30.6.10

Engolir em seco e dizer: “viva o Bloco de Esquerda!”


In http://thumbs.dreamstime.com/thumb_149/1179390533k3VOh8.jpg
Ainda não estou à porta do manicómio mais próximo. Para soltar a língua e dizer o que está ali no título é porque coisa excepcional terá acontecido. Ao ensandecimento ainda não cheguei. Para que não haja equívocos: continuo a arrumar o Bloco de Esquerda (BE) na “extrema-esquerda”, por mais que isso os incomode. Pôr este rótulo no que quer que seja não é, na minha modesta maneira de ver, augúrio que se recomende.
Os vivas são pontuais. Quer no assunto, quer no espaço. O BE apresentou uma recomendação na assembleia municipal do Porto sobre a indigna política de abate de animais “vadios”. (Há mais gente vadia do que animais que as convenções assim se habituaram a nomear. Daí as aspas.) O BE convenceu os outros partidos, que lá aprovaram uma mudança de agulha na forma como são tratados os animais que não têm um tecto. (E se se chamasse “vadios” aos sem abrigo?) Daqui para a frente vão ser esterilizados, em vez de serem liquidados ao fim de alguns dias se ninguém passar pelo canil a reclamar a “propriedade”. Não só a medida é mais condigna com o humanismo (já lá vou), como, de acordo com a notícia, até fica três vezes mais barato do que assassinar os bichos.
Os que se atiram contra o terrível antropocentrismo e reinventam a bioética não estarão de acordo. São contra a castração dos animais, porque isso é cercear a sua natureza. Todavia, este lugar (o planeta) está longe do limiar da perfeição. Ao contrário, está carregado de imperfeições. Ora, num lugar tão imperfeito, uma benfeitoria merece encómios. Podia concordar com os radicais da bioética animal quando se atiram à esterilização. Só o não faço porque tenho lá em casa dois gatos e uma cadela que já passaram pela castração – falou mais alto o comodismo, o que, admito, também é antropocêntrico. Mesmo que concordasse com eles, aplaudia a medida que ao menos poupa a vida a animais que, até agora, têm sido brutalmente chacinados quando caem na cilada da funesta carrinha camarária. Fiquei arrepiado com a estatística que vinha na notícia: cerca de 100.000 cães e gatos são abatidos todos os anos de norte a sul.
Os cultores do humanismo e os mais distraídos estarão perplexos quando invoco o humanismo para tratar os animais de maneira decente. Enganam-se se acharem que o humanismo se esgota no tratamento que dedicamos a outras pessoas. Os animais convivem connosco. Quando passamos por um “cão vadio”, ou ao vermos um “gato vadio” a meter o nariz por entre o lixo em demanda de comida, coincidimos no mesmo espaço. Pelo menos no mesmo espaço visual. Esses animais não são coisas inanimadas que mereçam desdém. Eles interagem connosco. Já alguém o disse (mesmo correndo o risco de ser um lugar-comum, estafado como todos os lugares-comuns): uma civilização também se mede pelo tratamento que dedica aos animais.
A vida reserva destas surpresas. Podia lá imaginar que um dia ia dedicar uma ovação a uma ideia da extrema-esquerda caviar? Para os que se apressarem na provocação, insinuando que já estive mais longe da extrema-esquerda chique, urbana, intelectual e com um je ne sais quoi pas burguês, direi para sossegarem as amígdalas. Não diminuiu um milímetro sequer a alergia. Convergimos nesta causa. Aliás, se bem recordo, é o único assunto que me consegue aproximar de uma causa – a defesa de direitos dignos para os animais.
Em jeito de balanço: foi uma convergência pontual. Para meu apaziguamento, diria, lá onde os botões já se desassossegavam, que foi o BE que veio ao encontro de uma causa que tenho por minha.

29.6.10

Antologia do mau gosto

O sacana do vizinho


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O desporto anda atrás do tempo. Teima nas competições entre países. Quando cada vez mais países são o exemplo da modernidade que recebe debaixo do mesmo tecto um variado cozinhado interétnico. As nações reinventam-se perfilhando os outros que nelas se albergam. São um mosaico cosmopolita. O sangue – e por sangue têm-se as ligações ao solo pátrio – perdeu o exclusivo da atribuição de nacionalidade. Varia de lugar para lugar. Mesmo em países onde outrora as idiossincrasias étnicas eram traço identitário, o que agora se vê é a fusão de influências étnicas.
O desporto insiste em prolongar para as arenas onde as modalidades se praticam os teatros de guerra de antanho. Não é que lá dentro, nas arenas, os praticantes tirem olhos uns aos outros. O pior acontece cá fora, nas imediações dos estádios e dos pavilhões. O “cá fora” é um lugar com muitas periferias. Há as bancadas onde se amontoa a turba excitada que entoa gritos tribais de apoio aos heróis que se desunham em nome da pátria. Onde o primarismo vive em êxtase irracional é na periferia da comunicação social que narra os acontecimentos. As parangonas são patéticas, convocando a bravura dos atletas como se estivessem ali a defender a honra dos milhões que, supostamente, representam.
Quando o jogo envolve vizinhos metidos na camisa de varas da ancestral rivalidade histórica, a imprensa é pródiga na imbecilidade. Logo, ao fim da tarde, Espanha e Portugal vão-se tentar eliminar reciprocamente do campeonato do mundo de futebol. A imprensa dos dois lados da fronteira anda em polvorosa. Ontem, um jornal desportivo espanhol já se atirava ao grande acontecimento com esta subtileza: uma galeria de fotografias com beldades lusitanas em trajes menores e em poses provocatórias. Hoje, um jornal desportivo português traz na capa a pirosa vedeta da companhia em tronco nu – em tronco nu, ó mulherio! – fazendo a faena a um touro espanhol.
Quando o jornal espanhol mostra as beldades lusitanas muito pouco vestidas e em poses provocatórias, tanto pode ser uma homenagem à beleza feminina lusitana como uma sibilina provocação que mistura desporto com sexo. Vou directo ao assunto: os espanhóis estão convencidos que “nos vão comer”. E nada mais simbólico do que mostrar à homenzarrada hispânica exemplares femininos lusitanos do mais elevado calibre. Para que a homenzarrada hispânica as coma com os olhos e imagine a função como metáfora do que a sua adorada equipa pode fazer com os rivais do outro lado da fronteira. O jornal português é mais cruel. Retrata os rivais como bestas que podem ser toureados na arena. Esta é uma metáfora mais cruel pelo simbolismo que o toureio tem em Espanha, onde os touros são condenados à morte assim que entram na arena.
De repente, isto faz-me lembrar aquelas rivalidades espúrias entre vizinhos. Dão-se bem, mas é só uma aparência. Às escondidas, nas costas um do outro, os vizinhos alimentam uma rivalidade bola de neve que não demora a atingir a proporção do enfrentamento. O que ao início pertence ao domínio da diplomacia (a hipocrática convivência pacífica em nome das convenções e da civilidade), acaba por desaguar no vizinho insuportável. Só o arfar do vizinho causa brotoeja.
Hoje, lá pelo final da tarde, o melhor lugar para estar é milimetricamente a meio da fronteira. Lá, onde a terra é de ninguém, onde se não é nem de um lado nem do outro. Apenas apátrida.

