30.3.10

Insólitos inimagináveis


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Os olhos estão atentos. Precavidos contra as ameaças. Avançam com atenção redobrada sobre os que julgam ser a ameaça latente. São eles que ficam sob o ponto de mira. Os costumes mandam dizer que a precaução sempre foi boa conselheira. O mal está quando os rombos no que os olhos zeladores protegem partem de quem não se esperava. Os olhos não se podem desdobrar em todos os sentidos. Oxalá tivessem o condão de tudo alcançarem, como se fossem polvos a atirar os oito tentáculos em todas as direcções, cortando pela raiz os ensaios dos meliantes. A surpresa, às vezes, aterra de mansinho. E damos conta que são apanhadas no alfobre do crime as pessoas mais improváveis de o serem – criminosas. Se calhar faz sentido pressagiar que nestes tempos amalucados ninguém, mas mesmo ninguém, está acima das suspeitas. De uma vez por todas, somos todos iguais. Até na propensão para o delito.
Eis a insólita notícia: uma magistrada do ministério do público apanhada a roubar roupa numa loja (uma gabardine e uma camisa). Ou, diremos em condescendência da intocável magistratura, que apenas se esqueceu de pagar. Talvez a senhora seja uma irremediável distraída. Estaria a pensar num dos muitos casos que aterram na sua secretária. E, tão afogueada pela soberana função de levar do tribunal à cadeia os delinquentes da praça, saiu da loja sem passar o vestuário comprado pela caixa registadora.
Um dos males dos tempos modernos é que inventam geringonças para tudo e mais alguma coisa. As lojas são precavidas contra distraídos, cleptomaníacos e ladroagem em geral. Quem se esquecer de passar pela caixa registadora não vai longe. Um sonoro alarme à saída da loja denuncia a tentativa. Todos os olhares caem sobre quem se esqueceu de pagar à saída da loja. Os olhares e os seguranças, num abrir e fechar de olhos. Quando dão conta, já têm julgamento marcado em tribunal.
Por menos de cem euros – o valor da gabardine e da camisa que a senhora magistrada ia levando sem pagar – ficou com o rótulo de cleptomaníaca colado ao rosto. Os seus pares tomaram o assunto entre mãos. Foi suspensa dois anos. Se fosse outra pessoa, um comum dos mortais, o cadastro ficava manchado com esta nódoa negra. Mas a senhora faz parte da magistratura. Afinal há quem seja mais igual entre os iguais. E não se belisca a reputação da magistratura. Podiam isolar a ovelha ranhosa e, talvez em manifestação de humildade, admitir que a senhora se sentasse no lugar onde estão sentados aqueles que ela estava acostumada a acusar (o banco dos réus). Mas não. Não se toca nos intocáveis. Escapou com dois anos sem apontar o dedo acusador aos delinquentes da praça. Para os seus colegas que a julgaram com tanta condescendência, ficou provado que aquilo não foi roubo: foi apenas uma lamentável distracção.
Esta teoria podia explicar o inesperado comportamento da senhora: de tantos crimes passarem pela sua secretária, ela ficou contagiada. É o que acontece quando os planos se confundem, como se a certa altura já não fosse possível discernir o que é sonho e o que é realidade, uma e outra tomadas pelo mesmo padrão. Ao ler a notícia, vinha lá que foram feitos testes psicológicos. A senhora magistrada não era cleptomaníaca. O que torna o episódio ainda mais insólito.
Quando os dois anos passarem e for reintegrada, a senhora magistrada continuará a acusar meliantes por crimes iguais aos que ela cometeu. Ora, se me acontecesse sentar no banco dos réus por semelhante acusação e desse de caras com aquela senhora magistrada que, implacável do lugar de onde o ministério público acusa de dedo em riste, me acusasse de crime idêntico ao que ela tinha cometido, diria que tinha todo em gosto em que a colega de funções fosse a acusadora oficial. Ironia do destino, talvez pudesse tirar partido da condescendência da senhora magistrada.

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