19.3.10

Vasos comunicantes


In http://www.chinaodysseytours.com/yunnan/three-parallel-rivers-yunnan.html
Os rios correm paralelos. Separa-os um pedaço de terra verdejante. Muralha que impede que as águas se beijem. Vistas de cima, dir-se-ia que têm cores diferentes. Um dos braços do rio, tingido por um lamacento acastanhado. No outro parecem nidificar algas viçosas que emprestam uma tonalidade esverdeada.
Caminhas, entre as duas torrentes alimentadas pela água generosa das chuvas, à procura das pontas que desatem os braços de água paralelos. Não sabes, porque desconheces a geografia e não olhaste para a cartografia do lugar, se os dois braços se fundem lá adiante. Ou se seguem o seu caminho, desemparelhados, por destinos diferentes. Aquele terreno pastoso retarda a marcha. Avanças devagar, por vezes as pernas enterradas até ao joelho. Não és capaz de acompanhar o repentino caudal que desce enfurecido.
Às vezes deparas com charcos. Ora quase imperceptíveis, debaixo do musgo que se acantona no ilhéu; ora visíveis, difíceis de superar. Como teimaras que a tarde estava reservada ao conhecimento do bucólico lugar, não desistias de arremeter contra os atoleiros. Passara algum tempo e os dois canais persistiam em passear um ao lado do outro. Não conseguias discernir muito horizonte: o rio bravio despedaçava-se contra as curvas aveludadas de musgo. A cada esquina desfeita, outra curva mais adiante e os dois braços ainda emparelhados numa quase geométrica simetria.
Começaste a ficar intrigado com os fios de água que sulcavam a terra pastosa. Às primeiras travessias, não lhes deras atenção. Poderiam aqueles regatos – ora tímidos e rumorosos, ora de água estagnada em largas poças – ser vasos comunicantes que fixavam o parentesco entre os dois caudais?
De cada vez que te detinhas diante da água que interrompia o solo firme, demoravas na inspecção do lugar. Reviravas a terra que escondia o fio de água na sua extremidade. De uma vez, aventuraste um braço na profundidade do solo saturado. A curiosidade trouxera o impasse: os olhos já não conseguiam alcançar de onde vinha o fio de água que desmaiara até à quase imperceptibilidade. Ouvias o sussurro que ecoava da escuridão do casebre perfurado pelo braço. O regato perdia-se num salto no abismo, lá onde já não havia profundidade de braço que conseguisse levar.
Arfavas de cansaço quando a lucidez te extraiu à mistura de lodo negro e musgo revolvido. Erguido das cócoras em que estiveras demoradamente, os olhos quase tropeçaram na margem de um dos canais que corriam em portas paralelas. Sobre a tua direita, em baixo, a cova que a tua – quem sabe? – inútil curiosidade esquadrinhara. Eram só uns centímetros a separar a embocadura da cova do caudal que arrimava velozmente.
Extenuado e já impaciente – as curvas do rio sucediam-se numa perfeita simetria entre os seus braços – apressaste conclusões. Sancionarias, ali diante da cova experimental, que havia vasos comunicantes entre as duas torrentes. Ditarias a natureza acidental do pedaço de terra que separava os dois braços de água. Dois primos braços de água – deste por ti a concluir. A natureza acidental do longo ilhéu parecia não ter fim. Às escondidas, com a subtileza das pequenas coisas que se insinuam no venenoso silêncio, pedaços de água deslocavam-se de um lado para o outro. Servindo-se do terreno mole e húmido que alojava os escondidos vasos comunicantes entre os dois caudais. Que, talvez nem o soubessem – a não ser mais à frente, se os dois caudais se tornassem siameses –, eram primos.
Triunfante com a conclusão (que negavas ser precipitada), a profusão criativa fez-te engenheiro de pontes imaginativas. Aquele lugar era o postal ilustrado de tantas vidas. Que vivem tanto tempo no desconhecimento recíproco, sem darem conta que são tangíveis por vasos comunicantes que passeiam alheios ao conhecimento. Só faltava esta interrogação: chegaras às asserções através da indução. Mas não te deras ao trabalho de confirmar as pistas – e mais que pistas não eram – que punham à prova a indução triunfal.
Às vezes, os vasos comunicantes só são uma ilusão. Ou um puro acaso. Quando o são, não chegam a ser. Nem vasos, nem comunicantes.

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