28.6.10

Já é patológico (ou o primeiro-ministro contumaz)


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Um dia lá atrás, o primeiro-ministro, irritadiço como é cada vez mais frequente, atirou-se a umas palavras do parceiro, o presidente da república. Este havia dito que a economia está calamitosa, que as nuvens que sopram o amanhã são muito negras. Em reacção exasperada, o primeiro-ministro saiu-se com esta preciosidade: lamentou, contristado, que carrega sozinho às costas as energias do país (se não foram estas palavras, andou lá perto).
Ultimamente ando dividido entre dois hemisférios. Perante as alarvidades oratórias do primeiro-ministro, nem sei se as lamento ou se solto gargalhadas de prazer. Naquele lamento, em que mais parecia uma carpideira narcisista, o primeiro-ministro pôs a nu a sua personalidade doentiamente ensimesmada. Isto está a chegar a um nível tal de culto de personalidade que não falta muito para a personagem escrever a sua auto-hagiografia. Das duas, uma: ou o tipo (não é lapso; a palavra foi cuidadosamente escolhida) vive em total estado de negação, ou somos nós todos que andamos em cidadania anestesiada.
Há bocado empreguei outra expressão talvez excessiva – “alarvidade oratória”. Não é nada excessiva. Olhemos com atenção para a lamúria do gajo (não, não me distraí outra vez). Diz que tem as costas largas. Senão, como podia a personagem carregar às costas, sozinho, as energias do país que comanda? Para além do ensimesmar patológico (que fica para análise dos psiquiatras), há ali ignorância e uma brutalidade impensável. É ignorância, porque o presidente da república pode ser a figura desastrada que é, mas sabe da poda quando esboça saudades dos tempos em que era catedrático de economia. Que é como quem diz: os números não enganam, nem precisam de ser anunciados por Cavaco. Se o primeiro-ministro insiste em não saber ler os números, é sintoma do estado de negação que tomou conta dele.
Mas o pior é a brutalidade impensável que se liberta daquele pronunciamento narcísico. É ele, e só ele, que carrega às costas o optimismo da pátria. Como se fosse o único manancial de optimismo, tudo o resto apodrecido pelo tristonho pessimismo. Estas palavras são brutais porque o primeiro-ministro se terá esquecido que é primeiro entre pares. Lidera um governo. Se só ele carrega às costas o optimismo da pátria, nem os seus ministros o acompanham na função. Já o sabíamos propenso à vitimização. Estas palavras são o culminar da ladainha. Será que já nem os ministros o acompanham (nem os mais fieis – e a fidelidade é canina, mas também aqui não me equivoquei na palavra)?
A conspiração é tamanha que até os concidadãos viraram a agulha para o pessimismo, contrariando o particular oásis em que habita o primeiro-ministro. Num barómetro sazonal da TSF sobre a esperada evolução da economia, mais de metade dos inquiridos (54%) espera que nos próximos doze meses a coisa piore. Vou ser oportunista e colar-me ao barómetro, só para anunciar as más notícias que vêm tirar o sono ao predestinado só dentro da sua própria cabeça: entre a canga socialista, 40% está pessimista e apenas 27% perfilha o optimismo fantasista do timoneiro. O que é sintomático.
É assim que estamos. Comatosos. Continuamos entregues a esta gente que nunca foi recomendável, mas que agora é de uma contumácia criminosa. São contumazes por causa do estado de negação em que vivem imersos. Com o hipócrita beneplácito dos outros dois vértices de uma lastimável santíssima trindade: o presidente da república e o clone do primeiro-ministro que habita na liderança do maior partido da oposição. O primeiro cala-se pelo oportunismo do calendário eleitoral (a reeleição que o espera). O segundo quer deixar passar mais algum tempo, para que este primeiro-ministro se vá queimando em lume brando.
No final destas funestas conveniências, já fomos mais uns metros ao fundo na cova em que estamos metidos.

25.6.10

O dia mais longo


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O dia em que o dia se faz mais majestoso do que em todos os outros dias. O dia em que o dia mais entra no território da noite e a encurta a uns tímidos fragmentos. Não é que a noite tenha o seu pânico macerado. Continua a existir. Uma noite minguada pelo perseverante dia que, nos dias que vinham de trás, crescia dois minutos de cada vez, às vezes três minutos. Como uma maré imparável que vontade nocturna alguma conseguira derrotar.
O dia mais longo traz consigo o Verão. Os dedos cansados da Primavera foram escavando nas profundezas da sombria noite os minutos que engrossavam o viveiro diurno. No dia mais longo, esses dedos extinguem-se. O Verão não faz jus à faina primaveril. Por estas alturas, o almanaque que mostra as horas da alvorada e do ocaso recorda-me a fábula da formiga e da cigarra. Se La Fontaine fosse exímio observador do movimento dos astros não teria feito um fábula de entomologia. Teria mais nobreza a fábula se o Verão e a Primavera fossem seus protagonistas.
No dia mais longo, o horizonte apruma-se no porvir do emagrecimento dos dias. É um zénite. Fugaz, como todos os zénites que só na memória permanecem intemporais. É como nos feitos conseguidos ao cabo de árduo esforço. Na sua consumação fermenta uma sensação de vazio. Por vezes, a insuportável sensação da inutilidade de tanto suor derramado. A seguir ao ponto mais alto está aprazada a queda no precipício. O ponto mais alto, como o dia mais longo, doentia exaltação de uma colossal fragilidade.
E, todavia, o dia mais longo é de um perfume encantador. Ver como o ocaso se demora, na teimosia do sol senescente que se deita vagarosamente por detrás do céu ocultado pelo horizonte. E apreciar, depois das poucas horas nocturnas, como do lado nascente a escuridão é invadida pela luz clara e azulada que anuncia a brevidade do sol como nunca imperial. Antediz o almanaque que o sol espreita às seis horas e um minuto. Pouco depois das cinco horas a madrugada aclara-se. Não sei explicar, mas o laconismo nocturno tem em mim um apelo irresistível, produz um misterioso efeito telúrico. Diria que o dia mais longo é o lugar da pureza do oxigénio.
No tremendo altar das impossibilidades, porfio na eternização do dia mais longo. A folha do calendário a seguir a vinte e um de Junho seria outro vinte e um de Junho – e por aí fora. Até que irrompesse o cansaço do dia mais longo repetido à exaustão. Não consigo reprimir o malogro ao saber que agora é a noite que vai furtando uns minutos aqui, outros ali, à claridade diurna. Dou, sem querer, um salto nos meses e aterro no pino mais alto do circunspecto Inverno. Quando o dia mais escasso marca encontro com a agenda. O dia diametralmente oposto ao dia mais longo. O dia tristonho debatendo-se na sua pequenez, numa claridade intimidada pela intrusiva noite. Fotografaria os mesmos locais a vinte e um de Junho e a vinte e um de Dezembro. Para ler as fotografias nas páginas pares e ímpares de um álbum visual. Anotando as diferentes tonalidades, as cambiantes da claridade impregnada de invernia e da claridade embriagadamente alva quando o Verão depõe a Primavera.
Gostava, um dia, de viver o dia mais longo junto às terras mumificadas pelo gelo árctico. Lá, onde a consulta do local almanaque não conta a hora do sol posto nem do sol nascente – pois só há “dia polar”, dia ininterrupto. Estaria acordado as vinte e quatro horas do dia só para apreciar um dia inteiro despido de noite. Um tremendo festim de oxigénio em forma pura.

