18.5.10

Cortinas


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Há casas que não têm cortinas às janelas. São janelas abertas para todo o exterior, um convite aos olhos indiscretos. À noite, as luzes que iluminam as casas amplificam a esquadria dos compartimentos. Os móveis à mostra, os atoalhados em cima da mesa, as plantas que se acolhem no interior de uma casa. Só com um pouco de esforço e até se entra nas preferências da programação televisiva, ou nas preferências de leitura a atestar pelos livros e revistas espalhados em cima da mesa. Sem cortinas, é como se o filtro da individualidade se pulverizasse em mil pedaços.
As pessoas que transitam na ausência de cortinas, despidas de pudores? Saberão que os passos, os gestos, as leituras, a estética amontoada no mobiliário, tudo isto e o que mais se imaginar é espiolhado pela curiosidade alheia que mete sabem lá quantos pares de olhos dentro das casas desprotegidas?
Estes dias são uma voragem de contraditórios. Alguns, movidos pela reserva de intimidade, incomodam-se só de desconfiarem que uns fautores da curiosidade alheia espreitam a sua vida. Outros encavalitam-se no oposto. Trazem a vida íntima para fora de si. Não faz sentido a reserva de intimidade. A intimidade já não tem o mesmo significado de outrora. Vão aos dicionários e montem outro significado – ou destruam a palavra. Assim como assim, estes zénites do modernismo são os primeiros voyeurs da intimidade dos outros. Não custa a entender que desvendem de par em par as janelas desprovidas de cortinas. As janelas por onde se espreitam as vidas dos outros. As janelas onde todos os que fazem parte dos outros desejados partilham, em aceno generoso, a respectiva intimidade.
Dir-se-ia que a chacina das cortinas é como uma anónima nacionalização da privacidade. Fará parte da religião da moda – o endeusamento do “colectivo”, com todos os indivíduos levados a humildemente sucumbirem diante da colectividade. Não deve haver segredos guardados. Ousam estes sacerdotes afiançar que só quem algo deve é que teme mostrar o que acha pertencer à privacidade. Teimar na toleima das cortinas é nadar contra a sadia corrente dominante. Não sei se será de propor a um socialista qualquer o próximo acto de engenharia social: proibir as cortinas nas janelas das casas. E decretar que as pessoas só podem descer persianas quando estiverem encomendadas ao sono.
As vidas privadas seriam um imenso lago de águas cristalinas. Eram só vantagens idealizadas no estirador do pensamento de um qualquer pródigo engenheiro social. Deixaria de se falar em “podres”, em “rabos de palha”. Seríamos todos uns líquenes com tufos transparentes, uma luminescente exalação da mais pura das transparências. Por fim, o triunfo de uma moralidade sem mácula. Os valores, contudo, esbarram no ensimesmar dos atávicos egoístas. A estes, a única salvação possível: a reeducação. Pode a formatação do pensamento tropeçar em recifes; venha então o admirável decreto a passar por cima dos teimosos tomados pelo novo pecado maior, a transgressão do individualismo. Esse infecto individualismo que os torna bebedores da cicuta do recato da intimidade.
Eu quero as cortinas mais opacas que existam. Nem que as tivesse que comprar no mercado negro. Tão opacas que nem um vestígio de luz haveria de atalaiar o exterior. As minhas janelas, quero-as calafetadas contra os promitentes da coscuvilhice. Não quero que das janelas exale qualquer transparência interior. Não vou ao ponto de ser tomado pelo pânico só de saber que um doente qualquer espreita na minha vida, que as patologias alheias não consigo (nem quero) dominar. Há um reduto insuperável: há sempre um pedaço de individualidade que pertence a cada um.  
(Nisto, esbarrei num pensamento agoniante: e os textos que me trazem para fora de mim, não são uma espécie de gigantesca janela desprovida de cortinas?)

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