2.3.10

Pica miolos


Propriedade horizontal. Em linguagem comum: viver em prédios. É aturar vizinhos. Sobretudo os trombudos que não nos conhecem de lado nenhum e desatam numa tremenda embirração pessoal. Há um espécime destes por aqui. Dizem-me que tem a mania de mandar, até no que não é dele (ou, pelo menos, só dele): as partes comuns do prédio. O indivíduo parece um zelador dos prédios. Anda sempre de radar ligado, os olhos esbugalhados bem atentos a qualquer anomalia – e uma vivalma que esteja na garagem, nem que seja para o rotineiro acto de entrar e sair do automóvel lá estacionado, é potencial anomalia.

Parece um furão. Se há criaturas que casam com a imagem de um animal, esta é exemplar. Aquele nariz espetado esbarra no rosto encovado, os olhos protuberantes encimados por uns óculos que podiam ser mais pequenos para não exagerar no aspecto de caricatura de cartoon. Não caminha; arrasta-se sorrateiramente. Aposto que nunca comprou sapatos com tacão de madeira, daqueles que deixam uma sonoridade inconfundível à sua passagem. Ele precisa de silêncio enquanto marcha. Para surpreender os possíveis meliantes, ou os vizinhos infractores, ou quem seja visita dos vizinhos e ouse usar a garagem. De dedo em riste, questiona. Deve-se achar no papel de inquisidor do condomínio.

O mal é que o indivíduo, no seu íntimo, está convencido que nos presta um serviço incalculável neste papel de fiscalizador das anomalias. Se calhar quer uma comenda. Se fosse às reuniões de condomínio (a sanidade mental não o permite), avançava com a proposta. E desenhava a medalha e tudo. Aliás, propunha ao presidente da junta de freguesia (que, por sinal, é meu aluno) que este empreendimento de propriedade horizontal fosse peregrino na outorga de distinções ao melhor condómino. Que seria sempre aquele que mais cuidasse do bem comum, por mais que isso incomode os desleixados, ou os que se acham importunados pela boa ordem das coisas, os que se insurgem contra o cuidado que as diligentes personagens põem nas partes do empreendimento que são de todos nós.

Haveríamos de fazer furor. Primeiro na freguesia. Depois na cidade toda. Não demorava nada, a experiência já tinha sido exportada para todas as cidades e vilas enxameadas pelos cubículos de propriedade horizontal onde as pessoas acotovelam a sua existência. O vizinho daqui, precursor no género, irromperia numa carreira política fulgurante. No partido que estivesse à mão de semear, no partido que mais a jeito estivesse de o alcandorar à vertigem do poder.

Nem em sonhos. Nem personagens deste calibre com poder entre as mãos, meras migalhas de poder que sejam. Nem o cadastro do condómino exemplar em cada sítio povoado por propriedade horizontal. Mas, se calhar, os sonhos já passaram das nuvens oníricas ao papel enrugado e xistoso que tocamos com os dedos. Talvez este vizinho, na benevolente canseira de tudo monitorizar, seja uma amostra dos mercadores do poder omnipresentes no opíparo manjar dos que enfartam a pança com uma bebedeira de poder. Do poder pelo mero gosto de mandar e ser respeitado, e muito respeitado, pelos vassalos.

O vizinho daqui lembrou-se de me picar os miolos. Não me conhece de lado algum. Nunca falou comigo. Só nos cruzamos na garagem. E, apesar de estar aqui muito sossegado no meu canto, deu para embirrar comigo. Ainda por cima, é covarde. Acoberta-se no anonimato para me picar os miolos. Veio bater à porta errada. Daqui não leva nada: nem réplica, nem o que mais me apetecia fazer quando, nos interstícios de coisas muito mais importantes, os pensamentos errantes desaguam na autêntica anomalia que, ela sim, coincide com o pressuroso vizinho. É quando, mas só em pensamentos (não canso de o repetir), apetecia a irracionalidade e abordá-lo, garantindo que posso resolver os seus problemas por outros meios. Que esteja descansado: com estas palavras, daqui já levou tudo. Doravante, sobra para ele o desprezo da ignorância.

É a serventia destes textos, quando mergulham em autobiografia: destilam o azedume que abrasa as veias. Por isso, terapêutico este texto. O vizinho fuinhas entrou, a partir deste momento, na categoria das não-criaturas.

Ah, como dói a propriedade horizontal. Alimenta-se-me um sonho outro: um sítio para morar sem vizinhos para aturar.

2 comentários:

Milu disse...

