acolhe no seu regaço. Só uma amostra produz o efeito abrasivo que é devido à chuva que molha os tolos. E somo-lo – tolos – pela antítese da catarse em que nos consome esta chuva interminável. 

10.2.10

A anedota do dia

está nesta notícia:

Os danados dos mercados e as satânicas agências de rating


Está tudo indignado. O ministro das finanças dá uma entrevista à CNN – valha-nos isso, não no inglês técnico popularizado pelo chefe – assegurando que as finanças públicas caseiras estão bem e recomendam-se. O primeiro-ministro, como de costume imerso no seu mundo muito particular em que os ventos sopram sempre bonançosos, repreende os mercados e as agências de rating que parecem querer sabotar um país. (E não se ignorem as reprimendas do senhor primeiro-ministro.) Até o presidente da república põe de lado as querelas com o governo e, em orgulhosa exaltação patriótica, com aquele ar professoral dos tempos em que tinha a cátedra das finanças públicas, ensina aos mercados que eles estão errados. Nem a internacional socialista se salva do caos: não é que Almunia, o homem que a Espanha colocou na Comissão Europeia, camarada de partido de Zapatero, comparou a fragilidade das situações orçamentais da Espanha e de Portugal com a desordem grega?

Estranhos tempos: ninguém gosta de ser comparado à Grécia. Dir-se-ia que a Grécia tem sarna, e da contagiosa. Quando gente mais ou menos insuspeita (excepto para os heterodoxos que traficam teorias da conspiração) adverte para os riscos da má saúde orçamental e do endividamento público que cavalga a um trote alucinante, por cá há muita gente ofendida que só não crucifica estes agentes dos mercados porque eles não estão por aí à mão de semear. (Aliás, se estivessem, podemos adivinhar o que lhes aconteceria: só temos que recordar a sobranceria e a pesporrência com que o senhor primeiro-ministro reagiu, há semanas, quando o líder de um conceituado banco chamou à atenção para o desastre das finanças públicas.)

É impressionante a capacidade para navegarmos por estima. Só contam os problemas de amanhã; os do mês seguinte, os de anos seguintes, não entram nas equações. Vamos empurrando os problemas com a ponta da barriga. E assim se vão acumulando os problemas, qual perigosa bola de neve só à espera de encontrar a ladeira descendente para engrossar ainda mais.

Olho para o passado, para a incompetência dos sucessivos governos, sistematicamente incapazes de cumprir a meta do défice orçamental que eles previram; e olho para os mercados, para a sua independência – outra vez: não vou sentá-los todos no banco dos réus da actual crise económica, como é tão conveniente ao oportunismo dos heterodoxos da economia – e comparo proficiências. Prefiro confiar nos mercados. Não são eles que têm um longo cadastro de muito mal contados episódios de contabilidade criativa. Não são eles os medíocres alunos de matemática, pois quem erra por sistema são os políticos que fazem previsões para a economia. Se os vejo – mercados e governos – em passos trocados, jogo as cartas todas nos primeiros.

Por isso é incompreensível a histeria dos políticos indígenas que, num uníssono que salta as fronteiras da partidarite aguda, atiçaram mastins aos danados dos mercados e às satânicas agências de rating. Quando a realidade nos dói nas pontas dos dedos, o melhor é encontrar um curativo. Não é fingir que não estamos doentes. Senão, apenas conseguimos prolongar a agonia. Com a agravante de termos gente (que devia ser responsável) a cometer a irresponsabilidade de inocular a anestesia para que o povaréu se convença que não há doença nenhuma. Já era lamentável o estado comatoso disto tudo. Tudo piora quando a classe política, em coro, manda dizer que os mercados são burros e que a doença vai ser curada com uma perna às costas. Eu confio mais na desconfiança dos mercados.

Este coro de virgens ofendidas faz-me lembrar quando alunos vêm tirar satisfações porque não conseguem perceber a nota tão baixa que tiraram no exame. Depois de verem as asneiras que fizeram, ainda assim saem pouco convencidos: o mau aluno sabe mais que o professor. Aí, como neste episódio de não querermos ir para o mesmo saco da Grécia, a maior ignorância é a dos que não querem (ou não conseguem) perceber a realidade.