24.6.10

Um “e-mail xenófobo” contra os emigrantes lusitanos no Luxemburgo – e eles não são mesmo assim?


http://www.winescpv.com/pt/img_t/pau_garrafao.gif
Vamos ao dicionário. Xenofobia, substantivo feminino, é um sentimento de “antipatia ou aversão pelas pessoas ou coisas estrangeiras”. Pelo padrão revelado, que não distingue graus de “antipatia ou aversão” pelo que é estrangeiro, quem não é xenófobo? Irrita-me a pesporrência dos espanhóis, como me incomoda a exaltação da fátua grandeza da França, ou uma certa mesquinhez dos alemães. Só para pegar num punhado de exemplos. Isto faz de mim um pouco recomendável xenófobo?
Diria que não (e não estou a puxar os galões ao juízo em causa própria, sempre tão parcial). É que a minha “antipatia ou aversão” começa pelos que compartilham a mesma nacionalidade. O pessoal brio nacionalista anda por níveis abaixo da temperatura de congelação. Há dias, enquanto assistia a uma prova desportiva, o povo em redor levantou-se num pulo quando a banda filarmónica entoou os primeiros acordes do hino nacional. Olhei à volta e estava toda a gente, pelo menos a que a vista alcançava, trinando o bravo hino dos heróis. Acabada a função patriótica, apeteceu perguntar em redor se sabiam o significado da palavra “egrégios”, mas fiquei-me pela intenção.
Um portanto para continuação de conversa: sendo um apátrida impossível (o bilhete de identidade crismou a nacionalidade imperativa) não serei sensível aos anátemas das nações. Nem às espúrias rivalidades entre nações que tantas vezes desaguam em ódio e sangrentas guerras. Eis o portanto que se impõe: como não sou xenófobo, haveria a mesma ofensa se eu tivesse escrito o e-mail em que alguns polícias luxemburgueses maltrataram a comunidade lusitana?
Faço a pergunta porque me incomodam os padrões duplos quando a cegueira do nacionalismo ofusca o discernimento. Nós por cá, aqueles que nos gabamos da sublime unção da suprema estética, desprezamos os emigrantes quando estão de visita à santa terrinha que os viu partir. Parodiamos com eles. Ficamos apoquentados com o risível novo riquismo, a entoação afrancesada do seu português, a lamentável estética com que se passeiam nas estradas e nas ruas, a música pimba inevitavelmente em gritaria vomitada pelas colunas hi-tech amplificadas pelas janelas abertas dos automóveis caracterizados, a boçalidade a jorros que não se restringe às fronteiras da masculinidade. E fazemos isto enquanto damos um gole na cicuta das generalizações.
Mude-se a agulha para o e-mail posto em circulação por polícias do Luxemburgo. Da transcrição que escutei na rádio, não havia apelo à violência. O que não é irrelevante, pois nos dias que correm a xenofobia é censurada por conduzir à violência gratuita contra os seus alvos. O que lá se lê é uma sátira aos emigrantes lusitanos que convivem com aqueles polícias. Já os vão conhecendo de ginjeira, os polícias. Quem sabe se até não frequentaram as célebres patuscadas em que se encharcam de vinho verde tinto servido do garrafão, à medida que ouvem aos berros um medley do mais kitsch da música pimba que faz furor entre as comunidades emigradas?
E disto fazemos uma tempestade num copo de água. Com um deputado da nação e outro ao Parlamento Europeu a protestarem a indignação, exigindo explicações diplomáticas. É que do e-mail ecoaram as abundantes sátiras que daqui dedicamos a esses emigrantes. Só se acontecer que só a nós seja reservado o direito de parodiar com os nossos que andam a trabalhar no estrangeiro. Quando o mesmo retrato é tirado pelos outros, impõe-se o pátrio acabrunhamento e tornar a aleivosia inadmissível. Com os pulmões tão cheios de ar como quando se entoa o hino.
Pelo meio, já não sei o que sobra da coerência. Mas o mal talvez seja meu, que já me esqueci do nacionalismo numa esquina do tempo. E, talvez, o omisso nacionalismo explique a ausente solidariedade com os emigrantes vilipendiados pelos outros.