No meu prédio também tenho um caso engraçado. Quando comprei o meu apartamento, que havia sido construído há três anos, portanto um apartamento usado, vim cair num sítio onde tudo parecia estar muito organizado, devendo-se isso à autoridade de dois mandões, que agiam como se fosse tudo deles. O anterior dono do meu apartamento, homem teso, que não gosta que decidam por ele, seja no que for, ainda chegou a enfrentar algumas questiúnculas, que o levaram a desejar mudar-se para outras paragens, não fosse um dia perder as estribeiras e dar um par de estalos nos olhos num dos coronéis. Pois bem, os mandões quando viram o apartamento ser novamente ocupado por uma mulher com um filho, julgaram insanemente que agora sim, iriam reinar plenamente, já que os cobardolas dos restantes condóminos jamais ousariam fazer-lhes frente.Porém, enganaram-se redondamente! E pela primeira vez viram o que nunca até então haviam visto - uma mulher - uma verdadeira mulher, que sabe ao que anda. Pois bem, a primeira discussão surgiu quando estes dois anormais decidiram que o sistema de pagamento do condomínio havia de ser alterado, isto é, deixar de ser pago por quotas tendo em conta a permilagem, para começar a ser pago por quotas de valor igual para todos, independentemente de quem tinha um apartamento maior ou mais pequeno. Ora eu, que era um dos condóminos, proprietária de um dos apartamentos de menor permilagem logo fiquei a ferver. Um dos tubarões iria com isto beneficiar exactamente da quantia da qual eu iria ver a minha prestação agravada. Pensei logo: Nem morta! Daqui não vão levar nem um cêntimo que seja!
Não passa pela cabeça de ninguém o espectáculo que me foi dado presenciar. Foram onze contra um, que era eu, claro, ali fiquei sozinha a defender o que era meu. Toda a outra canalhada estava a obedecer aos chefes! Ficaram fulos de raiva, chegaram ao ponto de rivalizar uns com os outros na estupidez, tudo foi dito, só não me chamaram mãe, bem, outros nomes também não me chamaram, mas pensaram-nos, é portanto a mesma coisa que o terem feito. Na reunião, também lá estavam duas queridas, que ainda sopraram qualquer coisita tão sem convicção que nem me lembro do que disserem, mas para essas, tinha-as eu boas de dizer, senão tivessem tido a atitude que tiveram, isto é, foram sensatas e deixaram-se ficar de boca calada a observar.
Quando eu já pensava, que, enfim, não mais se atreveriam a novos arremessos, visto terem visto de que fibra sou feita, eis que numa nova reunião, onde se falou de uma pintura ao prédio, uma alma desgraçada, desta vez uma mulher, atarracada e pançuda, que olhando-me através dos faiscantes óculos ousou desafiar-me insinuando que a pintura deveria ser paga em partes iguais pelos condóminos. Bem, está visto que arranjou uma inimiga para todo o sempre, não pelo que disse, que eu sei procurar os meus direitos e sabia que a isto não me poderiam obrigar, mas pela atitude ranhosa de, na sua ignorância, pensar que desta vez iria ser como eles queriam, portanto, eu não ,levaria a minha avante, teria de amochar e acatar as decisões daquele grupo de gente que se tem por boa, vai à missa, comunga e traz os filhos na catequese enquanto eu sou uma desnaturada que não faço nada disso. Escusado será dizer que houve lugar para deploráveis cenas. Os mandões de focinhos e pescoços arroxeados pela raiva espumavam saliva e disparates, e eu, nem sabia se havia de rir ou de chorar, porque ter de lidar com tanta ignorância desarmou-me completamente. Afinal, se não são analfabetos, porque não procuraram informar-se convenientemente antes de me enfrentarem? Ao menos, escusavam de ter feito aquela figura, na Internet não faltam fóruns para nos elucidarem sobre esta temática, em escassas horas podemos ter as respostas que necessitamos. O que se passou foi que me mediram à sua própria altura! Fizeram mal, pois nunca devemos subestimar o adversário. Tivessem agido com mais jeitinho, talvez me tivesse deixado enrolar, que só vou lá com boas maneiras, pois que à bruta ninguém de mim leva seja o que for.

PVM disse...

A ignorância é das maiores agressões de que podemos ser testemunhas. Quando é ignorância pura, dá-se um desconto às almas penadas. O mal é quando se trata de ignorância dissimulada: os que se fazem passar por ignorantes para que todos os demais façam o que esses falsamente ignorantes pretendem.
Mas o pior é quando damos de cara com burros que têm de si a imagem de ilustres intelectuais. A isto chamo o cúmulo da ignorância.
PVM