Um conselho a todos os senhores políticos que engrossaram o coro de protestos: nacionalizem as agências de rating. E, de caminho, os mercados também. Até os heterodoxos economistas vos louvavam.

9.2.10

Delírios

Melhor do que isto, só as opiniões do ministro Lacão. Também conhecidas como "lacunas".

Puritanismo vitoriano, ou o altar-mor da encantadora hipocrisia?


O capitão da selecção de futebol inglesa perdeu a cabeça, cometeu adultério e perdeu a braçadeira de capitão – para além de ter ganho a maledicência e a censura da sociedade inteira. Que, como se sabe, é incapaz de dar as suas facadinhas no matrimónio.

Estamos num estado de coisas em que gente mediática, gente elevada aos píncaros da notoriedade, perde direitos cívicos. Não estou a sugerir que molhar a sopa fora do matrimónio seja um direito cívico. Só estou a afirmar que se trata de um assunto que só diz respeito aos directamente interessados. Apenas a eles, às pessoas envolvidas num triângulo mal resolvido. Se é assim como a pessoa mais anónima que passa por nós na rua (queremos lá saber se atraiçoa ou não), por que não há-de ser com as figuras públicas? A cidadania diminuída será o preço a pagar pela notoriedade – e mais ainda se forem "modelos" para a sociedade que gosta de se rever nesses arquétipos?

Criticamos os (dizem os alarves do costume) atrasados dos árabes por lapidarem em público mulheres adúlteras. E o ex-capitão da selecção inglesa, não está a ser discretamente lapidado em público quando se descobriu que se perdeu de amores (por assim dizer…) pela namorada de um colega da mesma equipa? Quem nunca foi ao Reino Unido não percebe o paroxismo do absurdo. Aquilo é uma rebaldaria pegada. Metem-se uns com os outros, trocam-se entre si, ora às escondidas, ora tirando o véu da ignorância ao que é "vitimado" pelo adultério (que umas vezes não perdoa o deslize, outras condescende e outras até alimenta o devaneio). E os dias continuam a passar uns atrás dos outros, como se nada de terrível tivesse acontecido. Era assim que deviam fluir os dias. Na terra que cultivou a traiçoeira moral vitoriana deviam aprender um adágio lusitano: não meter a colher em assuntos conjugais. E já que um "intruso" afocinhou onde não devia (mantendo vivos os parâmetros convencionais), que não se derrame o restolho do adultério por outros que sobre ele não deviam ser chamados a ditar sentença.

O mais esquisito é o clamor popular que fermenta quando os "modelos da sociedade" são apanhados em contramão. Há muitas vozes indignadas – ele é lá possível que aquele modelo de virtudes tenha sido domado pelas hormonas ferventes? Há muita gente boquiaberta, como se as infidelidades conjugais fossem um crime com direito a cadeia. Este clamor popular aparece emoldurado num curioso retrato: é como se toda uma sociedade se condoesse por ter sido encornada. (Em rigor: aquela parte da sociedade que se ofende e pede contas ao adúltero que o não devia ser.)

Estou ao lado das figuras públicas que têm a sua vida devassada (desconto aqueles que se esforçam por abrir a vida privada à intrusão geral). E não é por simpatizar com essas figuras públicas. Incomoda-me que não possam cometer os deslizes que o povo anónimo se alardeia. Enquanto ao povo anónimo ninguém pode apontar o dedo em sinal de reprovação, é o mesmo povo anónimo que exibe a tremenda indignação quando os "notáveis" são apanhados no cadafalso da lascívia com quem não deviam – e como é interessante, mas abjecto, um qualquer desconhecido meter o bedelho entre as pernas de quem se desvia para os passos trocados da traição à monogamia. Estes parâmetros deformados são a prova da cidadania diminuída dos famosos. Agora foi com John Terry, como ontem foi com Tiger Woods, como em todos os anteontem foi com tanta gente famosa que caiu em desgraça (pública) por não ter sabido ter a "cabeça no lugar".

A menos que os outros, os que não provam a maçã envenenada do adultério mas que o sonham fazer, se amotinem contra os famosos pescados na rede da infidelidade. E que se amotinem pela mais pura das invejas. Já sabemos o que o povaréu diz quando alguém desenha muito.