23.6.10

Coquetes de Cascais


In http://fabiolascully.files.wordpress.com/2008/10/crocodilo_agua_salgada1.jpg
Umas bravas senhoras da linha de Cascais querem que a “direita” arranje um candidato presidencial diferente do actual inquilino (em que, supõe-se, votaram com entusiasmo). Não lhe perdoam que tenha deixado passar a lei que agora autoriza o casamento entre homossexuais. É um ultraje aos “valores” da família – da família tradicional, como a conhecemos, um casal de sexos opostos e a prole adjacente. (Já agora: e se um casal de heterossexuais se casa e decide não procriar; já não é uma família tradicional?)
Há pecados imperdoáveis – sentenciam as madames da linha de Cascais, com o ámen da santa igreja que aparece na sombra a abençoar a ideia. Quando é o próprio presidente que a “direita” elegeu que dá o braço a torcer a uma boutade (dizem elas) das esquerdas provocadoras, só resta à direita conservadora, com o rabo de saia preso às sacristias das igrejas todas, não dar o beneplácito ao inquilino do palácio de Belém. Se ele quer continuar a ser presidente, que vá angariar votos aos esquerdalhos com quem se amigou.
Uma breve nota politóloga antes do resto da querela: é comovente como a direita conservadora aprendeu a táctica do harakiri que tem notabilizado as esquerdas. Às madames saídas do chá das cinco, enquanto se tratam umas às outras por “tia” e dão o corpo (salvo seja) pela santa igreja que veneram, ainda não foi dado a entender o seguinte: se arranjarem um Bagão Félix qualquer lá pelas faldas do bafiento catolicismo, não só fazem a cama a Cavaco (“mas isso é bem feito”, pensam com os seus botões de marca) como dão um contributo inestimável para a presidência cair no regaço do poeta tauromáquico.
No meio da desorientação geral, farto-me de rir ao ver a indignação das madames. E, acima de tudo, como elas praticam um dos mandamentos católicos que as deviam nortear: a capacidade de perdoar. Está visto que é finita, muito limitada, a capacidade de perdoar das madames da linha de Cascais. Eu cá não lhes perdoo por me levarem a escrever um texto que me coloca ao lado do desastrado Cavaco. Sendo de direita, quando vejo estes espécimes da direita conservadora apetece-me fugir a sete pés para um dos quartos onde esteja uma qualquer esquerda (o que é, contudo, uma impossibilidade genética).
E rio-me ainda mais, porque ninguém me convence que isto não tem o dedo abençoado dos bispos pensantes. São uns politólogos de primeira água. Uns portentos de estratégia. Só podem ter ensandecido. Então não é que querem testar a força eleitoral da igreja? Se vier aí um Bagão Félix qualquer, que outra leitura senão medir a influência da igreja católica através dos votos recolhidos por esse candidato? Os senhores bispos têm mesmo a certeza que é isto que querem? Eu cá não apostava. Assim como assim, vai uma crise danada lá pela igreja (“audiências” em queda nos cultos; menos jovens dispostos a abraçarem o sacerdócio), que ainda arriscam uma crise existencial.
A gargalhada suprema seria esta: o tal Bagão Félix, ou um seu sucedâneo, a dividir os votos da “direita”. Cavaco a não conseguir ganhar à primeira volta. E, na segunda volta, o candidato poeta tauromáquico acabava por arrebatar a presidência. A maior das gargalhadas: a direita de sacristia a oferecer a presidência ao laico poeta; e este a ter que agradecer os préstimos da improvável aliada, a santa igreja.
No dia seguinte, as madames da linha de Cascais nem sequer as mágoas podiam afogar com os consortes. Não tenho nada a ver com isso, mas não deixo de mandar o palpite: é que as tias da linha de Cascais devem ter uma vida sexual tão desinteressante (“oh, que acto tão nojento!”), que não é por aí que afogam tristezas. 

22.6.10

Pop Dell'Arte, "Ritual Transdisco"

Publicidade negativa


In http://stylishcorpse.files.wordpress.com/2009/08/gun-to-head.jpg
Folheio um dos habituais jornais na Internet. Mal chamo a página ao ecrã aparece um gigantesco anúncio a uma marca de automóveis. A publicidade virtual não é novidade. As empresas perceberam que os sites que fornecem notícias são um viveiro promissor para a publicidade. Mas há uma regra de conduta: os anúncios que tapam as notícias que queremos ler têm, mais ou menos dissimulada, uma cruz que fecha a publicidade sem demora.
Durante três dias, o meu jornal favorito estava infectado (aquilo só podia ser um vírus) pela tal publicidade. Andava para cima e para baixo e da esquerda para a direita, mas não havia um sítio que permitisse o encerramento da maçadora publicidade. De cada vez que fazia clique numa notícia, lá aparecia o emplastro publicitário. Percorria o cursor para cima e para baixo e o emplastro publicitário acompanhava a deambulação, tapando a notícia. Demorava trinta-segundos-trinta a procissão publicitária ao mudar da secção “nacional” para a secção “mundo” ou para a secção “economia” e, dentro de cada secção, ao abrir uma notícia.
Vamos ao nome nos bois. O meu jornal favorito: Público. A empresa suicida: Renault. Parece que na linguagem técnica o emplastro de publicidade que me impacientava se chama banner. Era a um carro descapotável. A urticária que me consumia impediu que retivesse o nome do automóvel. Só me apercebi que se tratava de um descapotável. De cada vez que fazia clique numa secção do jornal ou numa notícia, lá aparecia a animação com a capota do maravilhoso automóvel a descer automaticamente. Se por acaso andasse a pensar em comprar um carro novo, havia um que de certeza não comprava: era aquele Renault descapotável.
Ou a inteligência se me escasseia, ou não entendo a inteligência de alguns publicitários. A este tipo de publicidade intrusiva, aos anúncios que se metem no ecrã do computador e manietam a nossa liberdade, impedidos que ficamos de a fechar no instante seguinte, chamo publicidade negativa. É a publicidade que consegue atingir o fim oposto ao que a publicidade se propõe. Ela procura aliciar o espectador a também ser cliente dos produtos anunciados. Ora a publicidade negativa tudo o que consegue é afastar os irritados destinatários dos produtos publicitados. É aquilo a que um amigo meu, noutro contexto, chama “espantar a caça”.
Já ouvi alguém dizer que o que importa não é fazer chegar uma mensagem atractiva. O que importa é que as empresas sejam faladas. Nem que seja pelos piores motivos. Às vezes, vale mais uma publicidade polémica pelo palco gratuito que ela consegue. É o propósito da publicidade agressiva, da publicidade que por vezes choca consciências. É que essa publicidade faz páginas de jornais. Entra gratuitamente nos jornais. Por outras palavras, o que interessa é que “falem de nós”. Que se dane se “falarem mal de nós”. Pior do que “falarem mal de nós” é sermos uma anónima empresa que ninguém conhece. Pode ser uma estratégia para entrar de graça onde a publicidade é muito cara. Só não percebo isto: quem compra o que é publicitado, os jornais ou os leitores dos jornais?
Regresso à irritante publicidade negativa da Renault: só se houvesse ali uma mensagem subliminar. Quando a modernidade apressada nos convence que o tempo é escasso, que tempo é dinheiro, isso não passa de um embuste. A Renault tratou de nos experimentar, testando a paciência aos limites. De que serve apressar o tempo, ler as notícias a uma velocidade estonteante porque um ror de tarefas já nos esperam na agenda mental? A Renault sabe-a toda. Agradeço o conselho. Mas o último carro que nesta altura comprava era aquele Renault descapotável.

21.6.10

É disto que falo


O impressionante enviesamento de gente que depois envenena a palavra “tolerância” quando a põe nas suas bocas: “No dia da morte de José Saramago, BE e PCP recusaram o sim a um voto de pesar pela morte do poeta Couto Viana”, Castro Guedes, in Público.

