29.6.10

O sacana do vizinho


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O desporto anda atrás do tempo. Teima nas competições entre países. Quando cada vez mais países são o exemplo da modernidade que recebe debaixo do mesmo tecto um variado cozinhado interétnico. As nações reinventam-se perfilhando os outros que nelas se albergam. São um mosaico cosmopolita. O sangue – e por sangue têm-se as ligações ao solo pátrio – perdeu o exclusivo da atribuição de nacionalidade. Varia de lugar para lugar. Mesmo em países onde outrora as idiossincrasias étnicas eram traço identitário, o que agora se vê é a fusão de influências étnicas.
O desporto insiste em prolongar para as arenas onde as modalidades se praticam os teatros de guerra de antanho. Não é que lá dentro, nas arenas, os praticantes tirem olhos uns aos outros. O pior acontece cá fora, nas imediações dos estádios e dos pavilhões. O “cá fora” é um lugar com muitas periferias. Há as bancadas onde se amontoa a turba excitada que entoa gritos tribais de apoio aos heróis que se desunham em nome da pátria. Onde o primarismo vive em êxtase irracional é na periferia da comunicação social que narra os acontecimentos. As parangonas são patéticas, convocando a bravura dos atletas como se estivessem ali a defender a honra dos milhões que, supostamente, representam.
Quando o jogo envolve vizinhos metidos na camisa de varas da ancestral rivalidade histórica, a imprensa é pródiga na imbecilidade. Logo, ao fim da tarde, Espanha e Portugal vão-se tentar eliminar reciprocamente do campeonato do mundo de futebol. A imprensa dos dois lados da fronteira anda em polvorosa. Ontem, um jornal desportivo espanhol já se atirava ao grande acontecimento com esta subtileza: uma galeria de fotografias com beldades lusitanas em trajes menores e em poses provocatórias. Hoje, um jornal desportivo português traz na capa a pirosa vedeta da companhia em tronco nu – em tronco nu, ó mulherio! – fazendo a faena a um touro espanhol.
Quando o jornal espanhol mostra as beldades lusitanas muito pouco vestidas e em poses provocatórias, tanto pode ser uma homenagem à beleza feminina lusitana como uma sibilina provocação que mistura desporto com sexo. Vou directo ao assunto: os espanhóis estão convencidos que “nos vão comer”. E nada mais simbólico do que mostrar à homenzarrada hispânica exemplares femininos lusitanos do mais elevado calibre. Para que a homenzarrada hispânica as coma com os olhos e imagine a função como metáfora do que a sua adorada equipa pode fazer com os rivais do outro lado da fronteira. O jornal português é mais cruel. Retrata os rivais como bestas que podem ser toureados na arena. Esta é uma metáfora mais cruel pelo simbolismo que o toureio tem em Espanha, onde os touros são condenados à morte assim que entram na arena.
De repente, isto faz-me lembrar aquelas rivalidades espúrias entre vizinhos. Dão-se bem, mas é só uma aparência. Às escondidas, nas costas um do outro, os vizinhos alimentam uma rivalidade bola de neve que não demora a atingir a proporção do enfrentamento. O que ao início pertence ao domínio da diplomacia (a hipocrática convivência pacífica em nome das convenções e da civilidade), acaba por desaguar no vizinho insuportável. Só o arfar do vizinho causa brotoeja.
Hoje, lá pelo final da tarde, o melhor lugar para estar é milimetricamente a meio da fronteira. Lá, onde a terra é de ninguém, onde se não é nem de um lado nem do outro. Apenas apátrida.

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