8.2.10

A anormalidade da normalidade


Fechava a porta do frigorífico. À esquerda, a televisão ligada para ninguém. Desviei o olhar enquanto a colher levava à boca pedaços de iogurte. Passava um talk show produzido nos Estados Unidos – soube depois, um dos mais famosos programas do género. Fiquei ali dez minutos.

Nesse espaço de tempo, pela cadeira do convidado para a entrevista passaram duas senhoras, duas anónimas senhoras. Vieram contar como as suas vidas tinha sido destroçadas pela ignomínia de quem (um pai; um marido) lhes devia afeição. Perante o olhar ávido da audiência, entre olhares estupefactos, olhares vertendo comiseração e esgares enojados. Ninguém arredava pé. Aliás, aquele público – e os milhões de telespectadores que assistem à distância – saciavam-se nas desgraças alheias. Era como se as grotescas revelações trazidas pelas duas mulheres porventura desprovidas de auto-estima (senão, prestar-se-iam ao lamentável papel?) fossem uma injecção de adrenalina em cada indivíduo sentado na plateia.

Desconfio que entre aquele público havia quem intimamente mostrasse comprazimento pelas tortuosas existências dissecadas com mestria pela entrevistadora (acolitada por um famoso psicólogo, que servia ora de tradutor das vivências relatadas). Pois era-lhes dado a saber que há gente com vidas mais sombrias, mais desinteressantes, mais pungentes. A propensão para ser voyeur dos tremendos infortúnios alheios é um exercício terapêutico, uma exegese interior de onde pontificam, por fim, agradáveis impressões sobre a própria existência. Haveria por ali muitas pessoas (e, entre os espectadores à distância, muitos mais) que se voluntariam no papel de apiedadas testemunhas dos devastadores abalos telúricos que arruinaram os outros. Só para apaziguar as pessoais dores que os consomem pelas entranhas.

Se calhar era mais fácil interrogar as vítimas que aceitam ampliar o seu papel através da exposição mediática das desventuras. Como se não bastasse a dor imensa que as consome por dentro, expõem-se aos olhares indiscretos de um exército de desconhecidos. Talvez aquelas mulheres estivessem com os azimutes desorientados. E talvez a partilha das misérias pessoais com uma numerosa audiência seja como dividir as dores por todos os desconhecidos que se saciam ao saberem dos inconcebíveis padecimentos. Uma doentia reciprocidade: o apaziguamento do sofrimento demorado (será que aquelas mulheres esperavam sair do programa aliviadas do seu sofrimento?); e a consciência da vida pelo menos tão "normal" diante da tortuosa existência testemunhada.

Mais sórdido do que os terríveis acidentes de percurso desnudados por gente desvalida é existir uma audiência que se enfarta com as adversidades dos outros. É nesta altura que as coordenadas se invertem. A anormalidade é entronizada pelas câmaras que filmam planos detalhados das rugas das mulheres vitimadas, sob a lupa das perguntas que apertam a malha aos pormenores mais torpes. A maior anormalidade, porém, é a dos apóstolos da normalidade que sublinham a anormalidade dos outros. A maior das anormalidades é haver gente que se considera "normal" que ensaia a purificação da normalidade delimitando o território em relação às aberrações que desfilam num cortejo ignóbil.

É que já nem interessa a perplexidade ultrapassada – que haja quem perfidamente se apraza com as desgraças reveladas com o requinte de malvadez de quem aceita virar a vida do avesso à vista de toda a gente. Por mais que o olhar disfarçasse comiseração, ou por mais que se quisessem convencer que se impõe a denúncia de abjecções que muitos olhares preferem silenciar, não conseguiam esconder a maior das aleivosias. À noite, quando a cabeça já repousasse sobre a almofada, felizes por a infamante calamidade não os ter puxado da roleta da sorte (ou do azar).

Estes é que são os maiores anormais: os que filtram a sua presumida normalidade pela decantação da anormalidade dos outros.

5.2.10

Um atlas


As veias ardentes, a carne em fogo, os olhos fulminantes. Imersos na raiva incandescente. O descompasso com as coisas em redor. Os remos sem pás movem o barco à deriva, levado pelas águas errantes que dançam empurradas pelos ventos aleatórios. Ou a carne subitamente arrefecida, as veias lívidas, os olhos embaciados numa inércia medonha. No mesmo descompasso com as coisas em redor. 