O sortilégio do ponto final


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As escolas, e os professores que por elas andam, estão todos enganados. Ensinam às criancinhas as regras da pontuação. Ensinam a ortografia numa entediante harmonia com a sintaxe. Já a tarefa era vultuosa e os petizes descobrem, com desprazer, o infortúnio de terem nascido numa terra que usa uma língua complicada. Acentos e mais acentos. As vírgulas que se encavalitam nas palavras que compõem uma frase. Às vezes, um ponto final é ponto e vírgula. Às vezes, não sabem se devem mudar de parágrafo ou se as frases devem continuar alinhadas por ali fora.
As crianças crescem. Aprendem cada vez pior a língua que falam. Crescem e algumas começam a mergulhar nos clássicos da literatura. Dizem que não há melhor treino para a destreza na utilização da língua materna. Ora esbarram nos clássicos que pertencem já a séculos distantes, boquiabertos diante do português arcaico; ora são conduzidos pelos professores às obras dos escritores contemporâneos. Em alguns casos ficam perplexos: não é que a escrita contemporânea atropela quase todas as convenções que andaram anos a fio a aprender na escola?
Ficam desorientados. Entre as cuidadosas convenções dos linguistas, que merecem tratos de polé, a língua de trapos dos escritores de antanho, e os escritores da modernidade que inventam a sua própria língua. Já para não contar com o destrate à língua pela forma da abreviada escrita em mensagens de telemóvel e emails. É – como dizê-lo? – esquizofrénico. Não admira que as gerações tenrinhas andem que nem baratas tontas, tão abundante o cardápio de variantes da língua materna que lhes é servido na escola.
Denunciar as suas fracas capacidades no uso da língua é o que se não deve fazer. Os iluminados da pedagogia experimental contrapõem que o amadurecimento convoca o enriquecimento de opções à disposição dos alunos. De uma assentada, fica explicada a esquizofrenia linguista que toma de assalto cabeças ainda imberbes. Vejamos o dilema na posição de um destes jovens: com tantas variantes da língua nativa, tantas regras gramaticais e os alçapões da ortografia, ainda vão esbarrar na escrita criativa dos hodiernos vultos da literatura. Andaram anos a aprender à força a colocar vírgulas e pontos finais no lugar certo das frases para depois lhes aparecer um professor encantado com um vulto da literatura moderna que dispensa as convenções da pontuação.
Aproveito para confirmar que não sou bota-de-elástico. A escrita criativa é credora de muitos dos avanços da literatura. As modas têm o perfume do efémero. O que, juntamente com o império do relativismo, destrói a utilidade das convenções gramaticais da língua. (Desenganem-se: gosto do relativismo, gosto que não haja certezas e que se destrua o lugar sagrado em que muitos gostam de colocar a “verdade” – assim mesmo, com direito a aspas.) O que sobra do amontoado que se ensina nas escolas? Uma singular inutilidade. Sem segundas intenções, fica a seguinte interrogação: fazem sentido as gramáticas, os dicionários com o lacre da academia das ciências e o prontuário da língua?
Talvez seja bota-de-elástico na pontuação na escrita. Gosto da estética narrativa das vírgulas, das frases curtas. Ora as frases só o podem ser, frases curtas ou longas, já não interessa, se vierem entrecortadas por pontos finais. Ponto final.
Para que não haja equívocos nem hipocrisia: este texto foi inspirado no decesso de Saramago. Não é à hora da morte que consigo fazer de conta que personagens repugnantes o deixaram de ser. O vulto literário ficará. Para os que gostarem o género. Descontando o folclore da apologia ideológica que os de sempre aproveitaram na hora em que o féretro era homenageado, na declinação do imperativo categórico da homenagem unanimista.

18.6.10

Muitos chapéus para poucas cabeças


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Os vetustos chapéus desesperam por cabeças que não são seu pousio. Foram atraiçoados pelas modas, voláteis como todas as modas o são. Outrora foram adereço exigível em homem apessoado. A pose aristocrática democratizara-se com o chapéu de coco. Era um sinal de distinção e respeitabilidade. Uma cabeça destapada era uma boçalidade. Tinham serventias, os chapéus. Escondiam desgraças capilares. Encobriam calvícies envergonhadas. Ocultavam seborreias e a muita falta de banho que as gerações de antanho cultivavam. Protegiam da chuva e abrigavam do frio vento de inverno. As doenças da estação abraçavam-se à tela felpuda dos chapéus, isentando os garbosos machos desses padecimentos.
Hoje, esses chapéus são uma curiosidade antropológica. Há até museus consagrados à chapelaria – o sinal vivo de que a indústria caiu em desuso. Quando irrompem modismos efémeros como o vento temporão, cabeças reencontram-se com bonés de multifacetada forma e feitio. As modas podem mudar, mas os tiques de comportamento são mais resistentes. Desse tempo em que os varões usavam distinta chapelaria sobra uma regra de conduta: dentro das casas tira-se o chapéu por deferência com o anfitrião, ou é-se mal-educado. Os chapéus podem ter passado de moda; a codificação de comportamentos reaviva-se, até entre muita gente nova, quando um estouvado qualquer nem repara como é de “mau tom” manter o chapéu se já há um telhado a proteger a frágil moleirinha.
Mesmo quando o modismo do momento é o detonador do chapéu como adereço, há mais cabeças que chapéus enfarpelados. Habituámo-nos à nudez da parte mais alta do corpo. Será para refrescar as ideias – o que não é mal pensado, afinal açambarcados pela majestosa crise do pensamento. Se um cientista vier a descobrir que a cabeça agasalhada por um boné reprime a fluidez do pensamento, teremos a nova cruzada dos fascistas higiénicos: porão o tabaco de lado enquanto direccionam a artilharia para os chapéus. Nessa altura, talvez nem os museus da chapelaria fiquem em pé.
Era pena que assim fosse. O pensamento – nem o mais alto pensamento – não merece tantas honrarias. Que atentado ao património genético da espécie, assim vertido num dos milhentos fragmentos que são o seu complexo ADN. A chapelaria é traço vivo desse património genético.
Mas eis que, de repente, do lado contrário irrompe uma lava espessa que vomita outras interrogações. Diríamos que o chapéu protege cabeças. Evita que o vento, com uma estocada enfurecida, despenteie as melenas arranjadas pela batuta de tanto primor. Um chapéu protege a queda de cabelo? O vento que desarranja penteados é um colosso que pode muito mais. Pode arrancar cabelos pela raiz quando leva tudo à sua frente em dia de ira sinistra. Mas pode ser tudo pelo lado oposto. Outro cientista a provar que a propensão genética dos homens para a calvície não quadra com a protecção da chapelaria. Esse cientista acabaria por trazer ao mundo uma estrondosa descoberta: os chapéus são os fautores da erosão dos cabelos, por serem seus mantos de asfixia. Historicamente, as mulheres nunca foram tão atreitas aos modismos da chapelaria diversa. E são dispensadas da acomia pelos milagres da genética. Estava descoberto o segredo. Os chapéus nem iam ao banco dos réus, a condenação imediata assim assinada. Já não se resolvia o problema dos calvos que já o eram. Só ia a tempo de prevenir a calvície dos que a ela estavam encomendados, sem o saberem, desde o parto.
Hoje, os chapéus são uma raridade. Há muitas cabeças que passam descobertas por cada chapéu com que nos cruzamos. De coco, nem vê-los. Desconfio que a repugnância da ditadura salazarista ajuda ao desuso. Há mais depressa gente de idade a envergar a típica boina achatada com carrapito cimeiro que identifica um comunista à distância.
É como dizia lá atrás: os modismos são volúveis como o tempo.

