14.5.10

Outro dia


In http://correrporprazer.files.wordpress.com/2008/08/calendario.jpg
A pior das demissões – dizem-to de dedo espetado à frente dos olhos – é ficar à espera do outro dia. Os dias que são outros, idos ou ansiosamente esperados, apenas a negação que dá espessura à existência. A incorrigível anemia do ser escorrega para a desesperança de outrora, ou para um qualquer messianismo que milagre algum haverá de trazer. Teimas: os dias que contam são os outros, os que já escaparam como areia fina entre os dedos, ou os que se prometem com a vastidão do vento que nem as mãos mais grossas conseguem capturar.
À espera do outro dia, renegas-te. Não aprendes que não é no outro lado do dia, no dia ausente, que cresce a sofreguidão pela existência. O dia outro por que esperas embebido numa doentia inércia é um taciturno passeio pelas porosas praias onde nem o mar avistas. Pé ante pé, traças o rasto nas areias molhadas pelo mar imaginado. Tudo é imaginado. O dia ausente, o dia que se esboça no outro dia que ora já aconteceu, ora se prometeu num impreciso porvir. Até o teu rasto nas areias molhadas é imaginado. É a tua vez de tomar a palavra: não te renegas, reinventas-te.
Como é possível que as areias sejam aquela cama emparedada, humedecida, se no fio do horizonte não lobrigas maré alguma? Como é possível que os passos arabescados no areal se façam em nada se não vês a espuma do mar sobrante a beijar os pés da areia? Insistem contigo: o outro dia é uma prisão mental. Vives acorrentado ao outro dia por que esperas e não és capaz de acordar da letargia que te consome. Enquanto estiveres acorrentado ao outro dia, o que há em ti é apenas simulacro.
Deixas-te imerso no fantástico mundo onde se apinham amanhãs prometidos em sonhos a meias com uns lampejos coloridos, propositadamente amplificados, dos convenientes retratos resgatados aos dias de outrora. Lá, nessa imensidão que é um universo mil vezes maior, os olhos marejam-se de cada vez que as afeições imaginadas percorrem as vértebras e se desfazem em arrepio comovente. Ao menos sentes, algo. Ao menos, nas masmorras interiores do teu refúgio, lá onde nidificam todos os dias que são outros, consegues sentir. Extrais-te à anestesia que só o é para os demais.
Queres lá saber que andes em passos errantes, a bússola desafinada, os sapatos trocados, vestindo agasalhos quentes em dias de Verão, ou a dormir ao relento num dia soalheiro quando passaste a toda noite acordado na lassidão das quatro frias paredes do quarto? Que interessa que tenhas sido empossado aberração? Os outros que de ti fazem imagem qualquer (mas sempre na antítese meritória), são como os outros dias que dizem não terem merecimento algum.
Tens a consciência das dores insuportáveis dos dias que quadram com o presente. Quem se empenha num sofrimento inútil? Depões-te aos pés dos outros dias que ainda ninguém conhece. Pode ser um adiamento das cinzas maceradas que os dias conhecidos espalham. Não deixas o bumerangue tocar no solo; levitas, farejas a trajectória traiçoeira do bumerangue. Segues nisto, dias a fio, como se não houvesse sono para dormir (a não ser o muito sono onde se acastelam os sonhos que avivam a litania em que te demoras); segues nisto, só para o artefacto voar, voar sempre. E nunca pousar, em matéria inerte, no chão. Só para não esbarrares nos dias acordados e te condoeres no compungido penar por que arrastas os ossos do corpo.
São tuas as costas que se deitam ao entorpecimento dos dias que pertencem ao calendário ausente. O mais que querias, é que te deixassem entregue aos dias que te apetecem. 

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