Ser o que se é, sem concessões – a inadiável missão. A transfiguração à imagem das pessoais idealizações alheias é uma traição que vaporiza a genuína essência do ser. Podiam querer que mudasse por dentro, na conformidade com os belos modelos estabelecidos. Os oxalás arquitectados de fora para dentro são uma intrusão. A maior das infâmias. Uma faca que se insinua na carne, suaves cortes que parecem não passar da fina epiderme. Contudo, sangram-na, dolorosamente. Dizem, em apologia da intrusão, que é uma faca adocicada; que as cicatrizes são terapêuticas – depois delas, um todo mais harmonioso, a frondosa vereda do equilíbrio ensinado por almas apenas comprometidas com o altruísmo dos que desbravam caminho à transformação salgada.

O atlas, talvez empedernido, talvez possuído por uma teimosia irrecusável, declina as amáveis sugestões. A aprendizagem teve o seu tempo, o seu lugar. Depois da aprendizagem, já não faz sentido se os relâmpagos do desengano troam furiosamente. Há aleivosia quando passamos pela lupa dos cirurgiões das almas, os reconfiguradores de personalidades que atropelam a singularidade das individualidades como quem respira oxigénio. As luzes que os encomendadores de almas renovadas acendem são apenas sombras que se escondem detrás de plúmbeas, densas nuvens. Uma miríade de espelhos pulveriza as imagens em múltiplas direcções. As imagens de uns e de outros que se confundem numa arbitrária simbiose. Sobra a indiferenciação entre todos os que se confundem na constelação de espelhos reflectidos à exaustão. Até que sejamos todos feitos à medida de um alfaiate que toma as medidas pela média – nem que seja a média da mediocridade entronizada. A diferença passa a suportar o opróbrio criminoso.

E, todavia, em cada um há um atlas irreproduzível. As veias que latejam a pulsações diferentes, a carne que se toma por temperaturas que variam nos lugares e nas circunstâncias, os olhos de cores várias, com expressões de uma autenticidade ímpar. As palavras que saem com tonalidades sempre diferentes. As bocas, todas com diferentes sabores. O imparável império da subjectividade é a riqueza maior da espécie.

Quando o descompasso é ultrajante, não é pela transfiguração das almas que se acha solução. Sobra a dignidade do respeito do atlas resguardado em cada um. A honestidade de cada um se respeitar por si e diante do outro. Ou o harpejo final: os pés apontados para lados diferentes da encruzilhada em que se acham caso o desafio seja insuperável. Pois se um atlas individual é irrepetível, a pretensão de o moldar, como se tratasse de uma insidiosa bola de plasticina, é agravo sem remissão. Tratamo-nos como se fôssemos a peça mais central de todo o universo? Ah pois tratamos. E não é isso que somos, dentro de cada um de nós, peças inigualáveis? Admiti-lo sem escorregar para o censurável egocentrismo é o árduo desafio perante as poderosas convenções estabelecidas.

Mas o atlas fornece o ânimo, mesmo quando uma avassaladora descompensação esmaga o espírito nas águas mais lamacentas. É no atlas individual que se escondem os fragmentos da singularidade. O que nos torna peças únicas, irrepetíveis, a riqueza dessa singularidade toda capturada no respeito que os demais mostram ao nosso atlas pessoal. Não é uma concha protectora onde os intimidados se refugiam dos ventos lá de fora. Dos ventos que sopram agrestes e semeiam imponderáveis, desilusões, angústias, amarguras. De todos os vértices pontiagudos que ferem e levam tempo a ser cicatrizados.

Os atlas que somos são como são. São o que são. Amam-se. Tornam-se indiferentes. Por vezes, escorregamos na fricção de os odiar. Mas nunca, nunca, se tolerem as plásticas cirurgias que transfiguram as cores, os odores, o tacto de um atlas. Não há ultraje maior.

4.2.10

Alguém falou em striptease?