17.6.10

Três vodkas e um jaquinzinho


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O sol azedara? O relógio na parede da sala já tinha anunciado doze ou treze badaladas – perdera-se a meio da contagem, enquanto o som estridente derramava um tinir perfurante no mais profundo do cérebro. Noite de farra. Enquanto os neurónios se ligavam à corrente, debatendo-se nos lençóis despenteados, acertava as contas com a memória. Ou o que sobrava dela depois da noite ébria.
Levantou-se. Ainda cambaleante. Foi pedir ajuda ao telemóvel, ao registo das chamadas. À espera que se fizesse luz entre a cortina de penumbras que ciciava dentro da cabeça, como se fosse uma broca proficiente. Era nestas alturas que repetia juras. As que, assertivas, prometiam uma nova vida – não monástica (era pedir muito), mas uma vida, dizem os cânones, “regrada”. O corpo gritava as dores dos excessos. As incógnitas persistiam. A consulta ao telemóvel falara nada.
Espreitou, a medo, entre as persianas diligentemente semicerradas. O sol haveria de ajudar à perfurante tarefa das brocas massacrantes do cérebro. Foi a medo, entreabrindo meticulosamente uma tira da persiana mais próxima do topo da janela. Sossegou-se, pois o sol encomendara-se para outro dia. Diriam os habituais críticos: aquelas eram horas impróprias para uma alvorada.
Foi quando começou a despertar do torpor, a arrepender-se do arrependimento que anotara a vida moderada na agenda das improbabilidades. Contrariou a lógica do tempo mandado. As alvoradas não têm lugar cativo nos ponteiros dos relógios. Que se danem os olhares transviados das velhinhas reformadas que dão conta do estado lastimável (e das más horas) a que põe o pé em casa. Que se danem aqueles olhares censórios, mas ao mesmo tempo silenciosamente invejosos, dos velhinhos reformados que o olham com desprezo na madrugada fria quando regressa para o sono tardio, mal se tendo em pé.
Alguma imundície cobria o corpo. A vontade para se meter dentro de um banho, essa era pouca. Estava tomado por sentimentos contraditórios. A espaçosa experiência de bebedeiras descomunais ensinara-lhe o efeito balsâmico do duche. Mais a mais, a ressaca anestesiava os sentidos. Punha-se debaixo do chuveiro de água gelada sem temores, a pele não esboçava arrepio algum. Logo ele, que fugia a sete pés do sempre gélido oceano das nortadas. O lado preguiçoso teimosamente instalado não convidada ao banho. Ao cabo de palmilhar os cantos da casa – e nisto passou uns três quartos de hora – entregou o corpo à coragem e derrotou a mandriice. Estava pronto para sair de casa.
A fome arranhava o estômago. Àquela hora, os restaurantes já em balanço do almoço. Alguns empregados de mesa que já o conheciam disparavam, com insuportável ironia e desdém, “isto já não são horas de almoçar” e “acordasses mais cedo”. Ao voltar costas, sentia o burburinho da converseta cangalheira. Só podia ser inveja. Os garçons, todos entesados, embebidos na sua vidinha rasteira, destilavam a indisfarçável ira por não ser sua a vida boémia.
Aportou na habitual tasca onde a solidariedade de armas é conforto. Ali a bebida corria desde o nascer do sol à noite a fazer-se meia idade. Primeiro vodka para acamar a comida que aí viesse. (Hoje apetecia-lhe vodka, para cortar o cocktail explosivo que – disso lembra-se – fora apascentando durante a longa noite da véspera). “O que ainda há para comer?” – atirou, acentuando aquele “ainda”, arrastando a segunda sílaba para que se percebesse que havia fome para liquidar no corpo ainda transido por uma noite a destempo. “Só tenho um jaquinzinho e uns restos de arroz de pimentos. Serve?” Uma pausa de hesitação. “Então venha lá isso. E dois vodkas para acompanhar”.
A noite prometia-se, outra vez, irmã da alvorada soalheira. Fazia lá sentido deixar o corpo transido cair no torpor que desencorajasse outra boémia.

16.6.10

Que mal lhe pergunte, Dr. Soares


In http://www.observatoriodoalgarve.com/cna/Images%5Cmario_soares_dormir.jpg
Isto tem que ser feito com muito cuidado. E com o respeitinho que os monstros sagrados exigem. Não pode qualquer filisteu sem credenciação intelectual abjurar as verdades sentenciadas pelo Dr. Soares. A menos que queira arrostar o rótulo de herege. Aí vai um esforço danado para fazer as interrogações com jeitinho, para não doerem a sua excelência, o mais alto senador da pátria.
Não é que ontem os olhos escorregaram para o semanal artigo de opinião que o Dr. Soares publica no Diário de Notícias? Eu já devia ter idade e tarimba para passar à página seguinte quando a douta opinião do Dr. Soares espreita nos jornais. Se o tinha aprendido a fazer, por que mistério insondável me deixei atraiçoar ontem e li, de uma ponta à outra – e duas vezes! – a catedrática opinião de que ninguém pode ter a ousadia de discrepar. Agora já não tem remédio. Resta a vilania de algumas, por assim dizer, interpelações desconfortáveis.
Comecei por gostar da prosa. As primeiras linhas eram devastadoras para o amador primeiro-ministro que ainda se aguenta em pé. Comecei a desconfiar – como os pobres diante de uma esmola faraónica. Poucas linhas depois, o leitor entende que o primeiro-ministro, coitado, foi apanhado numa tempestade montada pelos demoníacos mercados, com a soberba dos grandes capitalistas (daqueles que o são mais do que o nosso auto-patriarca, bem entendido). O senador condescende: o mal atinge todos os países. Todos os governos estão com o credo na boca pela impotência em domarem esta tremenda crise.
É a vez de aterrarem as verdades insofismáveis – as que são lavradas pelo punho de sua excelência, que até é doutor honoris causa sabe-se lá por quantas universidades. Começa por advertir que os “(...) especuladores (...) pretendem destruir o euro e, a partir daí, desintegrar a própria União Europeia (...)”. Julgamento sumário, sem direito a contraditório. Com a retumbância própria dos “argumentos de autoridade”. Se o Dr. Soares nos garante que os maléficos especuladores (esses parasitas da economia) querem atacar o euro e destruir a União Europeia, não pensemos – não – que isso não passa de uma fantasia geriátrica. Se o Dr. Soares diz, é porque é.
Só que aprendi – defeito profissional – que não podemos lançar “verdades” sem as justificarmos. A menos que sejam apenas atoardas. Quando escrevemos “isto é assim”, à direita da vírgula deve aparecer “porque”. Para que percebêssemos que as suas verdades não carecem de confirmação, umas linhas à frente o senador carrega outra vez na doutrina que todos (sem excepção) devemos aceitar: “(...) os especuladores que pensam ganhar fortunas com a queda do euro são, em grande parte, os mesmos que foram os responsáveis impunes pela crise global, que, como se sabe, se iniciou na América do Norte, em 2008”. Depois da verdade bombástica, o Dr. Soares segue para bingo – que é como quem diz, atira-se a outras verdades perenes.
Que mal se lhe pergunte, senador: e se pusesse nomes dos demoníacos especuladores na fornalha? Tem a certeza que esta malvada gente quer “ganhar fortunas com a crise do euro”? Já o leu, ou escutou, afirmado de viva voz pelos próprios? Ou está apenas a imputar intenções? E a crise, não começou em fins de 2007? Se bem me recordo dos alicerces do republicanismo caduco de que se gaba de ser um esteio, uma das “virtudes republicanas” é tratar todos por igual. Se eu aparecesse a garantir o que V. Exa. assegurou com o tamanho que só os imperativos categóricos têm, era logo desafiado a comprovar.
Lá está a armadilha fatal: quando se diz “é”, há logo um “porque” a espernear na frase. De outro modo, senhor senador, as suas verdades só existem na sua cabeça. E não se deixe atraiçoar outra vez: o seu endeusado republicanismo não o deixa deslizar para a sobranceria de apoucar os ousados que discordem de V. Exa. O seu endeusado republicanismo preceitua que somos todos iguais. Desça do pedestal e comece a usar “porques”.

