24.2.10

Exorcizar fantasmas


Castigas as lembranças por onde o corpo andou, nessa irregularidade cortante que é o passado. Apraz saber que não há vivalma que não guarde fantasmas em armários, muito bem escondidos dos olhares indiscretos. Daqueles armários cujo mapa é outro segredo, que só os próprios guardam a chave mestra num esconderijo ainda mais confidencial. 

Nos momentos em que te assaltam os fantasmas de outrora, não interessam as dores pessoais que só são dos outros. O que te aflige não as agonias alheias. Contorces-te por dentro com a angústia do impossível esquecimento do tempo já emoldurado que prolonga o fracasso pungente. Por mais que te debatas com fantasmas que se prolongam algozes dos dias presentes, desgastas os vestígios que ensinaram o esquecimento dos dias de outrora. Aprenderas o método, imerso na apoplexia constante de quem sentia as algemas de todos os ontem a marcar a cadência dos hoje sempre adiados. Como se tivessem ensinado a praticares uma salvífica lobotomia em ti mesmo.

Exercício inútil. Nem toda a mestria cegava os dias que envergonhavam. Tentavas, mas não conseguias. Imaginavas outro fantasma, o fantasma-rei de todos os outros. Como se um enxame furioso te perseguisse sem cessar, o zumbido perene a evocar arrependimentos que arrependimento algum conseguira aplacar, e o fantasma-rei de batuta na mão a ordenar o seu exército de irritantes fantasmas. Ele adejava sobre todos os horizontes que frequentasses. Preenchia as tuas memórias com as lembranças que gostavas de apagar. Devorava o teu presente, reduzido às lancinantes dores de outrora. O fantasma-rei, omnipresente, apascenta o perene enxame de querubínicos fantasmas.

Em cada dia que acordavas, depois de outro pesadelo que cavalgava na asfixia do passado, ficavas inerte entre os lençóis humedecidos pelo suor. Com o olhar fixo no tecto, conseguias decorar as suas rugosidades todas. Angustiado pela impossança que consumia as forças que iam minguando a cada dia, a todos os dias doentios que se sucediam, sempre na mesma rotina castradora. Sentias que as dores dos muitos arrependimentos lavrados, dos inúteis arrependimentos, incendiavam a impossibilidade de exorcizar os malvados fantasmas.

Ensaiavas simulações. Fazias de conta que tudo era diferente. A começar por ti e pelo tempo que fora as tuas circunstâncias. Depressa aterravas na desoladora sensação: uma simulação não deixa de ser isso mesmo, uma simulação. As encenações, por mais empenho que pusesses nelas, mascaravam o palco onde a tua existência errava. Na impossibilidade de exorcizar o exército de querubins que se apoderavam das memórias, convenceras-te que a vida ou deixara de fazer sentido ou era para ser levada com indiferença.

Conseguiste derrotar impulsos suicidas. Foi quando descobriste o que anos a fio ocultaram. O segredo era não dar importância à existência. Anestesia do mundo que te cercava. Para te anestesiares de ti mesmo. Aprenderas que estacar diante do espelho até te convenceres que a silhueta no espelho não eras tu, não passava de uma ilusão sem sentido, uma pura perda de tempo. Caminharas entre as cinzas apodrecidas, as cinzas já frias que te convocavam a desistir de tudo. Aquelas cinzas enegrecidas eram a metáfora perfeita do desassossego. Mas uma metáfora por antinomia: quem sabe se as cinzas putrefactas não seriam o derradeiro leito onde enfim acharias consolação? Resististe ao apelo fácil da desistência. Resististe por covardia (pelo menos foi nisso que acreditaste).

Quando acordaste no dia seguinte, o rosto ainda pintalgado pela fuligem das cinzas levantadas pelo vento nocturno, a revelação por acaso – como se fosse uma beata aparição a decifrar o enigma que sempre fora o travão na existência. Deixavas de te lembrar como eu inteiro. Repudiaste a importância do mundo que se insinuava diante dos olhos. Deixavas-te ir ao sabor do vento que soprasse em cada instante. Não era resignação. Apenas uma terapêutica indiferença. Por tudo. A começar pelo eu enfim despojado.

Alcançaras o de tão longe perseguido segredo. Sem nenhum exorcismo.

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