Vale a pena começar pela notícia: "O Partido Socialista quer publicar os rendimentos brutos de todos os contribuintes na Internet. O objectivo é combater a fraude fiscal, numa medida que vai colocar online o rendimento bruto anual declarado (sem imposto, nem despesas reembolsáveis – educação, saúde, etc.) (...)." Se isto não andasse como anda (pelas ruas da amargura), ficávamos boquiabertos com a assombrosa ideia. Assim sendo, a medida não se estranha: entranha-se.

Se os rendimentos declarados forem parar a uma página da Internet onde todos podemos vasculhar o produto auferido com o pessoal suor empregue no trabalho, seremos todos bisbilhoteiros uns dos outros. Sê-lo-emos, potencialmente. Se as coisas não andassem todas trocadas, os equinócios torcidos e os azimutes desorientados, dir-se-ia que a indecência tomou conta de tudo. Pelo andar da carruagem, só nos interrogamos o que mais virá a seguir. Essa agremiação maquiavélica que dá pelo nome de PS (se me é permitido) argumenta que isto vai ser feito para combater a corrupção.

Ora, como discordar do partido emblemático do regime dá direito a sentença desagradável sobre a sanidade mental, devo estar às portas do manicómio por escrever o seguinte: maldita terra esta em que do primeiro ao último contribuinte somos todos potenciais suspeitos de corrupção. Já sei que os apaniguados do querido líder, do carismático líder com um leve travo autoritário, dirão que "quem não deve não teme". O que eu receio não são as dores de consciência (que não tenho) por andar metido em negociatas ferrugentas com pagamentos debaixo da mesa (em que não ando). O que me incomoda é saber que, um belo dia, um cidadão qualquer, conhecido ou não, entra naquela página da Internet para satisfazer os seus inconfessáveis desejos de voyeur. Tal como não me interessa saber quanto ganha o cidadão do lado, não quero – não quero mesmo – que o cidadão do lado tome conhecimento dos meus ganhos. Será que a chusma socialista (posso?) sabe o significado da palavra "privacidade"?

Tenho a impressão que os planificadores socialistas se inspiraram nos scanners de aeroporto que vão começar a expor as vergonhas corporais (ou não, depende) dos passageiros que cometem a imprudência de viajar de avião. Aqui está a analogia: tal como esses scanners nos despem para deleite (ou não) de antipáticos polícias de fronteira, a invenção dos socialistas também desnuda quanto ganhamos com o trabalho de um ano. Outra vez arriscando o desdouro do ensandecimento: isto tem o perfume da obscenidade. O que me causa espécie é que, entre amigos, guardamos recato em relação ao que cada um de nós aufere. Se esta ideia passar no parlamento, vou ser impotente para impedir que qualquer zé-ninguém saiba os euros que entraram na minha conta bancária durante um ano. E fico assustado.

A seita socialista (posso, outra vez?) revela, ao mesmo tempo, tiques imberbes que só são surpresa para quem andar desatento (ou for crente). Esta ideia dos rendimentos ficarem a nu na Internet, com a correspondente sugestão de que haverá exércitos de coscuvilheiros a vasculhar nos proventos alheios, faz-me lembrar a típica infantilidade masculina quando os varões nus se põem, no balneário, a comparar o tamanho dos falos. Quem gostaria que os outros soubessem o tamanho do seu falo? E o que virá a seguir? Declarar a cor da roupa interior?

O ano não começou há muito. Apesar de não gostar de formular votos que coincidem com o ano nascente, gostava de abrir uma excepção. Para que os políticos desta pequena praça se mentalizassem que os fins não justificam todos os meios. Acentuo, entoando-o com lentidão: os fins não justificam os meios. E abro uma excepção para formular este outro voto: quanto mais risíveis e, ao memo tempo, perigosas as obras de engenharia social que saem das brilhantes cabeças dos planificadores socialistas, maior a vontade de ir ganhar a vida para outro lado. Onde possa manter a privacidade dos meus proventos. Onde ninguém entre em detalhes que só à minha privacidade pertencem. 

ADENDA: a malta socialista recuou nas intenções e retirou a proposta. Desculpem-me se estou sempre de pé atrás em relação a esta malta (eles põem-se a jeito), mas desconfio da manigância. Se todos estivessem distraídos, apostam como a ideia ia para a frente?