15.6.10

E se a Bélgica acabasse já amanhã?


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Estas histórias de países que estão à beira do precipício, quase a receber a extrema-unção, são histórias que em encantam. Pode parecer contraditório para um optimista do europeísmo (desiludido, contudo, com os últimos acontecimentos de absoluta batota dos líderes europeus). Como posso ser europeísta e ficar exultante quando um país se desintegra? Lá mais para o fim hei-de explicar como ambas as coisas não são contraditórias.
A Bélgica anda há algum tempo a ser a noiva prometida para o sacrifício no altar dos países como os conhecemos. No ano passado esteve sete meses sem governo. Quando muitos apóstolos da desgraça pressagiavam o pior dos fins para a Bélgica sem governo, eis que veio a surpresa: não foi o caos que espreitou em triunfante pose. Este caso foi seguido com atenção pelos anarquistas dos sete costados (fossem eles da mais conhecida variante de esquerda, fossem os menos popularizados anarquistas de direita). A ausência de governo não é fatal para a sobrevivência da sociedade. A anomia não terá paralisado a máquina do Estado, que também é enorme, lá como cá. Talvez os poderes dos burocratas sem rosto tenham sido reforçados. Passo por cima desse efeito nefasto. Mais importante foi o simbolismo da ausência de governo. Há países que continuam a funcionar sem governo (e muitos que funcionam mal por terem governo a mais). Afinal os anarquistas não são tão distópicos como os pintam.
Está documentado com abundância: a Bélgica é uma artificialidade. São duas comunidades (a flamenga e a valã) que se odeiam. Falam línguas diferentes. Uns são protestantes, os outros são católicos. Anteontem houve eleições gerais. Ganhou o partido independentista da Flandres. O nome do partido não esconde intenções: querem o desmantelamento progressivo da Bélgica. Os observadores interrogam-se se é desta que a Bélgica vai desaparecer do mapa. À interrogação juntam uma perplexidade com requintes de malvadez: logo agora, a uns dias da Bélgica assumir a presidência do Conselho de Ministros da União Europeia (a partir de 1 de Julho). Sublime ironia.
Não vejo por que nos alarmamos. Se os belgas são os primeiros a não quererem que persista o cimento do país artificial, por que haveremos de carpir as mágoas pelos outros quando nem eles o fazem? Sem contar que a história da Europa tem esta constante: a geografia que se foi refazendo, com fronteiras redesenhadas e países em recomposição. Não foi há muitos anos que o fim do império soviético deu origem a um cogumelo de novos países. Nessa altura, alguém (tirando as velhinhas carpideiras do comunismo senescente) sentiu as dores da desintegração dos países?
Que me digam que as dores de cabeça estão naqueles países que são assombrados pelo mesmo fantasma da artificialidade (Espanha, por exemplo), torna compreensível o histerismo com a desintegração da Bélgica. Agora lá vai uma provocação: tirando os espanhóis com tiques imperialistas, quem chorava lágrimas (a não ser que fossem de crocodilo) se a Catalunha, o País Basco, a Galiza e a Andaluzia alcançassem a independência? Pelo andar da carruagem – dir-me-ão – a Madeira também lá chegava (à independência). Suspeito que os madeirenses são os primeiros a não desejar tal infausto destino.
Ficou prometido no início: não vai a pulverização de países contra a maré da unificação da Europa? Unificar a Europa não compromete as suas muitas nacionalidades. E se num momento uma dessas nacionalidades consegue soerguer a cabeça e assinar a independência, a União Europeia continua tão União como dantes. Esta é a grande virtude da unificação europeia. Unificar sem atropelar as diversidades. Nem a ausência de governo na Bélgica há-de impedir a União de continuar a fazer aquilo que dela se espera. O que confirma a irrelevância dos países neste mundo em mudança.

14.6.10

Impossíveis, não são os sonhos


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Impossível há-de ser qualquer coisa terrena. Qualquer coisa que passe diante dos olhos enquanto estão em acordada vigília. Um cão a latir. Um mendigo a vegetar na desesperança. Um executivo, irradiando autoconfiança enquanto passeia os sinais exteriores de sucesso. A jovem beldade aspirante ao néon das passerelles. Duas velhinhas a coscuvilharem à porta do prédio, enquanto o miúdo faz piruetas no skate. O jovem pastor evangélico a debitar máximas bíblicas enquanto o séquito de outrora ateus aplaude entusiasmado (talvez sem atingir a hermenêutica das palavras). O craque da bola que ostenta milionária bijutaria e atropela a gramática para os microfones que se estendem à sua frente. O homem boçal que atira para o chão o invólucro plástico do maço de tabaco quando tinha a meia dúzia de metros um caixote do lixo.
Alguns possíveis. Uns para lamentar, outros para simplesmente constatar. Mas também há os possíveis que ludibriam o niilismo persistente. As paisagens idílicas. Um sol com cores mágicas que se compõe depois de dias intermináveis de chuva. Ou uma chuva retemperadora que interrompe o cansativo estio. O mar. Bravio em dias de tempestade, quando as ondas se encavalitam nas esporas do vento e compõem um cenário arrebatador, um sobressalto que acalma. Ou o mar sossegado, o mar chão que é regaço das aves que repousam em dia ensolarado. As pessoas que valem a pena. Músicos, poetas, escritores, pintores, das artes todas que mereçam elogios. Ou, tão simplesmente, heróis que são os que guardamos no canto muito escondido onde está o infinito universo dos afectos.
Mas há os impossíveis. Os idealismos. O poço fundo das utopias. Lá, onde o pensamento se esboça nos tortuosos corredores das impossibilidades. O pensamento não se deixa derrotar pelas contingências do mundo fervente. Combate a anestesia da realidade. É acutilante, impiedoso com os contornos do mundo táctil. Acusa o mundo em redor de um torpor contagiante, só para que nos apaziguemos com os limites das possibilidades que assim nos são encenadas. Cabe ao pensamento derrubar os apertados muros dos possíveis. Ao pensamento, ou aos sonhos. Que são a forma sossegada, e espontânea, de pontuar as impossibilidades com um travo de possível. E se um sonho é pensamento, não acabamos por desaguar na mesma foz? E o possível, é tudo o que interessa?
Tanto faz que os sonhos sejam os insondáveis interstícios que acontecem a meio do sono, como os sonhos que forjamos acordados. Os primeiros acasalam-se com nutrientes da impossibilidade em estado puro quando se entretecem em obtusas formas. Os segundos são a fuga ao torpor da realidade dolente. Há quem diga que se trata de alienação. Há quem acuse esses acordados sonhos: são simples alucinações que não resolvem as dores insuportáveis do mundo que dá as rotineiras voltas. Um ensimesmar que rima com válvula de escape. Os problemas não são tomados pelos cornos, de frente como convém aos corajosos. São congelados, enquanto o pensamento escorrega para devaneios. Uma sentença cruel: estes sonhos acordados tingem-se da covardia no seu estado mais puro.
O mal não está em escorregar para a alienação dos sonhos, quer dos que se entretêm a perceber os absurdos sonhos do sono, quer dos que se entregam à letargia dos sonhos acordados. O pior está nos juízos de valor que apoucam os sonhos, sobretudo os sonhos acordados. É que a pior maleita da espécie é a falta de imaginação. Ora, em sonhos, a imaginação é de uma intensidade febril. Não há mal em nos refugiarmos dos contornos do mundo através dos dedos dos sonhos que tecemos acordados. Às vezes é assim que encontramos as margens da criatividade.
De quantos sonhos acordados se fazem as artes que inebriam os pueris pastores da realidade? De quantas impossibilidades se compõem?

12.6.10

Hoje é que devia ser feriado

Há vinte e cinco anos, assinámos a adesão às Comunidades Europeias. 
Reentrámos na Europa. Quisemos que a Europa fosse a nossa maestrina.
Pôr o destino nas mãos dos melhores é sinal de lucidez.

11.6.10

(Não) dar parte de fraco


In http://www.ibalmada.org/wp-content/uploads/2008/08/braco_de_ferro.jpg
Engolisse o orgulho – esse orgulho que não é nutriente de coisa alguma, a não ser o pasto movediço onde cresce uma fátua pesporrência. Engolisse orgulho e, ao mesmo tempo, os dedos se ungissem com uns gramas de humildade. Que não se espere que o sol se deite do lado contrário do firmamento. Mas as chuvas que temperam a tibieza da fornalha ainda primaveril haveriam de perder a sua acidez.
No íntimo. É o único e muito reservado lugar onde admite fracassos pessoais. Eles nunca transbordam as fronteiras do ser. Reprime-os. A sua coriácea aura não admite tergiversações. Podia lá dar parte de fraco! Seria falível aos olhos dos outros, os muitos que o seguem na sua peregrinação segura. O humilde perdão pedido por equívocos afinal tão humanos podia destruir a aura que adeja sobre os demais. Uma aura quase sobre-humana, um heroísmo só à mão de semear dos predestinados. Dos que não se atemorizam com nada e oferecem peito às balas.
O estatuto não se perde com garfadas nas fragilidades interiores, mesmo a jeito servidas às talhadas aos outros-abutres. As fragilidades escondem-se do olhar alheio. Tudo se mascara num logro onde nem tudo o que parece tem simetria com o que é. Os actos de humildade, os actos que sopram com a intensidade da fragilidade humana, são para os fracos de espírito. Tudo se encena no seu oposto para ninguém ajuizar a momentânea debilidade. Quando é preciso, aprimora-se o estado de negação. Refugia-se numa torre de marfim de onde contempla as fraquezas da espécie. Não são suas, essas fraquezas. O apogeu da alteridade é um corpo humano embebido num espírito superior.
Aconselha os que amolecem. Sem pestanejar, acredita que é guru numa coreografia caótica onde só os eleitos são chamados a perceber o sentido das coisas. Quando lhe falam de deus, inveja a impossibilidade da condição divina. Nunca o dissera a ninguém, mas nos dias em que fertiliza o aluvião do narcisismo diz para consigo que é deus. Aos outros faz ver que está num lugar intermédio entre eles e as entidades que se colocam no altar da deificação.
Há-de morrer. De morte súbita, demoradamente definhando numa doença terminal, ou num acidente. As angústias são alimentadas pelo devir fatal que o espera. Como aos demais que, como ele, comungam na mortal condição. Deita-se à noite e, enquanto o sono se demora, transita pela teimosa insónia admitindo que a humildade só o verga em vésperas de morte. Há quem advirta do arrependimento extemporâneo. Não recuar na prosápia encolhe o espaço para a redenção – uma qualquer redenção que uma qualquer entidade divina, que só então se revelará, tratará de anunciar.
Esta é a outra pedra angular do desassossego que esconde. A negação é até das entidades divinas que por aí concorrem. Como pode antecipar o temor que o assaltará na véspera do desenlace fatal se interioriza a ausência destas divindades? Este é o maior segredo que resguarda no peito. As chaves para lá chegar estão escondidas num baú esconso, por sua vez as chaves metidas em cofre reforçado com algorítmica chave de segurança. Entre as consumições interiores que a carapaça de duro oculta do exterior e a perseverança no estatuto infalível, há segredos que devem ser sempre segredos. Tanto que vivalma pode desconfiar que os segredos sequer existam.
Dar parte de fraco não é roteiro. É mister dos fracos de espírito, dos irremediáveis erráticos. É tanto o orgulho que o mantém de pé que chega a admitir que preferia o suicídio a cair nessa ralé dos fracos de espírito. Mesmo que o seja, por muito que o esconda, quando engole um garfo de tamanho industrial e teima na impossibilidade do erro pessoal.